Por Maria José de Freitas Rodrigues
Após 35 anos, Ministério da Saúde continua a utilizar as mesmas estratégias anacrônicas. Mas comunicar-se com a população é crucial para enfrentar novas crises – inclusive a emergência climática. Uma experiência mostra como a arte também é essencial
Recentemente o site Outra Saúde publicou o texto “Faltava este mapa para enxergar as lutas da Saúde”, de Gabriela Leite, sobre o lançamento do Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde. Sem dúvida, importante iniciativa em defesa do SUS. Mas, há lacunas nesse assunto. Entre elas, as medidas adotadas no âmbito do SUS – no que se refere ao acesso às informações – para diminuir a histórica distância entre os serviços e seus usuários nos três níveis de governo.
Logo depois, no mesmo site, o texto “Brasil em chamas: o preço diante da inação”, de Ubiratan de Paula Santos, traz em sua primeira frase: “Queimadas terão imenso impacto no SUS”. E aborda as danosas consequências das mudanças climáticas para a saúde humana. E, acredito, para a saúde animal.
Faço a relação entre os dois artigos, endossada pelo respeitado cientista Carlos Nobre: “Todos os cientistas estão apavorados” (“nst total”, 21/09/2024). Os alertas sobre riscos aumentam com as trágicas queimadas no Brasil. A inimaginável destruição do território brasileiro pelas queimadas, gravíssima na região Norte, se espalha por outras regiões com consequências imprevisíveis para a saúde das populações.
Esse quadro preocupante exige medidas urgentes e eficazes, quando a informação pública pode prevenir, minorar sofrimentos e agravos à saúde. Portanto, vale revisar as práticas do setor público de saúde, tendo como foco o Ministério da Saúde – considerado “cabeça do sistema” SUS.
Em 1989, escrevi o texto “Saúde e comunicação social” (Jornal do Brasil, 22/04/1989), o primeiro publicado sobre o tema na chamada grande mídia. Justifiquei, à época, a necessidade urgente de se desenhar e implantar uma política de Comunicação Social fundamentada nos princípios constitucionais do SUS. Estávamos redefinindo os rumos da saúde pública brasileira, com o SUS garantido na Constituição.
Trinta e cinco anos depois, nada de relevante mudou. A Comunicação Social continua ausente das discussões sobre as políticas públicas de saúde. Sem reflexões teóricas, sem avaliação de suas práticas, sem propostas. No SUS considera-se indispensável a participação dos usuários na gestão dos serviços de saúde, o que obriga a transparência e a credibilidade na troca de informações entre as duas partes.
Destaco o parágrafo do artigo de 1989, pela atualidade do que foi publicado:
“Em princípio, é evidente o abismo entre os pressupostos do sistema único e as atuais práticas de comunicação social nas instituições públicas de saúde. Essas práticas têm se concentrado basicamente em dois aspectos: no trabalho voltado para a imprensa ou divulgação na promoção da imagem institucional e/ou de seus dirigentes. E na promoção de campanhas de vacinação ou ‘prevenção’, cujos resultados nunca são avaliados, em âmbito nacional, do ponto vista da contribuição do material institucional de comunicação para o alcance das coberturas vacinais, utilizadas como estratégias no controle de doenças.”
A produção de informações para mídia continua existindo. Assim como o marketing institucional (e/ou pessoal dos dirigentes), em alguns casos, prevalece no trabalho das “assessorias de Comunicação”, inclusive do Ministério da Saúde. E, assim, reproduzido em suas possibilidades nos estados. Até porque não há outro modelo proposto para divulgar informações sobre saúde no âmbito do SUS.
Aliás, o poder dos “marqueteiros” na política brasileira (e no exterior) é impressionante. Bem como sua presença em atividades suspeitas, nos processos judiciais.
“As informações selecionadas pelas áreas técnicas e órgãos do Ministério da Saúde, para prevenção e/ou controle de agravos (vacinação, AIDS, dengue, hanseníase etc.) veiculadas em nível nacional, passam por um processo de produção e veiculação, no qual as agências de publicidades assumem um papel relevante…” artigo Do sabonete ao SUS, Diário de Belém, 06/04/1997).
