Professores e pesquisadores da USP são unânimes em concordar com o incentivo do Ministério da Cultura às artes na educação
Texto: Leila Kiyomura e Gustavo Xavier – Arte: Guilherme Castro – Domingo, 05/03/23
““O que ocorreu no dia 8 de janeiro, com os ataques às obras de arte nos palácios dos Três Poderes, é resultado do descaso do governo com a arte e a educação”, protesta Ana Mae Barbosa, Professora Emérita da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ex-diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP, curadora de exposições de arte brasileira em mais de 30 países e uma das pioneiras na América Latina na defesa da arte-educação há seis décadas. “O aprendizado da arte desenvolve a inteligência e a percepção da imagem para todas as áreas, estimulando o estudante a olhar e a pensar o mundo”, afirma.
Nesta edição, o Jornal da USPcontinua ouvindo e divulgando o depoimento dos professores e pesquisadores da Universidade de São Paulo sobre a importância da cultura como base da democracia e transformação da sociedade. Com suas pesquisas e conhecimento, os especialistas trazem suas reflexões e pontuam sugestões para a trajetória do Ministério da Cultura (MinC), lembrando – como bem aponta o Programa Eixos Temáticos da USP, iniciativa da Reitoria da Universidade de São Paulo – que a cultura atrelada às artes e educação funciona como um farol da sociedade, iluminando o futuro e contribuindo com os grandes desafios do nosso tempo.
No decorrer desta página, os leitores irão observar e contemplar as obras de Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque (RJ, 1897-1976), o conhecido Di Cavalcanti, idealizador da Semana de Arte Moderna e um dos principais pintores que registraram, com lirismo, a gente e a cultura do povo.
Veja os depoimentos dos professores e especialistas da USP:
“A arte faz parte de uma educação integral. É fundamental para estimular a criatividade, a imaginação, as habilidades motoras, a inteligência racional, a afetividade e emoção”
“Se quem atacou a obra de Di Cavalcanti com facadas tivesse tido aulas de Educação Artística, isto não teria acontecido. Com certeza. Mas o ensino das artes foi suprimido da educação básica como disciplina obrigatória. E o pior é que, em alguns estados do País, são os diretores das escolas que decidem se deve ou não ter atividades de educação artística”, observa Ana Mae Barbosa.
A professora defende:
“A arte desenvolve a inteligência e a percepção da imagem para todas as áreas. Retirar esse aprendizado como disciplina é prejudicial para o desenvolvimento e formação cultural e humana dos adolescentes. Também o aprendizado da arte é essencial para o desenvolvimento das crianças, desde pequeninas. A arte faz parte de uma educação integral. É fundamental para estimular a criatividade, a imaginação, as habilidades motoras, a inteligência racional, a afetividade e a emoção.
Através das artes temos a representação simbólica dos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam a sociedade ou o grupo social, seu modo de vida, seu sistema de valores, suas tradições e crenças. A arte, como uma linguagem dos sentidos, transmite significados que não podem ser transmitidos através de nenhum outro tipo de linguagem, tais como as discursivas e científicas. Não podemos entender a cultura de um país sem conhecer sua arte. Aqueles que estão engajados na tarefa vital de fundar a identificação cultural, não podem alcançar um resultado significativo sem o conhecimento das artes. Dentre as artes, a visual, tendo a imagem como matéria-prima, torna possível a visualização de quem somos, onde estamos e como sentimos. A arte na educação como expressão pessoal é um importante instrumento para a identificação cultural e o desenvolvimento. Através das artes, é possível apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar esta mesma realidade que foi analisada. A arte capacita a não ser um estranho em seu meio ambiente, nem estrangeiro no seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence.
Outra sugestão para o MinC é que seria muito importante, no ensino médio, o aprendizado da arte e do design. Os adolescentes da escola pública não têm oportunidade para descobrir o design ou o que é ser designer. Na periferia, não há dinheiro para comprar livros, jornais, nem comida. Como é que eles vão saber sobre uma profissão de extrema importância, que pretende organizar a sociedade da melhor maneira? Seria excelente para o futuro dos jovens se tivessem a oportunidade de aprender sobre arte e design.”
