Escândalo de internações involuntárias estendidas até pacientes pagarem dívidas envolve enorme rede privada dos EUA. De capital aberto, seus lucros eram crescentes – inclusive com verba pública. Caso serve de alerta sobre riscos das comunidades terapêuticas no Brasil
Na semana passada, uma enorme rede psiquiátrica privada norte-americana, a Acadia Healthcare, foi condenada a pagar US$20 milhões em danos por uma série de crimes. As investigações seguem, e podem gerar mais punições. São as primeiras consequências de uma revelação bombástica de uma recente reportagem do jornal The New York Times: a origem dos crescentes lucros desse grupo econômico que atua na saúde privada, cujas ações no mercado financeiro dobraram de valor desde a pandemia, reside em uma política interna de aprisionamento forçado de pacientes em seus hospitais.
O modus operandi é o da enganação: pessoas que procuram os hospitais da Acadia Healthcare para serviços meramente ambulatoriais ou de emergência são internadas sob alegações frágeis de que estariam passando por crises psiquiátricas agudas que exigem cuidados de longo-prazo. Depois de presas, sua permanência na instituição é renovada com justificativas ridículas como dizer que o paciente “não termina suas refeições”. Como os preços para a diária de internação são altos, eles rapidamente não têm mais dinheiro para pagá-las – e são obrigados a ficar até que suas famílias paguem as dívidas.
Situações assim foram verificadas em 12 estados diferentes dos Estados Unidos onde a Acadia Healthcare possui hospitais. Os números assustam. De 2019 e 2023, um só hospital da rede, na Flórida, expediu 4,5 mil pedidos de extensão da internação involuntária de seus pacientes. No total, são dezenas de milhares de “sequestrados”.
Vale lembrar que cenários como esse não são desconhecidos da história de nosso país, como conta o psiquiatra e professor da Escola Nacional de Saúde Pública Paulo Amarante: “Essa situação de instituições promoverem sequestros foi o que, aqui no Brasil, desencadeou o processo da Reforma Psiquiátrica no final dos anos 1970. Chegamos a ter o exemplo da Casa de Saúde Doutor Eiras, em Paracambi (RJ), cujo proprietário era Leonel Tavares Miranda de Albuquerque, ministro da Saúde que foi um dos signatários do AI-5. Ela chegou a ter 2,5 mil leitos e ainda mais pessoas internadas, com todas as diárias pagas pelo poder público e muitas mortes registradas”.
O caso nos EUA também chama atenção pelo uso de dinheiro público para infringir os direitos humanos dos pacientes: mais da metade do faturamento da Acadia Healthcare no último período veio de seguros de saúde subsidiados pelo Estado norte-americano. No Brasil, alerta a professora da USP Cláudia Braga, uma dinâmica similar vem acontecendo com as chamadas “comunidades terapêuticas”, verdadeiros novos manicômios administrados por organizações religiosas com verbas governamentais.
Agressões, pressões e manobras judiciais
A reportagem do New York Times revela que a Acadia Healthcare cultivava relações com policiais e paramédicos para influenciá-los a levar pessoas em crise de saúde mental, mesmo que leves, para os hospitais da empresa. A orientação proposta era tenebrosa e contrária aos protocolos correntes: “pule a emergência” (skip the ER room, em inglês), mande-os diretamente para a internação. Em um relatório governamental, uma trabalhadora conta que recebia e-mails, ligações e mensagens de texto todos os dias com pressões para que mais pessoas fossem encaminhadas aos equipamentos da Acadia.
Os relatos colhidos pelo jornal norte-americano também demonstram que, além de serem levados aos hospitais psiquiátricos sem seu consentimento, os pacientes eram submetidos a uma rotina de agressões físicas e psicológicas, além de administração inadequada de medicamentos. Inspeções do governo falam de “estupros, agressões e condições imundas” e de “pacientes que não recebiam terapia”. Não há nenhum indício de que eles recebiam qualquer cuidado real nas instalações da Acadia Healthcare.
Depois das agressões, a porta se fechava definitivamente atrás das vítimas. “Se o seguro de saúde ainda pagaria mais dias, nós segurávamos o paciente”, admitiu Jessie Roeder, executiva de um dos hospitais da empresa. Para isso, os relatórios internos sobre a evolução das crises sempre continham palavras-chave: os pacientes eram “combativos” e “não-cooperativos” – frases agressivas atribuídas a eles chegaram a ser inventadas e incluídas nos documentos, para “comprovar” sua situação –, descrevê-los como “calmos” ou “colaborativos” estava proibido aos funcionários e o tratamento intensivo deveria ser apresentado como sempre necessário.