Ao longo dos anos, desapareceram as campanhas feitas pelas agências de publicidade, como aquelas acima referidas. As coberturas vacinais não têm alcançado as metas do atual Ministério da Saúde. A falência das práticas e a pobreza dos resultados estão expostos na mídia.
“Se acreditamos que saúde é direito e que direito se difere de consumo, não podemos dar a uma campanha de vacinação o mesmo tratamento dispensado ao lançamento de uma nova marca de sabonete, se o objetivo é controlar ou evitar doenças” (JB,1989).
Voltamos ao Zé Gotinha. Nada contra o Zé Gotinha (de preferência, sem Xuxa), mas é uma constatação do “nada de novo”, viramos para o passado.
Regredimos, inclusive, num aspecto fundamental. Nos anos 80, o governo brasileiro tinha um chamado “acordo de cavalheiros” com os donos da mídia para veiculação de informações em espaços gratuitos. E, claro, o Ministério da Saúde (MS) ocupava muito esses espaços. As instituições vinculadas e os órgãos do MS se reuniam, em Brasília, periodicamente, para ratificar as datas de suas campanhas e o cronograma final enviado à Presidência da República. Para campanhas nacionais eram cedidas várias inserções por dia nas TVs. E os estados também recebiam cartazes e discos para as rádios dos seus municípios. Cobria-se todo o país com esse material.
Se o Estado dá as concessões para as empresas de rádio e TV, deveria utilizar espaços gratuitos, dessa mídia, nas situações de emergência. Um novo “acordo de cavalheiros” para uso do governo federal, do Ministério da Saúde. O que seria oportuno, diante da fragilidade das redes de rádio e tv governamentais.
A Comunicação Social do Governo Federal já recebeu críticas. O recorte feito aqui é sobre saúde pública, mas como o tema é multidisciplinar, cabe ao Governo Federal promover o debate sobre sua política institucional de Comunicação, articulando planos e iniciativas de todos os ministérios e órgãos envolvidos.
O Ministério da Saúde de um país como o Brasil, onde 150 milhões de pessoas dependem do SUS, tem que pautar suas ações nos fundamentos desse sistema. E o Sistema único de Saúde é descentralizado e regionalizado.
No caso de uma política de Comunicação definida para o SUS, cada Região analisaria suas práticas, observando suas respectivas particularidades e faria propostas. Pauta-se, então, os debates. Com o cuidado de nunca afastar dos pressupostos constitucionais do SUS, sob a coordenação do Ministério da Saúde. Parece tão óbvio, mas nunca foi tentado. Durante 35 anos.
Ao Ministério da Saúde, caberá redefinir seu novo papel, na articulação política para proposição de outras práticas, na distribuição de recursos e na coordenação do que for definido pelas Regiões. Esse mesmo processo de mudanças de papéis se aplicaria na relação entre estados e seus municípios, sempre baseado no perfil epidemiológico, sócioeconômico e cultural de cada Região. O Ministério da Saúde coordenará, assim, uma Política de Comunicação para o SUS. Certamente, exaustivo trabalho. Difícil, sim. Impossível, não.
As bases para regionalização da Comunicação Social para a Região Norte (COM-NORTE), foram propostas pela Secretaria de Saúde do Pará, na gestão de Elisa Vianna Sá, por ocasião de uma Assembleia do CONASS (Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde), realizada em Belém (1997). Apresentada por mim a todos os secretários estaduais de saúde, essa proposta foi encaminhada ao Ministério da Saúde pela SES Pará, no mesmo ano.
Nesse quadro de mudanças, torna-se indispensável a existência de pessoal treinado e academicamente preparado para assumir cargos de chefia e carreiras formalmente definidas, nas unidades de Comunicação do SUS, em todos os níveis. Para também evitar que cada ministro/a da Saúde leve no bolso sua assessoria de Comunicação, o que ainda acontece. Sem comprovação de resultados a serem aplaudidos.
