Por Susana Van Der Ploeg
Importante remédio para tratamento de HIV/aids deverá ser incorporado ao SUS – mas há questionamentos quanto ao preço imposto pela farmacêutica que o produz. Como oferecê-lo aos pacientes de forma sustentável para a Saúde Pública?
O fostensavir é um importante medicamento para o tratamento da infecção pelo HIV em pessoas que desenvolveram resistência a múltiplos medicamentos antirretrovirais. Ele pertence à classe dos inibidores de ligação, que agem de forma diferente dos antirretrovirais mais comuns, oferecendo uma opção terapêutica importante para pessoas que esgotaram as alternativas convencionais de tratamento. Em outras palavras, este medicamento oferece uma luz no fim do túnel para aqueles que esgotaram todas as opções de tratamento disponíveis e não têm mais alternativas terapêuticas.
A sua incorporação ao Sistema Único de Saúde (SUS) é vital para indivíduos que enfrentaram falhas em múltiplos tratamentos anteriores, deixando-os sem nenhuma alternativa terapêutica atualmente. Isso se traduz na garantia da integralidade do direito à assistência terapêutica. No Brasil, aproximadamente 500 pessoas dependem desse medicamento para dar continuidade ao tratamento e seguir vivendo. No ano passado, a incorporação do fostensavir ao SUS foi demandada pelo Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis, da Coordenação-Geral de Vigilância do HIV/Aids e das Hepatites Virais da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde (CGAHV/DATHI/SVSA/MS).
Pautado na 125ª Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), realizada no dia 06 de dezembro de 2023, o fostensavir teve uma recomendação preliminar favorável à incorporação para o tratamento de pessoas vivendo com HIV-Aids multirresistentes a terapia antirretroviral (terceira linha de tratamento). Com destaque da “expectativa de uma nova proposta de preço encaminhada pela empresa durante a consulta pública”. Entretanto, a ViiV/GSK, farmacêutica estrangeira que desenvolveu o medicamento, não participou da consulta pública como também não apresentou nova proposta de preço.
Embora represente uma esperança para muitos e muitas, o preço exorbitante estipulado pela ViiV/GSK coloca em risco a sustentabilidade do programa nacional de HIV/AIDS e evidencia a fraqueza do Estado brasileiro diante da indústria farmacêutica em negociar e regular medicamentos a preços justos.
No caso do fostensavir, de acordo com a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), o Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG) pode variar entre R$ 12.506,63 (sem impostos) e R$ 18.599,60 (22% de ICMS) para um mês de tratamento por paciente. Considerando o PMVG sem impostos, o impacto orçamentário anual seria de quase R$75 milhões para o tratamento de 500 pessoas.
A discussão final da incorporação, após as contribuições da consulta pública, aconteceria na primeira reunião da Conitec em 2024, em fevereiro, mas ela foi retirada da pauta já que a empresa não apresentou uma nova proposta de preço. Após ser abordada para se manifestar sobre o preço do fostensavir, a ViiV/GSK enviou uma nova proposta: uma redução do preço em 2,3%. Sim, 2,3%! O preço mensal do tratamento foi estabelecido a US$ 2.320,20 (aproximadamente R$ 11.500,00). Totalizando um custo anual de quase R$70 milhões para o tratamento de 500 pessoas no Brasil que precisam, com urgência, deste medicamento.
No dia 6 de março de 2024, a Conitec incorporou o fostensavir no SUS. Uma esperança para muitos e muitas, mas que descortina as falhas da negociação do Ministério da Saúde, que está refém das corporações farmacêuticas.
Qual é a razão por trás do preço estabelecido para este medicamento? Não sabemos. Este é um aspecto alarmante no mercado farmacêutico: nunca sabemos, de fato, qual o valor real de um produto. O principal desafio enfrentado por consumidores e sistemas de saúde pública está relacionado à falta de transparência da indústria farmacêutica. Não há transparência sobre a composição do preço final. O que deixa os consumidores e o Estado, que deveria regular este setor, em situação de vulnerabilidade. Não se tem informações acerca dos gastos em pesquisas de descoberta, a participação de entidades públicas e privadas, os gastos em ensaios clínicos e outras atividades de desenvolvimento, os custos relacionados à produção de medicamentos e quanto cada país paga pelo medicamento.