Eram frágeis as razões apresentadas para mantê-los presos, a exemplo de “pular uma refeição” ou “faltar a uma sessão de terapia em grupo”. Brechas na legislação de estados como a Flórida permitiam que, mesmo com alegações insustentáveis como essas, os hospitais fossem autorizados a manter os pacientes sequestrados até que as cortes locais julgassem os pedidos de internação, o que pode demorar vários dias.
Históricos médicos revisados pela Justiça norte-americana mostram que pacientes que não apresentavam risco para si ou outros ficaram internados por longos períodos contra sua vontade. E pior: pagando até 2,2 mil dólares por diária. Quando seus entes queridos faziam menção de buscar apoio no Poder Judiciário para libertá-los, a própria Acadia Healthcare é que recorria à Justiça para prendê-los.
“Essa é a indústria da loucura, a pessoa fica internada de forma involuntária por tempo indefinido sem isso significar nenhuma forma de cuidado”, avalia a professora Claudia Braga. “Quem se beneficia com essas internações involuntárias com ganhos financeiros são a indústria farmacêutica e os donos de hospitais psiquiátricos. Esse caso da Acadia HealthCare coloca em questão a importância da fiscalização de hospitais psiquiátricos privados, já que eles também têm que estar alinhados à garantia de direitos humanos”, ela completa.
“No país que se denomina o guardião da cidadania, dos direitos humanos e da democracia, você ainda pode ver uma situação tão absurda como essa: cárcere privado, internações involuntárias e violência. A história lembra a do filme Alta Ansiedade (1977), com o Mel Brooks, que conta a história de um hospital psiquiátrico que exercita todas essas práticas”, complementa Paulo Amarante.
Violações têm origem em modelo violento
Pouco mais de um mês após a revelação do escândalo, a condenação em US$20 milhões é a primeira punição sofrida pelo grupo de saúde privada associado aos crimes. Porém, de forma mais ampla, ambos os especialistas apontam que o escândalo da Acadia Healthcare está intimamente conectado a uma concepção violenta e aprisionadora do tratamento de saúde mental, favorecida por muitas empresas da saúde privada por trazer a possibilidade de mais lucros.
“Na verdade, isso acontece muito por causa de um modelo da psiquiatria que considera que qualquer pessoa que passa por um momento difícil para sua saúde mental já perdeu a razão e o discernimento, está incapaz de julgar a realidade. Associada a essa ideia de irracionalidade, está a ideia de periculosidade dessa pessoa. A questão é que os sintomas que eles dizem que são próprios da doença na verdade surgem exatamente das práticas de institucionalização, opressão e constrangimento, quebra de vínculos sociais e familiares, desligamento do trabalho e do cuidado, proibição de contatos e por aí vai”, explica Paulo Amarante.
Reforçando que não há mais qualquer base para que os hospitais psiquiátricos implementem essas medidas de restrição, Claudia cita que uma resolução de 2016 da ONU já determinou “a obrigação dos Estados em proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas, assegurando políticas e serviços de saúde mental alinhadas aos direitos humanos, e de eliminar todas as formas de violência contra pessoas com problemas de saúde mental”.
“Isso é importante de ser mencionado porque não estamos mais em um momento da saúde mental global em que há ‘modelos’ em discussão, esse tempo ficou para trás. Os relatórios e resoluções adotadas pela ONU e as diretrizes da OMS, em particular após essa resolução, colocam enfaticamente a necessidade de promover cuidado em liberdade e de adotar medidas para assegurar que as pessoas não sofram violências e não sejam institucionalizadas”, ela explica.
A professora da USP adiciona que a internação involuntária ilegal não é a única prática equivocada dos empresários da saúde no âmbito da psiquiatria, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.“Temos na saúde privada um modelo ruim de de cuidado baseado em medicação e um número pré-determinado de sessões financiado, por exemplo, por seguros de saúde. O tempo do cuidado em saúde mental não pode ser medido pelo cálculo do lucro ou prejuízo de uma seguradora”, opina.
No Brasil, uma ameaça similar
Em nosso país, casos mais diretamente similares ao da Acadia HealthCare eram mais comuns antes do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, que toma fôlego a partir dos anos 1970. “Na época, o professor Carlos Gentili Melo criticava o fato de que os valores que o governo repassava às empresas privadas por diárias de internação era um fator incontrolável de corrupção. Outro psiquiatra, o professor Luiz Cerqueira, chamou de ‘indústria da loucura’ aquele monte de hospitais psiquiátricos privados que, por receberem diárias do poder público pelas internações, não davam alta aos pacientes, não informaram as famílias e mantinham esse cárcere privado o máximo de tempo possível”, explica Paulo Amarante.
