Scott Roxborough – Domingo, 1 de setembro de 2024
Documentário que estreia no Festival de Veneza revela imagens inéditas de “O dia em que o palhaço chorou”, longa de 1972 do comediante Jerry Lewis que nunca chegou a ser lançado, mas é quase mitológico.
O lendário comediante Jerry Lewis certa vez fez um filme sobre o Holocausto tão controverso que o público nunca pôde vê-lo.
Filmado em 1972, The Day the Clown Cried (“O dia em que o palhaço chorou”) conta a história de um palhaço de circo que guia crianças para a morte em um campo de concentração nazista.
O enredo do filme por si só já soa polêmico, mas a história conturbada de sua produção e subsequente desaparecimento – a obra nunca foi e provavelmente nunca será tornada pública, devido a imbróglios legais – fizeram ele adquirir um status quase mitológico entre cinéfilos.
“Se você só disser às pessoas que Jerry Lewis escreveu, dirigiu e estrelou um drama sobre um palhaço em um campo de concentração que leva crianças para as câmaras de gás, elas vão dizer: ‘O quê? Como eu nunca ouvi falar desse filme, como eu nunca o vi?'”, afirma Shawn Levy, autor da biografia King of Comedy: The Life and Art of Jerry Lewis (“Rei da comédia: a vida e a arte de Jerry Lewis”).
O filme e a complicada relação de Lewis com ele são tema do documentário From Darkness to Light (“Da escuridão à luz”), que estreia no Festival de Cinema de Veneza deste ano e traz cenas inéditas da obra – que é até hoje um mistério de Hollywood.
Co-dirigida pelo aclamado documentarista alemão Eric Friedler e pelo americano Michael Lurie, a obra traz ainda uma das últimas entrevistas que Lewis deu sobre o filme antes de morrer.
O “Professor Aloprado” tenta ficar sério
Lewis, que morreu em 2017 aos 91 anos, era uma lenda do showbiz, mais conhecido por comédias pastelão como Cinderelo sem sapato (1960) e O professor aloprado (1963).
No início da década de 1970, com a carreira em declínio, ele tentou ser levado mais a sério.
Foi quando recebeu a oferta para fazer o papel principal em The Day the Clown Cried, baseado em um roteiro da publicitária e produtora de TV Joan O’Brien e de Charles Denton, à época crítico de TV do jornal Los Angeles Examiner.
O filme – que deveria ser uma comédia – conta a história de um artista de circo alemão que é enviado a um campo de concentração na década de 1940 por zombar de Hitler após subir ao palco bêbado.
Ali, ele é incumbido de entreter as crianças judias para distraí-las enquanto são levadas às câmaras de gás. No ato final do filme, o palhaço escolhe acompanhar as crianças e morrer com elas.
Algo na história parece ter fisgado Lewis, que era judeu, e ele se jogou no trabalho.
O ator visitou Dachau e Auschwitz para pesquisa e seguiu uma dieta de toranja para perder 16 quilos e parecer mais emaciado para o papel.
Ele também reescreveu o roteiro para melhor se adequar ao seu estilo pastelão, adicionando piadas e quedas cômicas e mudando o nome do protagonista de Karl Schmidt para Helmut Doork – a palavra “dork” em inglês significa “idiota” ou “estúpido”.
Problemas na produção e disputas legais
A produção de The Day the Clown Cried foi atormentada desde o início por questões legais.
Nathan Wachsberger, o produtor que havia contratado Lewis, não tinha os direitos para fazer o filme. Ele tinha apenas a opção de adaptar o roteiro de O’Brien e Denton – opção essa que já havia expirado quando Lewis chegou à Europa para começar as filmagens.
Lewis seguiu em frente mesmo assim, tirando 2 milhões de dólares (R$ 11,2 milhões) de seu próprio bolso, segundo ele, para concluir a obra.
As filmagens foram feitas em Paris e na Suécia, mas o dinheiro estava curto. Quando a produção terminou, o estúdio sueco reteve parte das imagens e os negativos originais, alegando que Lewis devia 600 mil dólares.
