“Não é possível estar dentro da civilização e fora da arte”

cultura

Esta frase de Rui Barbosa é uma das tantas lições que compõem o livro Sobre o Desenho no Brasil, organizado por Claudio Mubarac

  por Leila Kiyomura – Domingo, 13 de novembro de 2022

Arte: Adrielly Kilryann

Apresentar o livro Sobre o Desenho no Brasil, da Editora Escola da Cidade, entre textos e imagens – como os desenhos de Jean Baptiste Debret, que delineia a lápis a aclamação de D. João VI, em 1818, e a fotografia analógica de Marco Buti documentando, 190 anos depois, os muros de São Paulo –, é o desafio de Claudio Mubarac. Artista e professor, ele reúne as pesquisas, reflexões e debates que movimentam as suas aulas na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

“Esta reunião de ensaios propõe um périplo sobre as ideias que circulam, desde o século 19, a respeito dos usos e das vocações ligadas ao desenho no Brasil”, observa Mubarac. “Apesar de jovens, a história e a prática do desenho no Brasil já contam, segundo meu entender, com uma densidade e com uma presença notável, sempre atritadas por nossa história política, por nossa convivência problemática e pelos ventos inquietos de nossa herança cultural, o que nos obriga a rever alguns artistas e pensadores que se debruçaram sobre essa arte de maneira prospectiva e propositiva. Tudo balizado por um desejo de medir o pulso e as pulsões dos papéis que o desenho pode cumprir hoje, em seus endereços e seus destinos.”

Os desenhos a lápis que abrem o livro são do francês Jean Baptiste Debret (1758-1848), que, com outros artistas, integrou a Missão Artística Francesa. Uma história contada no primeiro artigo, Memória do Cavaleiro Joachim Lebreton para o Estabelecimento da Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro, assinado pelo próprio Joachim Lebreton (1769-1819). “O texto propõe a criação de duas escolas para as artes do desenho, uma para as belas artes e outra para artes e ofícios”, comenta Mubarac.

“É uma réstia de luz, que o luxo reproduz de prisma em prisma nos paços suntuosos do argentário, mas que penetra e acaricia com toda a doçura de sua claridade a casa sóbria do homem de trabalho”

O ensaio visual do artista chileno Henrique Bernardelli (1858-1936), com desenhos em carvão sobre papel, grafite e bico de pena que integram o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, é uma pausa para a compreensão da leitura do texto do jurista, político e escritor Rui Barbosa (1849-1943), O Desenho e a Arte Industrial. Trata-se de um discurso proferido no dia 23 de novembro de 1882, no tradicional e pioneiro Liceu de Artes e Ofícios. Vale lembrar a essência do conteúdo, que, 140 anos depois, continua atual para integrar o projeto político cultural dos governantes recém-eleitos.

Rui Barbosa, em seu tom sempre solene, observa: “Ainda uma página, pois, da história humana, para demonstrar que a inteligência e educação constituem o mais alto de todos os valores comerciais, a nascente mais caudalosa da riqueza, a condição fundamental de toda a prosperidade. Foi assim em todos os tempos. Derramando a arte a plenas mãos foi que Péricles reconstitui Atenas dos desastres da luta com o Oriente; e, quando entornada a flux, por toda a parte, a atividade artística no seio do povo, o grande homem parecia dissipar os tesouros da república, a democracia ateniense.” O célebre orador continua e o leitor ficará certamente impressionado com o texto que, apesar da erudição, desperta a sensibilidade, a consciência. São considerações para ler e ouvir nos dias de hoje: “As leis do belo ajustam-se a todos os graus da fortuna. Essa aristocracia do espírito, que o gosto pressupõe, não depende absolutamente da riqueza, mas da elevação das impressões, da nobilitação do sentimento, da inteligência delicada entre o indivíduo e o mundo exterior, condições que a tornam compatível com a mediana das classes laboriosas. É uma réstia de luz, que o luxo reproduz de prisma em prisma nos paços suntuosos do argentário, mas que penetra e acaricia com toda a doçura de sua claridade a casa sóbria do homem de trabalho”.

O organizador do livro, Claudio Mubarac, observa: “Sobre a inclusão do discurso de Rui Barbosa, há a ideia, já apresentada na carta de Lebreton ao Conde da Barca, de pensar no ensino do desenho não apenas particularizado pelas belas artes, mas como educação geral, ideia que perpassa todo o livro. Os textos foram assim sendo encadeados, abrindo espaços para as reflexões de cada um, também impulsionadas pelos ensaios visuais, que sempre antecedem os escritos”.

