A exposição no Sesc Pompeia atrai os paulistanos que buscam a floresta viva. Reúne 205 fotos e vídeos com depoimentos de representantes indígenas
por Leila Kiyomura – Domingo, 3 de julho de 2022
Acreditar que é possível salvar a Amazônia com os seus rios, florestas e, especialmente, com a preservação do brio e cultura da vida indígena tem levado cerca de 150 mil pessoas até o Sesc Pompeia, em São Paulo. Nas 205 fotos em preto-e-branco de Sebastião Salgado, o público vê brotar o verde da floresta, a sombra das nuvens, o impacto das chuvas, o curso dos rios e o cotidiano de 12 comunidades indígenas. Imagens muito diferentes das que foram exibidas na mídia no decorrer de junho, quando o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados. A ameaça de morte aos defensores da Amazônia repercute e destrói.
Diante dessa realidade trágica, a exposição Amazônia, prorrogada para o dia 31 de julho, tem nova dimensão. Apresenta uma realidade que foi massacrada nos últimos anos e, ao mesmo tempo, sugere a importância de mudanças urgentes.
“São mais de 40 anos pesquisando a Amazônia. Nesta exposição há fotos de 1998, do início do ano 2000, em um total de 48 viagens”, conta Sebastião Salgado. “Eu aprendi o que são as chuvas na Amazônia, o que são os rios aéreos. Eu aprendi sobre a importância da integração do ser humano e com a biodiversidade, descobri que nós somos a biodiversidade.”
Sebastião Salgado, mineiro de Aymorés, nasceu em 8 de fevereiro de 1944. Formado em Economia pela Universidade Federal do Espírito Santo, fez mestrado na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, concluído em 1967. E o doutorado, na Universidade de Paris, na França, em 1971. Mas, dois anos depois, decidiu ser fotógrafo. Uma carreira que começou manuseando a máquina fotográfica de sua então namorada e atual curadora e cenógrafa de Amazônia.
Sebastião e Lélia Wanick Salgado lembram que as imagens revelam “uma Amazônia desconhecida que surpreende com a cultura e a engenhosidade de seus povos, seus mistérios, sua força e sua incomparável beleza”. Reconhecem que “graças à impenetrabilidade da selva os povos puderam preservar seus modos de vida tradicionais por séculos. Mas hoje a sobrevivência dessa população e da floresta está seriamente ameaçada”.
Logo na entrada da exposição, o texto assinado por Sebastião e Lélia Salgado reitera: “Estas imagens são um testemunho do que ainda existe, antes que mais comece a desaparecer. Para que a vida e a natureza superem o extermínio e a destruição, é dever dos seres humanos de todo o planeta participarem de sua proteção”.
“No Sesc Pompeia, a dimensão humana da fotografia de Sebastião Salgado é forma de expressão e meio de conscientização.”
Basta ver o grande painel com a primeira imagem da floresta para o visitante se deixar mergulhar na Amazônia. As imagens vão recepcionando e abraçando a todos com a sua generosidade. Diferente do pânico que se espalhou há poucas semanas, quando se via pela TV, jornais e internet a busca pelos corpos assassinados no Vale do Javari. É uma floresta viva.
“Ao projetar Amazônia, quis criar um ambiente em que o visitante se sentisse dentro da floresta, imerso em sua exuberante vegetação e no cotidiano de suas populações locais”, explica a curadora Lélia. “Além de imagens de vários formatos suspensas em diferentes alturas, no centro da exposição há espaços que lembram as ocas indígenas, para evocar a vida humana no coração da floresta.”
É exatamente o preto-e-branco desse coração que o professor Atílio Avancini, docente de Fotojornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e também fotógrafo, orienta os alunos a escutar e aprender. Incentiva os estudantes a aproveitarem as férias de julho para visitar a mostra. “Sebastião Salgado faz parte da primeira geração de fotógrafos em que a reportagem fotográfica começa a migrar para museus, galerias e fotolivros”, explica. “Em Amazônia, a dimensão humana da fotografia de Sebastião Salgado é forma de expressão e meio de conscientização.”
Avancini ressalta que a dimensão autoral de Sebastião Salgado na mostra encontra expressão e ressignificação. “Interessado pelas condições de vida e de resistência cultural de 12 comunidades indígenas no coração da Amazônia, a atuação de Salgado acontece como política de memória diante da premente necessidade de preservar os povos indígenas e o ambiente. Evidencia-se a tradição do humanismo, dentro da visão de alteridade, nessa atividade de fotojornalismo cultural.”
