Por Rui Maciel | 27 de Maio de 2021 às 09h45
Na (ótima) biografia de Steve Jobs, escrita por Walter Isaacson, o autor conta uma história das boas: durante o desenvolvimento do primeiro iPod, o manda-chuva da Apple exigiu que o software do player acessasse todas as suas funções em, no máximo, três cliques. Nenhuma funcionalidade, sem exceção, poderia ultrapassar esse número.
Os engenheiros da Apple protestaram durante todo o processo, disseram por “A+B” que seria impossível, mas Jobs acionou o seu bom e velho “campo de distorção da realidade”. E tanto insistiu que os desenvolvedores conseguiram o que ele queria. Todos os recursos eram acessados em três cliques, o que tornou o manuseio do player bastante prático e intuitivo. E isso foi fundamental – aliado a um design matador de Jonathan Ive – para transformar o iPod no player de música mais vendido de todos os tempos. E que, junto com os coloridos iMacs, ajudou a recolocar a então combalida Apple no mapa.
O episódio diz muito sobre aquela que era a maior qualidade de Jobs: o seu faro inigualável para a chamada “Experiência do Usuário” (ou UX, se preferir). O cofundador da Apple entendia como ninguém a importância da usabilidade no desenvolvimento de um produto e como esse fator é essencial para determinar o seu sucesso junto ao público. Jobs sabia pensar com a cabeça do usuário comum – e não com a de um engenheiro, como era praxe no UX da época – e exigia que isso fosse transportado para seus dispositivos. Não por acaso, depois do iPod, o iPhone foi um divisor de águas no mundo mobile.
E por que eu estou contando essa história? Porque a Amazon anunciou nesta terça-feira (26) a compra dos estúdios MGM por US$ 8,45 bilhões. Com isso, ela terá à disposição franquias poderosas do cinema como 007, Rocky e muitas outros clássicos. Além disso, ela passa a ter um catálogo de mais de quatro mil filmes, com sucessos como Silêncio dos Inocentes, Thelma e Louise, Robocop, sem contar as mais de 17 mil séries de TV, como Fargo, The Handmaid´s Tale e Vikings. Ou seja, uma bela aquisição para a sua plataforma de streaming – a Prime Video – brigar com os poderosos Netflix, Disney+ e HBO Max – que, aliás, chega no Brasil no final de junho.
Ok, mas o que isso tudo tem a ver com a história contada sobre Jobs e o iPod? Simples. Porque a Amazon parece operar no extremo oposto quando falamos da usabilidade no seu serviço de streaming. E junto com os bilhões que acabou de gastar para comprar a MGM, ela poderia desembolsar outros milhões para transformar radicalmente a sua plataforma, tornando-a um serviço mais agradável e prático de usar. A usabilidade do streaming ainda está longe disso, mas este é um fator que pode ser essencial na feroz guerra desse mercado.
Hoje o Amazon Prime Video parece um repositório de filmes e séries
Ao abrir o serviço, a primeira impressão não é ruim. A interface do Prime Video é bem semelhante a de outros serviços, mostrando o que você já assistiu, os “Amazon Originals” (conteúdos exclusivos produzidos ou comprados pelo seu estúdio, o Amazon Studios), a lista de filmes recomendados, os títulos adicionados recentemente, entre outras relações. Nada muito diferente do rival Netflix, por exemplo.
Mas, logo depois disso, principalmente na parte de filmes, o Amazon Prime Video dá a impressão de ser um repositório de conteúdo, com uma aparente falta de cuidado na organização dos títulos e o sistema de recomendações.
Enquanto o Netflix faz sugestões de obras similares aos últimos filmes e séries que você assistiu recentemente, em todo o seu painel, o representante da Amazon usa isso de forma mais precária, mostrando que o algoritmo da plataforma ainda precisa ser melhorado — até porque sugestões certeiras ajudam o usuário a ficar mais tempo no serviço, não concordam? Afinal, colocar The Vampires Diaries ao lado de Homeland em uma seção chamada “Séries que achamos que você vai gostar” não me parece uma boa propaganda da eficácia do algoritmo de dicas da plataforma.