Ester Grinspum - Foto: Reprodução
Ester Grinspum – Foto: Reprodução
Jean-Baptiste Debret - Foto: Reprodução
Jean-Baptiste Debret – Foto: Reprodução
Jean-Baptiste Debret - Foto: Reprodução
Jean-Baptiste Debret – Foto: Reprodução
Henrique Bernardelli - Foto: Reprodução
Henrique Bernardelli – Foto: Reprodução
Henrique Bernardelli - Foto: Reprodução
Henrique Bernardelli – Foto: Reprodução
Ester Grinspum - Foto: Reprodução
Ester Grinspum – Foto: Reprodução
Ester Grinspum - Foto: Reprodução
Ester Grinspum – Foto: Reprodução
Jean-Baptiste Debret - Foto: Reprodução
Jean-Baptiste Debret – Foto: Reprodução

“De uma parte, com efeito, o ensino do desenho visa a desenvolver nos adolescentes o hábito da observação, o espírito de análise, o gosto pela precisão…”

O ensaio visual e o artigo sobre Ensino no Desenho compõem o retrato do urbanista, pensador, professor e um dos pioneiros da arquitetura modernista Lucio Costa (1902-1998). “Em 1940, por solicitação de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública do Estado Novo de Getúlio Vargas, entre 1934 e 1945, Lucio Costa desenvolve um programa de reformulação de ensino de desenho no curso secundário, tema abordado pelo terceiro texto de nossa seleção”, explica Claudio Mubarac.

O leitor observa a didática de Lucio Costa, então diretor da Escola Nacional de Belas Artes, que expõe as suas anotações críticas sobre o problema do ensino do desenho no curso secundário. “A primeira é que as aulas serão muitas vezes ministradas por pessoas pouco esclarecidas, ou mal esclarecidas, sobre o que de fato importa, sendo conveniente assim restringir ao mínimo indispensável a intervenção do professor, a fim de que a própria estruturação do programa atue por si mesma, de forma decisiva, na orientação do ensino”, orienta. “A segunda dificuldade é que os objetivos do ensino do desenho, nesse curso, são de natureza contraditória. De uma parte, com efeito, o ensino do desenho visa a desenvolver nos adolescentes o hábito da observação, o espírito de análise, o gosto pela precisão, fornecendo-lhes meios de traduzir as ideias, de os predispor para as tarefas da vida prática; concorrerá também para dar a todos melhor compreensão do mundo das formas que nos cercam, do que resultará, necessariamente, uma identificação maior com ele.”

Lucio Costa - Foto: Reprodução
Lucio Costa – Foto: Reprodução
Lucio Costa - Foto: Reprodução
Lucio Costa – Foto: Reprodução
Lucio Costa - Foto: Reprodução
Lucio Costa – Foto: Reprodução
Lucio Costa - Foto: Reprodução
Lucio Costa – Foto: Reprodução

“A glória do desenho é outra. Ele não morre quando cessa a visão nem é já uma verdade adquirida enquanto a visão dura.”

Mário de Andrade (1893-1945) marca presença em Sobre o Desenho no Brasil, texto acompanhado pela arte de Lasar Segall (1889-1957). Escreve sobre o desenho original do álbum Mangue em grafite, tinta vermelha e preta a pena sobre papel, que integra o acervo Museu Lasar Segall. “Este hieróglifo com que Segall faz nascer uns seios detrás duma veneziana intencionalmente estragada ou surge sem composição alguma um tom apenas de uma mulher numa cortina… E observareis como o desenho se prolonga em vosso espírito como ressonância e confidência. Pode ser de tristeza. Pode ser de alegria.”

O poeta se alia ao crítico para observar sensações invisíveis aos olhos comuns. “A glória do desenho é outra. Ele não morre quando cessa a visão nem é já uma verdade adquirida enquanto a visão dura”, observa.

João Baptista Vilanova Artigas (1915-1985) – arquiteto, urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP – é observado no livro através de um ensaio visual e no artigo O Desenho, que apresentou em uma aula inaugural no dia 1º de março de 1967. “O texto é centrado nas relações que o desenho mantém com a arquitetura, mas tem seus sentidos estendidos pelo caráter ontológico, amplo e fundamental. É uma defesa do racionalismo diante dos ‘conflitos históricos entre a arte e a técnica’.”

O penúltimo texto e ensaio visual cabe à arte e arquitetura de Flávio Motta, professor da FAU. O artigo foi apresentado na mesma época em que Artigas movimentou os estudantes na aula inaugural.  “Não é demais lembrar que estávamos naquele momento a três anos do golpe militar de 1964; portanto, vivendo e respirando nas frestas das dimensões políticas e sociais.”

