Segunda, 7 de março de 2022
No Café com Muriçoca de hoje Dinha lembra que “Não basta ser pobre”, tem que parecer miserável. Ela discute dignidade e expectativas sociais sobre pessoas pobres em nosso país.
Daí que eu mesma passei muita fome por me recusar a, além de ser pobre, “parecer miserável” – mesmo que economicamente eu, de fato, fosse.
“Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome“.
Tem gente com fome – Solano Trindade
Uma coisa que eu aprendi ao longo das minhas quatro décadas de existência nesse plano é que não basta ser pobre. Se a gente precisar de ajuda, quase sempre vamos ter que parecer miseráveis.
Ceis sabe que eu nasci em Milagres, mas cresci foi na favela, né?
Aqui, tive muitas “oportunidades” de viver e observar a dinâmica da assistência social e de movimentos solidários que tinham dificuldades de reconhecer a pobreza extrema quando ela não aparecia sob a forma de uma mulher ou homem de ombros caídos, olhar caído, linguagem precária e capacidade de raciocínio limitada.
Beleza física – sem discutir aqui os padrões – também não parece que combina com necessidade financeira. Se a pessoa pobre que vai buscar ajuda não se apresentar descuidada da sua aparência física e da própria higiene e saúde, muitas vezes ela não é admitida como alguém que precisa urgentemente de ajuda.
Vi isso em templos religiosos, nos serviços de saúde e em movimentos sociais com enfoque assistencialista: as pessoas chegavam, solicitavam ajuda e eram imediatamente avaliadas a partir da sua “casca”.
Daí que muita gente que conheço teve seus direitos negados diante de médicos da previdência, porque não estavam detonadas o suficiente para serem consideradas necessitadas de ajuda.
Daí que muita gente que conheço teve cestas básicas (!) negadas por não terem olhos tristes o suficiente.
Daí que muita gente teve ajudas de custo negadas por não estarem maltrapilhas o suficiente e, na boca, ainda terem os dentes inteiros.
Daí que eu mesma passei muita fome por me recusar a, além de ser pobre, “parecer miserável” – mesmo que economicamente eu, de fato, fosse.
Daí que nas filas por garantia de direitos básicos há pessoas especializadas em serem tristes, maltrapilhas, “feias” e intelectualmente limitadas. São irmãos e irmãs que vivem encurvadas, sorriem quando solicitadas, exercem pouco a linguagem padrão – mesmo que a dominem minimamente – e evitam demonstrar pensamento crítico, pois coisas que dão aspecto de dignidade são mal vistas por técnicos do INSS, assistentes sociais e entidades filantropas.
Nesses tempos de crise econômica, pandemia, neonazismo, desgoverno e outras catástrofes e safadezas mais, essa exigência de parecer miserável fica cada vez mais aguda. Enquanto isso, nós poetas, cientistas, o povo da sociologia, estudantes de universidades públicas recém-abertas para a quebrada (que não têm um tostão no bolso, mas precisam parecer “limpinhos” para não serem discriminados…) enquanto isso a gente chora caldo de sopa e vomita ansiedade.
Quando eu crescer vou investir em fábricas de sonhos-realizados. E, antes das fábricas, em escolas que ensinem a sonhar sem que isso envolva matar ou prejudicar outras pessoas. Vou contratar estudantes, artistas e gente que se rebela. Vamos criar embalagens sustentáveis e dignas para nossos produtos e vamos vender a preços de custo – para que pobres, que pareçam ou não miseráveis, tenham acesso a seus direitos, às suas legítimas vontades.
Quando eu crescer ninguém mais vai ter que parecer miserável.
Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros. Nas redes: @dinhamarianilda Fonte: Jornalistas Livres