O CLUBE CABORONGA MORREU!

Agildo Barreto colunistas

Por Agildo Barreto

Como é que acontece uma bagaceira dessa e ninguém me avisa nada? Eu soube por acaso, liguei na rádio FM e uma voz solene e inquestionável dizia: “não tem nada que comprove a existência do Clube Caboronga; não tem uma conta de luz, de água, uma conta bancária sequer; não tem IPTU no nome, quando tem não paga; não tem CPF, CNPJ, nem identidade do Ponto Cidadão; então, não tem nada que prove que ele existe.”

Conclusão: não tem o que ver; o clube morreu!

Parei e pensei: “um sujeito tão simples, não mais do que de repente, morre assim dessa forma. Nem ao menos se tornou um sujeito oculto, que fica brincando de esconde-esconde; não, morreu mesmo! Nem ao menos foi transformado num sujeito indeterminado, de forma que não significa que ele não exista; nem isso, morreu mesmo! Esse sujeito não existe, morreu!”

Naturalmente, em nossa cidade, uma morte dessa torna-se um clamor. A grande maioria das pessoas quer saber como e de que forma isso ocorreu: “ele morreu de morte morrida ou de morte matada?” “essa morte tem alguma coisa com doença braba?”

– Eu não sei, dona! O que eu sei mesmo é que estou retado porque eu não soube do velório, desde quando, um velório desse eu não podia perder por nada neste mundo. O que custava anunciar nas rádios, no zap zap, no carro de som, em voz pastosa e moderada:

“NOTA DE FALECIMENTO: estamos comunicando o falecimento do Clube Caboronga, que ocorreu de forma repentina, sem ninguém esperar, aos 54 anos e deixou 160 associados. O seu velório ocorrerá na esquina da Praça do Mercado e seu sepultamento será logo após o velório.”

O que custava uma nota nesse gabarito e com teor parecido? O importante era que toda comunidade tomasse conhecimento do fato.

Um velório desse eu pagaria para estar presente: o defunto empacotado, todo duro e desconcertado.

O velório do Clube Caboronga seria um acontecimento para ser considerado o ‘velório do século’, não poderia ser de outro jeito, com duração de seis meses e vindo gente de toda banda: “pode vir, pode chegar/ vamo vê no que é que dá/ tem gente de toda cor/ guitarras de rock’n roll, batuque de candomblé” vem, vem, tá bonito, tá beleza Sangalo! Simbora, simbora, mistura tudo, tamborim, agogô, pandeiro, triangulo e zabumba. Vai começar o velório.

“Tá vendo aquele clube, moço? Eu também trabalhei lá./ Lá eu quase me arrebento, fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar./ Hoje depois dele pronto, olho pra cima e fico tonto,/ mas me vem um cidadão,/ e me diz desconfiado: tu tá admirado ou tá querendo roubar?” Vamo, que vamo, Ramalho! O velório tá que tá.

“E agora José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou./ E agora, José? E agora, você?” Sem clube, sem valsa, sem forró. Segura a onda Holanda, que o velório tá só começando.

“Eles chegam tocando sanfona e violão;/ os pandeiros de fita carregam sempre na mão./ Eles vão levando, levando o que pode,/ se deixar com eles,/ eles levam até os bodes./ É os bode da gente,/ é os bode, mé.” Balança Maia, que aqui é a terra do bode, que tá desaparecendo.

“A dor da gente é dor de menino acanhado / menino-bezerro pisado, no curral do mundo a penar / que solta aos olhos, igual ao gemido calado / a sombra do mal-assombrado, é dor de nem poder chorar…” vai que vai, Sodré! ‘Quando eu lembro da massa da mandioca,’ da massa do Clube Caboronga / Sem o clube, onde vai quarar, onde vai rolar, rolar essa massa.

“ … E pra matar a tristeza / só mesa da bar / Vou me embriagar / se eu pegar no sono / me deite no chão / Garçom, eu sei / Eu estou enchendo o saco / mas todo bebum fica chato, valente e tem toda a razão…” balança o copo, Rossi, toma um gole, desce mais um trago, que o velório é longo.

“Meu mundo caiu / e me fez ficar assim / você conseguiu / e agora diz que tem pena de mim / não sei se me explico bem / eu nada pedi / nem a você, nem a ninguém/ não fui eu que cai” segura a onda Maysa, que o velório é prolongado.

“…Sou pássaro de fogo / que canta ao teu ouvido / vou ganhar esse jogo / te amando feito um louco / quero teu amor bandido…” salve, salve Fernandes! O velório tá bombando.

