Coeckelbergh, filósofo belga pensa a ética na inteligência artificial, reflete sobre alguns pontos de sua obra. Em especial, como recolocar o humano como categoria universal sem retroceder para o colonialismo e o antropocentrismo
Poucos dias atrás, esteve no Brasil o filósofo belga Mark Coeckelbergh, um dos nomes ocidentais mais importante quando o tema é ética e política em IA. Coeckelbergh veio para a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), participou de encontro com o CGI.br e NIC.br, além de conceder algumas entrevistas.
Uma das propostas do intelectual que mais chama atenção é a ideia de um “humanismo digital”. Com ela, o autor de Ética na Inteligência Artificial [leia um capítulo publicado em Outras Palavras] busca estabelecer conexões com o humanismo histórico e filosófico, e defende uma abordagem centrada no ser humano para uma tecnologia que considere a dinâmica do poder e, também, recoloque o humano como categoria Universal no centro do debate. Algo que para os antiuniversalismos presentes em muitas correntes de pensamento contemporâneo pode soar “extemporâneo”, “ultrapassado”, “equivocado”… Ou seja, alimento para um bom, importante e urgente debate!
Com vista a trazer um pouquinho do que pensa o filósofo, e quem sabe botar mais lenha neste imprescindível tema filosófico, tive a oportunidade de fazer algumas perguntas a ele, que compartilho nesta coluna. Haveria muitas outras questões (e pedras nos caminhos), sabemos! Mas vale como uma singela introdução à questão e ao pensamento de Coeckelbergh:
Se não se importar, gostaria de concentrar minhas poucas perguntas no (pós)humanismo digital que você defende.
Em um artigo recente, você explora o conceito emergente de “humanismo digital”, enfatizando a necessidade de uma perspectiva crítica e política em nossa compreensão das tecnologias digitais. Como você vê as ligações entre humanismo e tecnologia? É possível ter esse debate sem cair em questões como “O que é humano”?
Para mim, é importante que tenhamos uma abordagem humanística da tecnologia, certificando-nos de que ela seja ética e politicamente responsável. Os valores e a tradição humanistas fornecem uma boa estrutura para isso. Entretanto, é necessário atualizar o humanismo. Tradicionalmente, ele não tem se dado conta da profunda influência da tecnologia sobre o que é ser humano e, de modo mais geral, sobre as maneiras pelas quais os seres humanos e a tecnologia estão emaranhados. Também não é mais possível ter um tipo de humanismo fortemente antropocêntrico ou colonial: precisamos seguir em uma direção mais crítica e pós-humanista nesse sentido. Portanto, sim, é absolutamente necessário entrar em questões como “O que é humano?”.
Sabemos que uma das características iniciais da filosofia continental “moderna” foram os humanismos do Renascimento e do Iluminismo, para o qual a ciência e a tecnologia significavam a emancipação humana. Quais são as continuidades e descontinuidades entre o humanismo digital que você defende e o humanismo “antigo”?
Uma continuidade é que ainda é importante manter algum conceito de emancipação, mas, como já foi dito, o velho humanismo não é totalmente adequado quando se trata da relação com a tecnologia (e da relação com a natureza, na verdade), do lugar do ser humano e da questão do colonialismo. Isso precisa ser mudado se o humanismo quiser inspirar uma boa ética tecnológica.
Uma das formas mais comuns de pensar a relação entre humano e tecnologia é contrastar os dois, ou seja, onde há tecnologias e processos de automação tecnológica, há também processos de desumanização. Você concorda? É possível ser humano sem tecnologia?
Ainda podemos falar sobre automação e desumanização, mas a alternativa não pode ser o fato de não termos mais tecnologia. A tecnologia é parte do que significa ser humano. O importante é mudar nossas tecnologias e seu uso de forma que os valores humanísticos e, especialmente, os humanos sejam protegidos e seu florescimento seja promovido. E isso também requer pensar sobre política e poder, como mostro em meus livros recentes. Não podemos falar apenas de ética, precisamos falar também sobre como o poder é distribuído na sociedade. Atualmente, a Big Tech decide nosso futuro tecnológico, com pouco controle democrático e responsabilidade. Isso deve mudar.
Por fim, uma das áreas em que as novas tecnologias tiveram o maior impacto é a área de saúde, tanto em termos dos usos não-saudáveis dessas tecnologias – com jogos, smartphones etc – quanto à prestação de serviços de saúde com base nelas. Como você vê a assistência médica com uso intensivo de tecnologia? O atendimento humanizado com uso intensivo de tecnologia é possível?
É importante, na área da saúde e em outros campos, ainda ter um ser humano no circuito, o que significa: garantir que a decisão final seja tomada por um ser humano e que as pessoas também sejam intérpretes dos dados. Precisamos da interpretação e do julgamento humano, além da ajuda das máquinas. A inteligência artificial, por exemplo, pode realmente ajudar na medicina e acho que é até moralmente obrigatório usá-la se ela for boa o suficiente (julgada por humanos), mas ela nunca deve substitui-los. Caso contrário, haverá de fato desumanização.
Obs: Especiais agradecimentos ao professor Coeckelbergh, pela rápida conversa, e também à jornalista Seham Furlan e à editora (UBU) Florencia Ferrari, pela atenção e oportunidade.
Fonte: Outra Saúde / Foto: Ricardo Matsukawa/Divulgação NIC.br