Versão de Marcelo Cavallari evita termos que ganharam novos sentidos depois de escritos, como “anjo” e “Cristo”
Por Roberto C. G. CastroEditorias: Cultura – URL Curta: jornal.usp.br/?p=379214
“E falou a eles o núncio: ‘Não temais, pois – Vê! – bem-anunciamos a vós uma alegria grande a qual será para todo o povo porque foi parido para vós hoje um salvador que é ungido senhor em cidade de Davi. E este sinal para vós: achareis um bebê envolvido em cueiros e deitado em cocho’.”
Assim foi anunciado o nascimento de Jesus Cristo, segundo o Evangelho de Lucas, na versão do jornalista e tradutor Marcelo Musa Cavallari. É um trecho extraído do livro Os Evangelhos – Uma Tradução, recentemente publicado pela Ateliê Editorial, em coedição com a Editora Mnema. Bilíngue (grego-português), a obra traz a tradução, direta do grego original, dos quatro Evangelhos – Mateus, Marcos, Lucas e João -, feita por Cavallari, que também é autor da apresentação e das notas.
Na apresentação, Cavallari explica os critérios que orientaram a sua tradução, em que não aparecem termos comuns nas versões tradicionais dos Evangelhos, como “anjo” e “batismo”. “Não há absolutamente nada de errado com essas palavras do ponto de vista do significado que vieram a ter ao longo dos séculos de cristianismo”, escreve o jornalista. “Elas são, no entanto, simples transliterações de palavras gregas. Quando foram escolhidas pelos evangelistas, tinham significados conhecidos por todos e não era o significado técnico ou teológico que se cristalizou em torno delas.”
É por isso que, em sua versão dos textos sagrados do cristianismo, Cavallari substituiu “anjo” por “núncio” (mensageiro), por exemplo, e, em vez de grafar “Cristo”, utilizou “ungido”. “Preteri a palavra ‘anjo’, que vem etimologicamente de ángelos, ou, antes, é uma simples transliteração da palavra grega, porque ela não significa ‘mensageiro’ em português. Significa ‘anjo’”, explica o jornalista numa das 591 notas que acompanham a tradução.
Quanto à palavra “Cristo”, trata-se apenas de uma transliteração. “‘Cristo’ vem de khristós, particípio perfeito do verbo khrío, em seu sentido de ‘untar’. Os escolhidos de Deus para o sacerdócio, como Arão, ou para reinar sobre Israel, como Davi, eram ungidos com azeite, assim como o altar dos sacrifícios, para só então exercer suas funções. Jesus é o ungido por excelência.”
A palavra “fé” – pístis em grego – também não aparece nos quatro Evangelhos, de acordo com a tradução de Cavallari. No lugar dela, surge o termo “confiança”, como no trecho em que Jesus recomenda a seus discípulos: “Amém de fato digo a vós: quando tenhais confiança como grão de mostarda, direis a este monte: ‘Anda daqui para lá’, e andará. E nada será impossível para vós”. “Embora as duas palavras tenham a mesma raiz, ‘fé’ adquiriu um sentido mais estritamente religioso que pístis não tinha”, justifica o jornalista.
Em vez de “batismo”, lê-se “mergulho” na versão de Cavallari. Citado nos quatro Evangelhos, o profeta João é “João, o que mergulha” – e não “João Batista” -, e as multidões que vão a ele eram “mergulhadas” no rio Jordão. Quando o próprio Jesus se encaminha para João, às margens do Jordão, o profeta lhe diz: “Eu tenho necessidade de por ti ser mergulhado e tu vens a mim?”. Cavallari sustenta: “‘Mergulhar traduz o termo baptízo. O termo se refere a mergulhar alguma coisa em um líquido e era muito presente na linguagem de alguns ofícios, como o dos tintureiros e ferreiros. Mergulhando o tecido numa tinta cheia de corante, mudava-se a cor do tecido. Mergulhando-se a ferramenta de ferro recém-forjada ainda quente na água, transformava-se o ferro em aço. É possivelmente por seu caráter de mudar instantaneamente algo, a cor do tecido ou a natureza da matéria, que se usa o termo para o ritual instituído por João, que ‘mudava a mente’”.
Já “pecado” está próximo do latim peccatum e distante do grego. Nas versões tradicionais, essa palavra traduz o termo original hamartía, que Cavallari verte simplesmente para “erro”. Por isso, as palavras que Jesus dirige a um paralítico na aldeia de Cafarnaum soam assim na versão do jornalista: “Coragem, filho, teus erros se foram”.
“Não tenho nenhuma pretensão de que minha tradução seja mais correta do que outras que usam todas essas palavras”, afirma Cavallari, ainda na apresentação da sua tradução, referindo-se aos termos utilizados nas versões tradicionais dos Evangelhos que ele dispensou. “Apenas quis fazer soar aos ouvidos de um leitor da língua portuguesa as mesmas ressonâncias e ecos de significado que o leitor de grego experimenta diante do texto original.”
Nascido em São Paulo em 1960, Cavallari é formado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde foi aluno de dois grandes mestres do grego e do latim, Isis Borges Belchior da Fonseca e José Cavalcante de Souza, a quem ele dedica postumamente a sua tradução dos Evangelhos. Ali também teve como mestre o professor João Angelo Oliva Neto, autor do prefácio do volume lançado pelas Editoras Ateliê e Mnema. Como jornalista, trabalhou na Folha de S. Paulo e na revista Época.
Os Evangelhos – Uma Tradução, edição bilíngue (grego-português), tradução, apresentação e notas de Marcelo Musa Cavallari, Ateliê Editorial e Editora Mnema, 512 páginas, R$ 125,00.