Então, será inovador para o setor público de saúde redefinir a distribuição de recursos, promover as campanhas regionais, acompanhando-as ao planejar, executar e avaliar suas ações. E, nacionalmente, o conjunto de ações. Sem optar com exclusividade pela “lógica marqueteira”, utilizada desde os anos 80 pelo Ministério da Saúde. Campanhas caras aos cofres públicos, formatadas como “peças publicitárias” passariam a ser inadequadas.
A tecnologia, hoje, possibilita novas estratégias, já abriu caminhos a serem analisados e avaliados. Há outro contexto com as redes sociais, que podem ser exploradas em todo o seu potencial. Com esmerado planejamento. A internet não deveria ser a opção preferida para órgãos de saúde pública. A população que mais precisa de informações claras e úteis não tem computador e/ou não sabe consultar nada online.
Há décadas estamos patinando em práticas anacrônicas, ineficazes, com questionável planejamento e nenhuma avaliação, naquilo que se entende como Comunicação Social no setor público de saúde, em especial o Ministério da Saúde. O que está evidente com a vacinação, as ações emergenciais, e também na relação com a mídia.
A descontinuidade da administração pública no Executivo, onde cada Ministro que entra muda a estrutura do Ministério, dificulta e/ou impossibilita o planejamento e a avaliação a médio e longo prazos. Difícil continuar essa prática sem prejudicar tudo o que se está propondo.
Mostra a mídia nacional que o Brasil está em chamas e, em pelo menos, 60% do território nacional há fumaça tóxica (Pública). É uma situação de crise. Sabemos que a fumaça desses incêndios provoca danos à saúde e riscos, ressaltados com frequência pelos especialistas. O Ministério da Saúde está aplicando estratégias de Comunicação para essa crise?
Em municípios menores, na divisa dos estados de São Paulo e Minas Gerais, as unidades do SUS estiveram abarrotadas, não puderam atender à demanda. Não houve orientação para essas populações sobre o que fazer. Em situações de crise os serviços públicos de saúde, as entidades, o setor privado, as ONGs e o que estiver disponível podem ser orientados para a disseminação de um elenco seleto de informações. A Comunicação deve ser considerada área de apoio da Epidemiologia.
A Comunicação de Risco é uma estratégia da OMS definida, há muitos anos, para surtos, endemias e emergências, enfim, o que conhecemos como situações de crise, como a que enfrentamos agora. O que há na farta literatura existente sobre essa estratégia é adaptável para as regiões do Brasil.
Com a crise climática é preciso treinar equipes multidisciplinares para ouvir, informar, orientar, produzir e transmitir conhecimentos básicos. Transitar nas regiões adaptando às suas peculiaridades, usar a mídia. Pode ser inspirador consultar o que a OMS produziu sobre “Comunicação de Risco”.
Se considerarmos que as situações de crise podem se caracterizadas pelo alto nível de risco e a escassez de recursos e de tempo, é urgente preparar os profissionais, os voluntários e segmentos da população que atuam nas emergências. O voluntariado foi fundamental nas últimas enchentes do Rio Grande do Sul, onde a experiência acumulada deve ser conhecida e analisada.
A realidade que vemos, com os incêndios pelo país afora, obriga a renovação das atuais práticas da Comunicação Social, no contexto da saúde pública. Inconcebível desconhecer a gravidade do que assistimos.
“Esses incêndios liberam, entre outros, um poluente chamado material particulado e no caso bem pequeno fino (menor do que 2,5 micrometros) e ultrafino (menor do que 0,1 micrometro – 1000 vezes menor do que a espessura de um fio de cabelo como são denominados, que entram mais fácil nos pulmões e provocam mais danos ao organismo”, escreveu Ubiratan Santos, no artigo acima mencionado.
Como explicar isso para as populações rurais e de pequenas cidades mais expostas aos incêndios? Para os prefeitos e secretários municipais de saúde? Recomendável exercício para cientistas, educadores e comunicadores.