“O Programa Cultura Viva não só fomentou os pontos de cultura, mas possibilitou os encontros das diferenças com as realizações das ‘Teias’, momentos em que os diversos projetos fomentados se apresentavam e trocavam experiências”
Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes, e também coordenador do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos de Cultura e Comunicação), faz uma análise da atuação do MinC na primeira gestão do PT e salienta a importância de valorizar a diversidade e potencializar a cultura das periferias:
“A grande inovação no MinC no primeiro governo Lula, sob a gestão de Gilberto Gil, foi a criação do Programa Cultura Viva. A concepção do programa, de autoria do intelectual e ativista Célio Turino, é potencializar ações já realizadas por grupos sociais diversos em todo o País, dando visibilidade à diversidade que é realizada de fato em todos os cantos. É a materialização do conceito de do-in expresso pelo então ministro Gilberto Gil: não se trata de criar ou promover, mas potencializar o que já existe. O Programa Cultura Viva não só fomentou os pontos de cultura, mas possibilitou os encontros das diferenças com as realizações das ‘Teias’ (momentos em que os diversos projetos fomentados se apresentavam e trocavam experiências).
Experiências semelhantes e importantes são realizadas em vários municípios, como o Programa Vai e o Fomento à Cultura das Periferias, na cidade de São Paulo (um estudo sobre esta experiência foi feito por um grupo de pesquisadores que coordenei durante o Programa Ano Sabático, do Instituto de Estudos Avançados – IEA, cujos resultados foram publicados em um livro disponível gratuitamente aqui). Há uma nítida evolução na concepção de cultura nestas políticas realizadas. Elas saem de uma concepção restrita, que parte do pressuposto de que existe um grupo pequeno de ‘fazedores da cultura’, e o papel do Estado se restringe a fomentar esse grupo e garantir o acesso. A cultura é um direito não só de acessar, mas também de se expressar.
Partindo da ideia de que a cultura é um direito de acesso e expressão e que a democracia no Brasil ainda é incipiente porque não estendida em termos substantivos para todos, garantir o direito de expressão cultural para grupos sociais histórica e estruturalmente excluídos, como a população negra, indígena, periférica, entre outros, é apontar para uma perspectiva de relação equilibrada entre todos e, assim, caminhar para uma democracia substantiva. Afinal, a palavra cultura vem do latim colere (cultivar). Uma política cultural com esta perspectiva contribui para o cultivo de uma sociabilidade de respeito às diferenças, base para a democracia substantiva para todos.
É fato que o Cultura Viva enfrentou problemas como, por exemplo, o excesso de burocratização que o modelo de parcerias público-privadas impõe e que acabou por afastar muitos grupos e até trouxe problemas graves para as lideranças. A experiência anterior pode auxiliar no seu aperfeiçoamento. Afinal, as teias podem ser tecidas de diversas formas, ainda que em determinados momentos seus pontos se quebrem. O que importa é atentarmos os nossos olhares e sentidos aos caminhos que os sujeitos e sujeitas periféricas fazem e construirmos as verdadeiras cumplicidades e encontros. Como diz o poeta Vinicius de Moraes, ‘a vida é a arte do encontro, embora existam tantos desencontros’ – mas a cultura é vida.”
“É muito importante a abertura de espaços para os jovens e as crianças criarem e terem oportunidades de desfrutar da rica cultura brasileira”
Roseli Fígaro é professora da Escola de Comunicações e Artes da USP e presidente da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compos). Diante dessa experiência e conhecimento, sugere:
“Penso que é urgente para a área da cultura incentivar a (re)criação de centros locais de cultura, comunicação e informação. Ou seja, núcleos que possam incentivar o protagonismo de artistas e comunicadores locais.
É muito importante a abertura de espaços para os jovens e as crianças criarem e terem oportunidades de desfrutar da rica cultura brasileira. Sobretudo, seriam centros para a organização de um pensamento progressista, democrático e civilizatório para fazer frente aos think tanks fascistas e neoliberais.
A memória também é assunto sério para a Cultura e nosso país não é muito bom em preservar suas memórias culturais, artísticas e políticas.”
“A difusão da memória, da história do nosso cinema, é fundamental para que se crie o elo entre o jovem cineasta e o cinema brasileiro’’
O cineasta, professor e crítico de cinema Heitor Capuzzo apresenta ideias importantes para incentivar e valorizar o cinema brasileiro. Mestre e doutor em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, pós-doutor na Escola de Cinema e Televisão da University of Southern California, professor titular da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais e na Escola de Arte, Design e Mídia da Nanyang Technological University de Cingapura, Capuzzo observa:
“Hoje, o problema mais sério do cinema brasileiro é o acesso do público à sua produção e à sua memória. Os filmes, que antes ficavam disponíveis em DVDs nas secretarias de audiovisual e percorriam as escolas, fizeram parte de um projeto muito importante do Ministério da Cultura, mas precisaria haver continuidade em um diálogo com as novas tecnologias. Hoje, ninguém tem mais aparelhos e computadores para DVDs. Diante dessa realidade, não seria melhor ter uma nuvem onde os filmes ficariam disponíveis e, então, as pessoas poderiam ter acesso para streaming? Seria importante um canal oficial do governo que dispusesse a filmoteca brasileira, pelo menos os filmes que pontuam a nossa história.