Outro problema do Prime Video é o seu funcionamento irregular nos dispositivos onde ele está disponível. Se na versão para PCs a sua performance é boa, nas smartTVs não. Nas séries, por exemplo, a plataforma é incapaz de parar exatamente no último capítulo em que você parou de assistir. Por exemplo, se você finalizou o episódio 5 da temporada 7 e sai da atração, ao voltar, o serviço da Amazon, por alguma razão, te mostra capítulos e temporadas totalmente diferentes.
A organização dos títulos do Amazon Prime também não ajuda. Se você quiser assistir a um gênero específico, você precisa descer por toda página até achar o que quer. E, só no fim dela, você verá os ícones de cada gênero que trará apenas as obras dessa categoria. E isso para filmes. Para séries, essa opção não está disponível.
Já na Netflix, tanto na página de filmes, quanto de séries, o botão de gênero fica no topo e com opções adicionais, como buscar as atrações por ordem alfabética, ano de estreia e sugestões baseadas no seu perfil. Sem contar recursos que te mantêm mais tempo na plataforma ou faz conhecer coisas novas, como o “Bombando” e o “Aleatório”.
Mas é no quesito “Áudio / Legendas” que os problemas do Prime Video são mais notáveis, principalmente nos filmes. São muitos os títulos que não trazem legendas em português ou que contam com legendas de línguas que você provavelmente não tem conhecimento nenhum (como sueco ou romeno). Sem contar aqueles que não trazem nada, contando apenas com o áudio original. Há ainda muitos que são apenas dublados em português e existem até mesmo filmes que trazem um áudio totalmente diferente do país em que ele foi produzido. Por exemplo, o longa “Clube da Luta Para Mulheres” foi feito nos EUA, mas o seu idioma de áudio é italiano por ali.
O Prime Video (ainda) não é a prioridade da Amazon. O que não justifica as falhas
É fato que, pelo menos até o momento, a Amazon pensa sua plataforma de vídeo de uma maneira diferente dos rivais. A exemplo da Apple, a gigante varejista não considera o serviço como seu core business. O Prime Video faz parte de um ecossistema mais amplo de serviços, o que inclui o Prime Reading (eBooks e revistas), Prime Gaming (para assinaturas e benefícios exclusivos em games) e Amazon Music (streaming de músicas). Eles gravitam em torno do Amazon Prime, que oferece frete grátis para quem compra certos produtos no e-commerce da marca. E tudo isso por R$ 9,90, um preço — sejamos justos — bem acessível e bem menor que o cobrado pelos rivais Netflix (a partir de R$ 21,90), Disney+ (R$ 27,90) e HBO Max (R$ 28).
No entanto, cobrar barato não deve ser um salvo-conduto para se oferecer um serviço com tantas falhas. Diante de uma concorrência cada vez mais feroz no mercado de streaming, a Amazon precisa decidir se o Prime Video será apenas um coadjuvante ou um protagonista do setor. Até porque o usuário, com mais opções, torna-se menos tolerante com plataformas “bugadas”.
A compra da MGM indica que o Prime Video vai “pras cabeças” diante dos rivais. No entanto, a empresa precisa ter em mente que não é apenas bom conteúdo que vai colocar o seu serviço de streaming no topo. A experiência do usuário dentro da sua plataforma será essencial para determinar o seu sucesso. Afinal, antes do iPod, já existiam outros players de MP3 e já existia música. O dispositivo da Apple “apenas” mostrou ao mundo como era fácil e divertido unir os dois.
Steve Jobs já ensinou como se faz. A Netflix e a Disney aprenderam a lição. Será que a Amazon seguirá esse caminho? Veremos nas próximas temporadas… Informações do site Canaltech.