Exigido pela Fuvest, livro de Bernardo Carvalho narra a história de um suicídio e revela biografia do autor
Por Claudia Costa
O antropólogo americano Buell Quain, aos 27 anos, em 1939, se suicidou após uma estada na aldeia dos índios krahô, situada no Tocantins, no Brasil, quando regressava para a cidade de Carolina. No meio da floresta, Quain, sem motivos aparentes, retalhou-se e enforcou-se na frente de dois índios que fugiram apavorados diante do horror e do sangue. A história de Quain é verdadeira. O escritor carioca Bernardo Carvalho soube do fato através de um artigo publicado no Jornal de Resenhas, da Folha de S. Paulo, escrito pela antropóloga Mariza Corrêa, em que o caso foi citado apenas de passagem. Em busca de mais dados sobre a morte do antropólogo, mas sem sucesso, o autor resolveu ele mesmo relembrar essa história, adicionando fatos autobiográficos, no romance Nove Noites. O livro integra, neste ano, a lista de leituras obrigatórias da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), exame para entrada na Universidade de São Paulo.
A capa de uma das edições do livro traz uma foto de Carvalho, ainda criança, ao lado de um índio do Xingu. Do final dos anos 60, mostra um menino que, contrariado, frequentou aquela região enquanto acompanhava o pai nas viagens pelas suas fazendas de Mato Grosso e Goiás. Mais de 30 anos depois, já escritor, ele se empenha em reconstruir a trajetória de Quain. O restante do romance é um suspense, e o leitor não consegue separar realidade de ficção, romance de texto jornalístico. Ou, como o próprio autor define nos Agradecimentos: “Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação – como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta”.
Sexto livro de Bernardo Carvalho, Nove Noites – Prêmio Portugal Telecom (2003) e Prêmio Machado de Assis conferido ao melhor romance do ano pela Biblioteca Nacional (2003) – é um fenômeno da literatura contemporânea denominado metaficção historiográfica, como informa o professor Emerson Cruz Inácio, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “A metaficção é um dado da história cultural, da História com H maiúsculo, da história política e ideológica, ou outra que for, ou seja, um dado real que é tomado de empréstimo e se torna a partir daí uma motivação ficcional”, explica. Ele continua: “Isso está associado à dificuldade que o narrador – ou um dos narradores, se a gente preferir – tem de lidar tanto com esse trauma que o persegue quanto com essa morte suspeita, misteriosa e estranha do etnólogo”. Para Inácio, o mais interessante é que os dois planos narrativos se complementam.
É uma biografia dupla, de alguém que não pode narrar porque já está morto e do narrador-jornalista que se autobiografa nesse processo e vai preenchendo os espaços com elementos eminentemente inventivos.”
Nada tradicional, a narrativa está organizada em 19 capítulos numerados, e possui dois narradores. “O primeiro, Manoel Perna, fica profundamente traumatizado pela situação que envolve a morte; e o segundo vem carregado de um trauma, uma experiência pessoal cheia de marcas – o jornalista, cujo pai será acometido por uma doença e que precisa viajar para resgatar histórias e recompor a própria subjetividade”, explica Inácio. “É um jogo ficcional ou de invenção entre os dois narradores, em que os leitores vão sendo ‘enganados’.”
Como ressalta o professor, a primeira edição do romance, publicada em 2002 pela Editora Companhia das Letras, apresenta, por exemplo, as falas do narrador ficcional Manoel Perna em itálico e as falas do narrador biógrafo (o próprio Bernardo Carvalho) em cursiva romana, mas as edições mais recentes não têm essa diferenciação.
“É uma biografia dupla. De alguém que não pode narrar porque já está morto, próxima de outros relatos que conhecemos na literatura brasileira, como Quincas Borba e o próprio clássico machadiano Memórias Póstumas de Brás Cubas, e, de certa maneira, Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Essa primeira biografia não pode ser narrada porque há fragmentos apenas dos posicionamentos de Buell Quain, que não esclarecem nada. A segunda é do narrador-jornalista, que também se autobiografa nesse processo e que vai preenchendo os espaços com elementos eminentemente inventivos”, esclarece o professor. “Portanto cabe aos dois narradores ir completando esse enorme mosaico, cujas peças não se encaixam porque não há no final da narrativa uma explicação lógica para aquela morte.” Mesmo que não haja uma conclusão, não chega a ser uma solução em aberto, como afirma o professor. “Mas há um momento em que esse narrador se exaure diante da impossibilidade de recompor todos os fatos.”