– Meu senhor! Esse custipiu morreu mesmo de que? Prá que tanta cantoria? Vocês tão achando que ele vai alevantar desse pacote em que ele tá metido até o pescoço; bota logo esse difunto no buraco!

Velório! Gente que não tem nada com a situação, apenas uma grande e incontrolável curiosidade; apenas um olhar incisivo e frio, acompanhado de um pensamento contido e cruel: “tu viu filho de uma puta!” Um converseiro sem conversa conversada, sem pé nem cabeça: “ainda ontem eu vi ele na esquina da praça do mercado e hoje está aqui, empacotado!” Mais falação: “será que ele morreu de doença boa ou doença braba?”

Aí aparece aquela persona freqüentadora de velório que soma muito pouco, depois de assistir a apresentação do cantor no clube, vai encostando, encostando e, na primeira oportunidade, pergunta ao cantor: “o senhor sabe se o cantor já chegou?” Dá prá vê, que já deu o que tinha que dá.  Muitas vezes a voz solene e inquestionável da anunciação não sabe de quem se trata ou simplesmente não quer ou não pode revelá-lo.

Estava chegando a hora. A matéria orgânica rígida ia entrando em decomposição pela ação das enzimas microbianas e ia acelerando o estado de apodrecimento. A alma perdida, penada e desalinhada buscava uma vereda que a encaminhasse à luz. Acabou o velório.

O enterro do Clube Caboronga seria um acontecimento para ser considerado a ‘apoteose de um tempo’, não poderia ser de outra forma. Chegou a hora da comitiva pomposa e dos cumprimentos solenes. Sangalo segura a onda: “Sou louca por você (Clube Caboronga)/ mas a vida / bota prá ferver / Agora a nave-mãe (Clube Caboronga) vai decolar / e eu já não posso mais te dar a mão / bota pra ferver / a ilusão da dor, um rio de lágrimas.”

O cortejo fúnebre serpenteou pelas ruas da cidade por dias e mais dias. No dia da finalização, na penumbra da noite, estava no início da Avenida César Cabral para seguir adiante. Ganhou largura e comprimento, com gente sobre gente. Uma multidão paralisada postava-se e acotovelava-se por toda avenida, balançando lenços brancos e celulares para registrar o acontecimento. Formou-se um rio de lágrimas de cristais.

Apagaram-se as luzes da cidade. Uma carreta transportava o defunto encaixotado. A The Caribbean Steel Band, uma banda de percusión del caribe, dava uma batida forte e solene: bum / tibum bum-bum/, compassada no descompasso que contrapunha com as batidas percussivas mais rápidas, mantendo a cadência e o ritmo. O show de 1971 foi assim, na escuridão do clube e da cidade. Houve um apagão naquela noite.

Na Praça da Bandeira, dobrou-se a esquerda e iniciava-se o percurso para ultrapassar dezoito quebra-molas. Ao raiar do dia, a multidão aglomerava-se em frente ao cemitério novo. As palavras proferidas salientavam com galhardia as virtudes do defunto que bateu as botas, justamente aquelas, que não poderiam escorrer pelo esquecimento:

“A cidade acaba de perder a sua ferramenta da alegria. Desapega-se de nossa gente um espírito festivo, farrista, farofeiro, que estava ilhado por uma filosofia amarrada na consideração de que o prazer individual e imediato é o único bem possível, sendo assim, o princípio e o fim da vida. O Clube Caboronga era essa halegria, habilidade, harmonia e hanimação, tudo com h mesmo, que fez escola em nossa terra. O mundo coube no Clube Caboronga.” Os aplausos foram efusivos, enquanto a última pá de terra cobria a cara do defunto.

Uma senhora encostou e perguntou, em voz baixa: “esse Clube Caboronga é de quem?” ao mesmo tempo, sem esperar resposta, ela apontava para uma nuvem, vista do cemitério novo, que parecia estacionada em cima da esquina da Praça do Mercado: “o que é aquilo lá?”

– Dona! Aquilo são abutres, que se orientam pelo odor fétido. Os piores são os abutres canelas-secas que são os mais famintos e competidores atrozes.

Depois da colher de pedreiro alisar o cimento que fechava para a eternidade o ‘distinto que se foi’, o último soluço foi dado, não se sabe por quem. O dia ensolarado ia ganhando corpo e a tristeza dominava uma comunidade, que a partir daquele instante, sentiria falta de alguma coisa, mesmo sem saber muito bem do que se tratava.