Ademais, um dos sérios agravantes do alto de preço dos medicamentos é o sistema de patentes, que cria um monopólio permitindo às corporações farmacêuticas cobrar preços injustificáveis baseando-se em práticas abusivas. No caso do fostensavir, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual verificou que há uma patente concedida, com validade até março de 2025, que protege o composto fostensavir, sal com trometal e composição farmacêutica. Não há, por agora, concorrentes no mercado.
A falta de transparência na determinação dos preços finais dos medicamentos é um problema regulatório significativo no Brasil. O país emprega um sistema de controle de preços estabelecendo valores máximos, denominados preços teto, para cada apresentação farmacêutica disponível no mercado. Esse sistema é supervisionado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), criada em 2003 pela Lei n° 10.742/2003. Após o registro de um medicamento pela Anvisa, o laboratório responsável deve apresentar à CMED um relatório detalhando o preço proposto para sua comercialização. A CMED, por sua vez, é encarregada de limitar e fiscalizar os preços dos medicamentos no país.
De acordo com um estudo do IDEC, a discrepância entre os preços dos medicamentos pesquisados e o preço teto estabelecido é alarmante, chegando a atingir até 936,39% nos valores praticados em compras públicas e 384,54% nas compras realizadas pelos consumidores em farmácias. Essa disparidade ressalta a necessidade urgente de uma maior transparência e fiscalização efetiva sobre os preços dos medicamentos para garantir uma distribuição justa e acessível dos mesmos à população.
No caso do fostensavir, surpreende que o preço proposto pela ViiV/GSK para a compra única do Ministério de Saúde não se diferencie do preço estipulado pela CMED. Entretanto, vejamos o caso do dolutegravir (DTG), antirretroviral utilizado por mais de 500 mil pessoas vivendo com HIV/AIDS no Brasil. Em compras públicas do governo, uma caixa com 30 comprimidos custou R$132, mas possui o preço teto de R$ 1.247,76. Isto significa que, do dia para a noite, a ViiV/GSK pode aumentar em 10 vezes o preço da caixa sem infringir a lei. Um detalhe importante no caso do dolutegravir é que atualmente o Ministério da Saúde adquire a unidade a R$4,40. Entretanto, segundo apropriação de custo elaborada por Eloan Pinheiro, considerando o preço do Insumo Farmacêutico Ativo a US$ 400,00kg e as despesas gerais e lucros em 50%, a unidade do comprimido do DTG poderia ser produzida a R$ 0,68. Há uma grande disparidade entre o preço de venda, o custo de produção e o preço regulado pela CMED.
O caso do fostensavir evidencia a urgência de uma regulação mais coerente com a realidade brasileira no que diz respeito à precificação de medicamentos, especialmente no âmbito das compras públicas. Não podemos ignorar o fato de que vidas estão sendo precificadas, enquanto a indústria farmacêutica transnacional lucra à custa do sofrimento e das necessidades das pessoas. Não podemos simplesmente aceitar isto como realidade.
Medicamento não é artigo de luxo! A indústria farmacêutica se aproveita das lacunas na regulação para aumentar seus lucros de forma abusiva, prejudicando tanto a saúde dos consumidores quanto os recursos do SUS. Para alterar essa realidade, é imprescindível uma nova legislação que redefina as regras para o cálculo dos preços-teto de medicamentos no país e obrigue a indústria farmacêutica a operar com maior transparência e responsabilidade social. Somente assim poderemos garantir um acesso justo e equitativo aos medicamentos essenciais para a população brasileira. O projeto de lei 5591/2020 visa suprir essa lacuna levando em conta a realidade do país, permitindo um reajuste negativo que não está previsto na norma atual, Ele demanda a transparência da indústria e a participação social na CMED, mas está parado no Senado desde abril de 2023. Enquanto isso, o Estado segue refém dos preços abusivos e injustificados impostos pelas farmacêuticas.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Divulgação