O autor chega a inserir na história fotos e personagens reais ou imaginários da década de 1930, incluindo entrevistas com pessoas que estiveram com Quain, arquivos públicos e memórias deixadas em cartas e bilhetes escritos pelo próprio antropólogo. Mas, segundo Inácio, nada disso é suficiente para o esclarecimento do mistério que se estabelece. “De certa maneira, isso talvez tenha motivado a escrita do livro, e aí essa presença de um narrador tão identificado, como Bernardo Carvalho como ele mesmo, seja justamente a consciência do mistério. E uma outra consciência mais forte ainda, que é a impossibilidade de se reconstituir a memória, porque a memória em algum nível é sempre uma invenção”, analisa. Para Inácio, há sempre uma falha de ligação entre um elemento narrativo e outro, o que está longe de ser um defeito. “Muito pelo contrário, é um elemento constituinte do que está sendo narrado. A memória não pode ser resgatada na totalidade e esses espaços constituem mistérios talvez inalcançáveis pelo leitor. Nesse sentido, ele nos convida, como leitor, a participar do texto também, justamente porque nós somos responsáveis por inferir possíveis soluções para todos esses mistérios.”
O transcorrer do próprio tempo e também as cartas que são trocadas, uma por noite, além da questão da novena e do signo da noite, apontam para o título do romance.”
Embora diferentes, Buell Quain e Bernardo Carvalho têm motivações que os aproximam, como a educação repressiva. “Eles levam essas opressões para suas vidas, um termina por resolver se matando e o outro narrando. Eles expurgam as próprias dores de alguma forma, um contando e tentando desfazer o segredo, o outro levando o segredo ao paroxismo, ao extremo”, explica. O professor ainda lembra que é preciso levar em consideração que uma biografia pressupõe que o elemento narrado é verídico, quando na verdade é sempre um recorte dessas memórias, e por isso metonímico. Por outro lado, diz, quando se tem essas aproximações entre os dois narradores de Nove Noites, há um processo alegórico em que, a certa altura, o leitor começa a se questionar a respeito de sobre quem de fato é essa história. “Buell Quain pode ser lido como uma desculpa para que esse narrador, em primeira pessoa, expurgue seus próprios males, seus próprios medos.”
Acerca do título do romance, Nove Noites, o professor pontua várias motivações. “O tempo de viagem entre a região em que vivia a tribo indígena que Buell Quain estudava, ou seja, o transcorrer do próprio tempo, e também as cartas que são trocadas, uma por noite, com o narrador fictício.” Além disso, Inácio atenta para a questão da novena, gesto religioso de contrição em favor e louvor de algo que tem duração de nove dias, e para o signo da noite que aponta para esses dados que sempre permanecerão na penumbra.
As razões do suicídio serão sempre guardadas por essa escuridão, pelo silêncio dessa noite.”
Além disso, Inácio enumera três pontos que formam um conjunto de estratégias narrativas que Bernardo Carvalho persegue em suas obras. O primeiro são as experiências de viagem, ou seja, são sempre narradores que tematizam viagens, sob uma perspectiva do século 19, “dessa figura que gosta de vagar e vagando observa e narra”. Outro aspecto é o dado inusitado, “algo que acomete de paixão e obsessão esse personagem-narrador que é quase imposto à necessidade de narrar”. E, por último, uma releitura segundo análise de pesquisadores mais atentos à obra de Bernardo Carvalho, como diz o professor, citando Denise Franco, que vê na dicção do autor uma reconfiguração do modelo de narrativa de mistério. “São detetives excêntricos, que não atendem àquele modelo comum de detetives que estamos acostumados a ver em filmes noir, das narrativas francesas e inglesas, sempre em busca de uma verdade que muitas vezes põe em risco suas próprias vidas”, explica, acrescentando que no caso de Nove Noites “o narrador se constrói em perspectivas bem confortáveis, mas não menos incômodas”.
Para o professor, o jogo detetivesco de se descobrir o que se passa na história do outro, mas também com esse mesmo jogo descobrir o que se passa comigo (no caso, o autor-narrador), é o que potencializa a leitura de Nove Noites. Como ele diz, é uma narrativa de descobertas e também de uma leitura de um certo Brasil, dos anos 40, e de um Brasil mais contemporâneo, que levanta ainda o debate sobre a relação com o povo indígena. “A questão indígena também é um traço potente, sobretudo porque Bernardo Carvalho não vitimiza o índio. Ao contrário, percebe nos índios questões muito humanas, diferente de outras narrativas dos anos 70 e 80, como Quarup, de Antônio Calado, e Maíra, de Darcy Ribeiro, que, se não são narrativas que subalternizam o índio, olham para eles com condescendência. O narrador-jornalista não faz isso em momento nenhum. Os índios são percebidos em sua humanidade, em sua individualidade, em seu relevo como seres humanos”, compara o professor. E essa é sua dica para os vestibulandos: “é sempre importante pensar em perspectivas de contraste e de comparação”.