Flavio Motta - Foto: Reprodução
Flavio Motta – Foto: Reprodução
Lasar Segall - Foto: Reprodução
Lasar Segall – Foto: Reprodução
Lasar Segall - Foto: Reprodução
Lasar Segall – Foto: Reprodução
Vilanova Artigas - Foto: Reprodução
Vilanova Artigas – Foto: Reprodução
Vilanova Artigas - Foto: Reprodução
Vilanova Artigas – Foto: Reprodução
Vilanova Artigas - Foto: Reprodução
Vilanova Artigas – Foto: Reprodução
Flavio Motta - Foto: Reprodução
Flavio Motta – Foto: Reprodução
Lasar Segall - Foto: Reprodução
Lasar Segall – Foto: Reprodução

“O desenho, em sua vibração primeira, é descoberta, independentemente de ser ou não grafado.”

Com o artigo Desenho é Primeiro e Não Preliminar, Claudio Mubarac encerra o conjunto de textos e conta a sua história. Lembra como iniciou, há 40 anos, a prática como desenhista. “Nesse texto, adiciono as anotações que redigi para uma aula sobre o desenho, a convite da Escola da Cidade, no segundo semestre de 2017, nas quais procurei mapear minhas incursões pela prática e pela teoria de desenho em três tempos: antes de meu ingresso como aluno no curso de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP, durante meus anos de formação e hoje.”

Mubarac também traz a sua trajetória com uma série de desenhos. Afirma:  “O desenho, em sua vibração primeira, é descoberta, independentemente de ser ou não grafado. Portanto, deveríamos ao menos rever sua presença e sua importância não mais só insistindo em seus aspectos artísticos/estéticos, mas vendo no desenho uma caixa de ferramentas, virtuais ou materiais, uma família de técnicas e procedimentos relativamente autônomos e abertos para controlar o poder de realizar marcas significativas, numa infinita variedade de combinações e permutações, ligadas aos mais diferentes projetos humanos”.

A descoberta do desenho, com os seus vazios e presença, reflexões e questionamentos, está nos ensaios visuais dos artistas Alberto Martins, doutorado pela ECA; Ester Grinspum, também arquiteta pela FAU; Elisa Bracher, escultora e educadora; Paulo Monteiro, desenhista, pintor, escultor; Paulo Pasta, pintor e professor; e José Spaniol, gravador, escultor e professor.

Importante destacar a participação dos professores e artistas da ECA Madalena Hashimoto e Marco Buti. Ambos abrem caminhos para a pluralidade da forma e estética do desenho contemporâneo. Hashimoto, com a poética entre o Oriente e o Ocidente, busca, através da xilo à base de água, as impressões do ser humano. E Buti, na sua trilha infinita pelas ruas da cidade, imprime o desenho em movimento.

Alberto Martins - Foto: Reprodução
Alberto Martins – Foto: Reprodução
Claudio Mubarac - Foto: Reprodução
Claudio Mubarac – Foto: Reprodução
Claudio Mubarac - Foto: Reprodução
Claudio Mubarac – Foto: Reprodução
Claudio Mubarac - Foto: Reprodução
Claudio Mubarac – Foto: Reprodução
Paulo Monteiro - Foto: Reprodução
Paulo Monteiro – Foto: Reprodução
Paulo Monteiro - Foto: Reprodução
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Marco Buti - Foto: Reprodução
Marco Buti – Foto: Reprodução
Marco Buti - Foto: Reprodução
Marco Buti – Foto: Reprodução
Madalena Hashimoto - Foto: Reprodução
Madalena Hashimoto – Foto: Reprodução
Marco Buti - Foto: Reprodução
Marco Buti – Foto: Reprodução
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Elisa Bracher - Foto: Reprodução
Elisa Bracher – Foto: Reprodução
Elisa Bracher - Foto: Reprodução
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Paulo Pasta - Foto: Reprodução
Paulo Pasta – Foto: Reprodução
Paulo Pasta - Foto: Reprodução
Paulo Pasta – Foto: Reprodução
José Spaniol - Foto: Reprodução
José Spaniol – Foto: Reprodução
José Spaniol - Foto: Reprodução
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Alberto Martins - Foto: Reprodução
Alberto Martins – Foto: Reprodução
Alberto Martins - Foto: Reprodução
Alberto Martins – Foto: Reprodução
Claudio Mubarac - Foto: Reprodução
Claudio Mubarac – Foto: Reprodução

Sobre o Desenho no Brasil, de Claudio Mubarac (organizador), Editora da Cidade, 264 páginas, R$ 70,00

Mais informações: https://escoladacidade.edu.br/pesquisa/editora/

Fonte: Jornal USP

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