A inviabilidade e inutilidade desse velho modelo foram demonstradas na prática pelas novas propostas para o cuidado em saúde mental, continua Amarante: “Com a Reforma Psiquiátrica nós demonstramos que as pessoas bem cuidadas e bem atendidas na hora da crise não tem nada disso. Atividades de trabalho, arte, cultura, ou seja, de atenção psicossocial efetiva, permanente e intensiva, como passou a ser feito com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – inclusive com leitos de internação para momentos de crise –, dão um resultado completamente diferente daquela internação em que a pessoa era trancafiada numa enfermeira de quatrocentas pessoas, sem condições mínimas de hotelaria e com uso de métodos violentos e invasivos, como eletrochoque e cela forte”.
Hoje, explicam Paulo e Claudia, ainda existem hospitais psiquiátricos privados conveniados ao SUS, que recebem valores determinados por cada pessoa internada. De acordo com as leis, essas instituições são fiscalizadas pelo Ministério Público. Esses hospitais, por vezes, ainda são denunciados por suas práticas. Contudo, os especialistas avaliam como muito mais problemático (e como um fator impulsionador de uma “contrarreforma psiquiátrica” sorrateira) o crescimento das chamadas comunidades terapêuticas por todo o país, entidades privadas – muitas vezes ligadas a igrejas – que se propõem a fazer intervenções em pessoas que passam por problemas de saúde mental e drogadição e para isso recebem orçamento estatal.
Pouquíssimo transparentes em termos de sua gestão e práticas clínicas, as comunidades terapêuticas são associadas a doutrinação religiosa, internações involuntárias ilegais, e até mesmo espancamento, tortura e morte de internos. O relatório de uma inspeção promovida nacionalmente nas CTs pelo Ministério Público Federal e o Conselho Federal de Psicologia confirma essas informações. Mesmo assim, recebem verbas de prefeituras, governos estaduais e até mesmo do Ministério do Desenvolvimento Social, do ministro Wellington Dias (PT-PI).
“Enquanto no caso da Acadia HealthCare o financiamento [público] é para internação de uma pessoa específica, com nome, sobrenome e documento, no caso das comunidades terapêuticas o financiamento é da vaga. Nós não sabemos nem quem estará ali dentro de uma comunidade terapêutica qualquer. Isso é um agravante da situação e pode levar a violações de direitos humanos ainda maiores”, alerta Claudia Braga.
Assim como a rede americana envolvida no recente escândalo, as CTs trabalham com a ameaça de uma suposta “periculosidade social” dos internados, na maior parte das vezes infundada, para estender indefinidamente seu sequestro, ela adiciona. A velha lógica manicomial está no âmago dessas argumentações.
Fiscalização mais firme e processos de reforma psiquiátrica são urgentes
Para enfrentar essas violações de direitos vistas nos EUA e no Brasil, Amarante sugere o estudo de mecanismos para garantir maior transparência dos equipamentos de saúde mental que já existem em outros países. “Na Argentina, que aprovou sua Lei Nacional de Saúde Mental em 2010, se criou um órgão nacional de revisão de internações muito eficiente, que visita as instituições psiquiátricas, vê todos os prontuários, apura se a pessoa foi internada por vontade própria e se a família foi consultada. É uma orientação muito importante, na qual a gente pode se inspirar aqui no Brasil para ter uma efetiva avaliação das instituições psiquiátricas, inclusive as comunidades terapêuticas”, exemplifica o veterano pesquisador da Fiocruz.
“Hoje, nós não temos acesso a informações de como elas funcionam, como internam, quanto tempo as pessoas ficam. Elas não estão sob a égide do Ministério da Saúde e nem da vigilância sanitária. Elas não são nem comunidades e nem terapêuticas”, conclui o professor da Escola Nacional de Saúde Pública.
A adoção de processos de reforma psiquiátrica que coloquem as pessoas e suas necessidades no centro do cuidado em saúde mental, adiciona Claudia Braga, é a única forma de erradicar escândalos como o denunciado pelo New York Times nos hospitais privados norte-americanos.
Para a professora da USP, “é evidente que manter uma pessoa em um hospital psiquiátrico contra a sua vontade apenas para obtenção de lucro nunca pode ser entendido como cuidado”.
Fonte: Outra Saúde Foto: Michael Adno