O Canal Brasil tentou fazer isso. O problema que ocorre hoje é que os streamings estão em alta resolução. Se o Canal Brasil exibir em streaming, a qualidade desses filmes vai ser muito ruim em som e imagem. Isso vai dar a impressão de que o cinema brasileiro não tem nível técnico internacional, o que não é verdade.
Certo é que, por falta de condições ideais para acondicionar os filmes, muita coisa se perdeu. É preciso urgentemente um tratamento de restauração digital. Tenho visto a Hungria restaurando seus filmes, a antiga Tchecoslováquia e também a Bósnia têm canais de restauração de filmes, e até a Argentina, com seus problemas econômicos maiores que os do Brasil, está fazendo isso e tem um arquivo de filmes com boa qualidade de imagem e som.
A Cinemateca também precisaria ter recursos para digitalizar o seu acervo fílmico, mas também bibliográfico. Claro que, paralelamente a isso, a questão da memória é fundamental e isso resulta em um grande vínculo com o público. O acervo não pode ficar restrito só aos museus de São Paulo e Rio de Janeiro.
A difusão da memória, da história do nosso cinema, é fundamental para que se crie o elo entre o jovem cineasta e o cinema brasileiro. Ele pode até criticar, pode até depois ter outros modelos de outras cinematografias, mas o que ele não pode é desconhecer o cinema brasileiro e o que está acontecendo hoje. Infelizmente, hoje a única forma de ter acesso a esses filmes é o acesso ilegal pela pirataria. Se o estudante é ético, fica sem conhecer a memória do cinema brasileiro. O Brasil precisaria repensar uma legislação correta que pudesse facilitar esse acesso.
O jovem cineasta precisa ter oportunidades para amadurecer. O Brasil apoia o primeiro filme, mas o problema está em incentivar o segundo e o terceiro filme… o resultado é que, ao mesmo tempo em que se apoia os novos cineastas, as outras produções ficam à margem. Seria importante haver um equilíbrio.
O Brasil promove muitas oficinas de cinema e tem grandes escolas de cinema, como a Escola de Comunicações e Artes da USP, a Universidade Federal Fluminense, a Universidade de Campinas e a Universidade Federal de Minas Gerais que, em animação, é a única do Brasil. É essencial a formação de professores com todas as condições técnicas para ensinar, aprender e incentivar os jovens cineastas. Seria importante criar um projeto maior para esse professor ser inserido. Nas escolas há carência de equipamentos, estúdios e técnicos. Mas boas ideias e talentos não faltam.”
“Eu penso que seria interessante olhar o Brasil como um país multicultural. E aí a gente daria um tratamento mais horizontalizado, com a valorização de todas essas culturas”
Ivan Vilela é violeiro, compositor e professor do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP. Pesquisador da cultura popular, ele pondera sobre o papel que as políticas de cultura poderiam assumir daqui para a frente.
“Tivemos uma quebra no governo anterior de uma estrutura que já existia e que era o Ministério da Cultura. Mas, embora tenha acabado o ministério, a cultura continuou. Todo mundo seguiu produzindo porque isso nunca para no Brasil. Esse jogo criativo do povo brasileiro acontece em todos os cantos e de todos os jeitos. Era muito sofrido não ter janelas por onde se pudesse jorrar essa produção criativa. Mas não tem jeito de represar a vida. A cultura do povo resistiu desde a época que o Brasil começou a ser invadido pelos portugueses. A cultura escravizada resistiu. A cultura vaza como água. Não tem como represá-la.
Historicamente, se você pensar na música popular como uma cronista do povo, dos que não tiveram como registrar sua história, vai chegar à conclusão de que a música popular vem sendo produzida desde que o Brasil existe. Então, a gente tem essa potência na narrativa do povo como uma forma de registro da história. Isso é a música popular.
E agora temos a recriação do Ministério da Cultura. E a ministra já tem projetos nessa área, na Bahia, ligados à valorização da cultura do povo. Por isso, estou sentindo que tem muito sonho agora. Está todo mundo sonhando, mas com esperança. Antes, a gente sonhava sem esperança.