Inabalável, Lewis voltou aos Estados Unidos com seu primeiro corte bruto do filme. Ele o exibiu para Joan O’Brien, que, como autora original, tinha a palavra final sobre o lançamento da obra.
Foi um desastre. “Ela saiu da sala de projeção em lágrimas, dizendo: ‘Isso nunca verá a luz do dia, nunca darei a você os direitos'”, lembra o biógrafo Shawn Levy. “Quando ela faleceu, deixou em seu testamento: ‘Este filme nunca poderá ser exibido’.”
Obra-prima perdida ou desastre completo?
Poucas pessoas afirmam ter visto o corte bruto de Lewis de The Day the Clown Cried, e as reações foram divididas.
O crítico de cinema francês Jean-Michel Frodon disse ter admirado um corte que viu no início dos anos 2000.
O comediante americano Harry Shearer, que dá voz a vários personagens de Os Simpsons, incluindo Mr. Burns e Ned Flanders, disse que conseguiu assistir ao filme em uma “fita de três quartos de polegada” em 1979. Em uma entrevista à revista Spy em 1992, Shearer qualificou a obra como “drasticamente errada”, sua comédia “totalmente fora de lugar” em seu tom cômico.
O próprio Lewis deu sinais contraditórios sobre o filme ao longo de sua vida.
“Este filme deve ser visto”, escreveu em sua autobiografia de 1982. Três décadas depois, em 2013, durante uma sessão de perguntas e respostas no Festival de Cannes, ele disse ao público que “ninguém jamais o verá, porque estou envergonhado pelo trabalho ruim”. “Foi ruim, ruim, ruim. Eu errei feio.”
“Vi muito da filmagem original, e houve muitas cenas que achei ótimas, e houve cenas ruins, mal filmadas, onde [Lewis] estava ruim, outras onde ele estava realmente bom”, disse Friedler em 2016 após a estreia de Der Clown (“O palhaço”), outro documentário que trata do filme que Lewis nunca lançou. “Acho que ele se perdeu (…). Talvez, se tivesse mais tempo, ele pudesse ter encontrado uma maneira de fazer uma tragédia, ou uma tragédia cômica, a partir do material.”
Friedler sugere que The Day the Clown Cried poderia ter sido uma comédia sobre o Holocausto quase 30 anos antes de A Vida é Bela (1997), de Roberto Benigni, que venceu o Oscar. Mas Lewis “nunca teve a chance”.
Por que “The Day the Clown Cried” ainda não foi lançado
Em 2015, dois anos antes de morrer, Lewis doou seu arquivo pessoal, incluindo materiais de The Day the Clown Cried, à biblioteca do Congresso americano.
No entanto, a doação foi feita mediante a condição de que as filmagens não poderiam ser exibidas por pelo menos 10 anos.
Mas os que esperam por um lançamento em 2025 ficarão desapontados: a biblioteca confirmou que tem apenas negativos parciais do filme, cerca de 90 minutos de imagens não editadas e sem som, além de algumas imagens dos bastidores. Mesmo assim, restrições legais impedem um lançamento comercial da obra.
“Mesmo se você pudesse encontrar as filmagens restantes e de alguma forma reconstituí-las – usando IA para fazer as vozes, ou o que for –, você ainda não tem os direitos de cobrar um centavo pela exibição desse material porque o testamento de O’Brien determina que isso não acontecerá”, diz o biógrafo Levy. “É um documento histórico, mas nunca será um filme comercial.”
Houve várias tentativas de refazer o roteiro original de O’Brien e Denton. Uma nova versão está supostamente em andamento, com planos para ser filmada na Europa. Mas Levy sugere que o mistério em torno da “comédia perdida de Jerry Lewis sobre o Holocausto” pode ser mais valioso do que o próprio filme.
“Mesmo que o filme tivesse sido um sucesso, mesmo que fosse A Lista de Schindler, mesmo que fosse uma obra-prima, ele teria encolhido com o tempo”, diz Levy. “O fato de que nunca poderemos vê-lo significa que ele nunca encolheu, e nunca encolherá.”
Fonte: DW / Jerry Lewis atua como o palhaço que guia as crianças para as câmaras de gás durante o HolocaustoFoto: STF/AFP/Getty Images