Enquanto estiver observando as imagens, o visitante vai ouvir os sons da floresta. Mas não é mera sensação. O vento entre as folhas das árvores, o canto e voo dos pássaros, a conversa dos animais e o som das águas nas montanhas foram captados em uma música de fundo criada especialmente para a exposição pelo músico francês Jean-Michel Jarre.
“Essas fotos mostram os indígenas em toda sua beleza e elegância únicas, separando-os da exuberância da floresta.”
Os retratos dos indígenas, com seu olhar altivo, orgulhoso de sua cultura e história, chamam a atenção. Um deles é do professor Sina, da aldeia Maronal. A pintura corporal foi feita com jenipapo misturado com cinzas, para fixar a tinta. É feita para espantar panema, ou seja, azar ou preguiça. A pintura vermelha, de urucum, é usada nas festas do milho e nas guerras.
Também o líder Wino Këyasheni, ou Beto Marubo, impressiona pelos traços fortes e postura firme. Seu corpo é realçado com a pintura de jenipapo. Os Marubo, como outros povos indígenas do extremo oeste da Amazônia, têm, em sua mitologia, forte influência da memória de suas relações com o império inca. Hoje a população conta com pouco mais de 2 mil indígenas. A terra indígena Vale do Javari, onde habitam, tem 8,5 milhões de hectares e é uma das maiores do País. Um lugar que reúne outras etnias, como os Korubo, Matis, Matsés e Katukina, entre outros grupos isolados.
Salgado conta como fez os retratos, produzidos em um estúdio especialmente montado por seus assistentes sob a sombra das árvores. “Em minhas visitas aos indígenas, sempre carregava numa grande sacola uma tela de 6×9 metros para servir de fundo para sessões de retratos”, explica. “Essas fotos mostram os indígenas em toda sua beleza e elegância únicas, separando-os da exuberância da floresta.”
“Interessante observar como essas imagens contrastam com as imagens midiáticas que estão trazendo à tona a realidade bruta e violenta presente na Amazônia.”
A exposição Amazônia já foi apresentada em Paris, Londres e Roma, com recorde de público. Depois de São Paulo, será apresentada no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e seguirá também por outras cidades.
No Sesc Pompeia, a movimentação surpreende. “As fotografias de Sebastião Salgado nos transportam para uma floresta que muitos desconhecem”, comenta a fonoaudióloga Maria do Carmo Branco. “Sou uma entusiasta da fotografia. Acompanho todas as exposições de Sebastião Salgado. Diante dos fatos recentes, ver e conhecer os povos que habitam a floresta têm uma importância muito grande. O trabalho de Salgado nos leva a refletir e questionar a destruição da Amazônia.”
Um casal – o engenheiro Carlo Giordano, de 86 anos, e a socióloga Fátima Nunes, de 73 – observa e comenta as imagens e vídeos. “Nós conhecemos o Vale do Javari, onde Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados. E não nos conformamos. Fomos até lá numa expedição, há dez anos, e não sentimos nenhuma ameaça. Pelo contrário”, conta Fátima. “O que aconteceu? O que fizeram com aquela realidade?”
A pergunta fica no ar. Uma família jovem – os publicitários Alexandre Maeda e Bruna Rassi e o filho Noa – visitam a exposição. “Essas fotos mostram uma Amazônia que resiste”, diz Bruna, examinando os detalhes de uma imagem com crianças indígenas brincando e outra de uma índia posando atrás de um esqueleto de macaco.
Diante do impacto das fotos, o professor Wagner Souza e Silva, também docente de Fotojornalismo da ECA, observa: “Precisamos reconhecer a relevância de Sebastião Salgado por dar projeção ao Brasil através da linguagem fotográfica. Salgado sempre teoriza temas de grande relevância social. Acho que, neste caso, com uma ampla documentação voltada para o ambiente da Amazônia, temos a prioridade das imagens que buscam retratar toda a monumentalidade e toda a riqueza das paisagens, da cultura e história dos povos que ali habitam.”
O professor também aponta: “É interessante observar como essas imagens contrastam com as imagens midiáticas que estão trazendo à tona a realidade bruta e violenta presente na região”. E alerta: “Esse contraste acaba dramatizando a discussão e nos permite notar com maior clareza a importância e gravidade da situação atual e como precisamos debater esse tema a partir da sua complexidade e relevância”.
Fonte: Jornal USP