Agora as coisas começam a voltar, porque tudo isso vai ser restituído. E, sobretudo, as áreas que foram negligenciadas por aquele pequeno ditador, como a cultura indígena, as culturas afro-diaspóricas, as culturas da amazônia. Tudo isso entrou na pauta agora.
Penso que seria interessante olhar o Brasil como um país multicultural. E aí a gente daria um tratamento mais horizontalizado com a valorização de todas essas culturas.
Em relação à cultura popular, é preciso tomar um grande cuidado de não profissionalizá-la, porque aquilo é um fato folclórico. Fato folclórico é um conjunto de crenças que, num dado momento, gera uma manifestação artística. Por exemplo, a Folia de Reis e o Congado não deixaram de existir pelo fato de que as igrejas de algumas cidades não permitiam a sua continuidade. Existem à revelia. Então, isso é uma coisa importante, ou seja, tentar não profissionalizar. Trata-se mais de abrir espaço. Como é que você ajuda uma Folia de Reis? Não é dando dinheiro para o povo que toca. É dando dinheiro para a festa. Porque essa festa, no caso da Folia, sempre tem uma função caritativa. Eles vão ganhar dinheiro para doar, seja a uma instituição de caridade, a um hospital da cidade, enfim, sempre tem essa função. Então, não adianta pagar às pessoas que fazem a festa, porque o dinheiro não fica com elas mesmo. É muito mais o caso de dar visibilidade a essas manifestações.
A cultura popular é rizomática, vai abrindo para todo canto. A questão é dar voz a ela, deixar que fale e ecoe. É só dar espaço e criar a estrutura para isso acontecer. Não é preciso interferir muito. Os artistas da cultura popular são os protagonistas.”
“Onde está a luta pela arte, educação e cultura em prol da formação das crianças e dos jovens? Essa ação violenta mostrou que o Ministério da Cultura, ao renascer, tem uma grande luta pela frente”
“Quando vi o quadro de Di Cavalcanti sendo destruído, voltei no tempo. Lembrei da violência de 1968, quando o meu quadro Guevara, Vivo ou Morto,enviado para o IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, foi depredado por um grupo que estava sob o comando de um general do Exército.”
Claudio Tozzi, artista e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, reviveu a mesma sensação de tortura e revolta ao acompanhar as cenas de violência no dia 8 de janeiro em Brasília. O seu quadro em homenagem a Ernesto Guevara de La Serna, morto em 9 de outubro de 1967, sofreu a mesma violência política e a mesma atitude de extermínio.
“Depois de três anos, o quadro reapareceu destruído na Secretaria de Cultura de São Paulo. Antes que fosse descartado, fui lá, retirei e, em uma atitude de resistência à violência da ditadura, trabalhei no decorrer de meses restaurando o quadro que era uma pintura em aglomerado de madeira.
Quase 55 anos depois, revejo a tortura e o mesmo vandalismo contra a arte e o patrimônio histórico. Um movimento que tem a mesma origem no neofascismo. Como todos que lutam pela democracia e contra a violência, eu questiono: o que aconteceu?
Onde está a luta pela arte, educação e cultura em prol da formação das crianças e dos jovens? Essa ação violenta mostrou que o Ministério da Cultura, ao renascer, tem uma grande luta pela frente.
É preciso uma atenção especial à arte espontânea da periferia. O painel Colcha de Retalhos, que fiz na Estação Sé do Metrô, foi uma iniciativa que nasceu do movimento conjunto com as mulheres costureiras que trabalham com retalhos. Precisamos dar atenção à arte da periferia.
Também é necessário que as crianças tenham arte em sua educação, importante para o desenvolvimento de humanização na sua sensibilidade, inteligência e criatividade.
Sugiro ao Ministério da Cultura três itens:
– Criação de secretarias específicas para o desenvolvimento do teatro, dança, música, artes visuais e literatura;
– Não centralizar iniciativas culturais só nos centros das capitais. A arte deve circular não apenas por São Paulo e Rio de Janeiro, mas por todo o interior dos estados do País, valorizando a cultura e a criatividade popular e regional;
– E criar iniciativas que ensinem, em uma educação coletiva, manifestações artísticas como a da arte concreta, nova figuração, arte moderna, assim como valorizar e incluir por todo o Brasil as artes indígenas, a arte afro e movimentos presentes na nossa história.”
Fonte: Jornal USP