Certamente, estados e municípios têm experiências valiosas a serem selecionadas de forma sistemática (citamos o Rio Grande do Sul). Esse fluxo de informações sobre situações de emergência para trocas – entre níveis de governo – é uma das tarefas da área de Comunicação. Para isso conta-se com o Conass (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde) e o Conasems (Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde).
A saúde pública sempre teve a participação dos educadores em saúde, até a chegada da Comunicação Social. A última substituiu desastradamente a Educação em Saúde, sem integração teórica ou prática. E não há, necessariamente, incompatibilidades entre Comunicar e Educar se os objetivos forem claramente definidos.
Essa outra pretendida Comunicação, citada em 1989, reitero, deve ser planejada, monitorada, avaliada com base nos princípios do SUS: descentralização, regionalização e na saúde como direito de todos e dever do Estado. O último implica, necessariamente, no direito às informações sobre saúde, em vários níveis e abordagens. Assim, garante-se aos movimentos sociais e à sociedade a transparência requerida para a aprimorar o SUS e melhorar as condições de vida da população. Isso seria uma valiosa contribuição ao compromisso assumido pelo atual Governo Federal. O Estado brasileiro não pode prescindir da informação pública no contexto da saúde coletiva. E será fortalecido com a aproximação entre serviços e usuários. Essa é uma opção política.
Para atuar nesse elenco de demandas, há que se construir um acervo de conhecimentos sobre os agravos à saúde, riscos e todas as relações entre as condições de vida, o meio ambiente e a saúde. Em cada Região, um acervo planejado, monitorado e atualizado a curto, médio e longo prazos para conhecer o público-alvo das ações de Comunicação. E também para que esse público entenda e perceba melhor o seu entorno e o que é preciso para “ter saúde e bem-estar”. O que facilitaria maior participação dos movimentos sociais, da sociedade e dos cidadãos para seu próprio benefício. Assim, o SUS será fortalecido. Informar não significa, necessariamente, produzir conhecimento.
Da montagem do acervo de conhecimentos devem participar, primordialmente, as universidades – em especial, aquelas com curso de Comunicação. Garantiremos, assim, que os jovens possam se interessar pelo tema. Com novos ares e ideias. A produção teórica de professores, pesquisadores e alunos é imprescindível para tirarmos a Comunicação no setor saúde do “mesmo do mesmo”.
Cursos de Comunicação em Saúde nas universidades, escolhidas regionalmente. Cada uma delas teria suas equipes e os meios adequados às respectivas realidades: epidemiológica, socioeconômica e cultural etc.
Tudo isso é possível, se a bolha da mediocridade for furada. E a coragem de pensar diferente chegar até aos políticos e dirigentes do setor público de saúde, a partir do Ministério da Saúde. Só assim, envolveremos as universidades e os mais jovens. Estaremos formando uma nova geração de comunicadores para a saúde pública, assumindo os cargos de chefia e com carreira definida nos três níveis do SUS. Fundamental o aprimoramento teórico da Comunicação voltada para saúde pública.
Além do aprimoramento acadêmico para a Comunicação em Saúde, por que não usar a Arte? Ou as artes?
Abro aqui um espaço para contar sobre uma experiência pessoal, em Angola (ainda em guerra), onde trabalhei como consultora de um organismo internacional.
O problema identificado pela epidemiologista: informar à população – que morava na periferia de Luanda, fugindo da guerra no interior – para que evitasse determinados medicamentos supostamente para “melhorar sintomas ou evitar a malária”. Pensei no que havia aprendido: a linguagem é plural. A língua, no caso, uma barreira. Grande parte dessa população não era fluente ou não falava português. Em Angola, à época, falava-se as línguas nacionais.
Aí entra o destino. Por acaso, conheci um talentoso brasileiro, que havia montado um pequeno grupo de teatro com jovens, em Luanda. Propus montar uma apresentação sobre o problema exposto pela epidemiologista, que gostou da ideia. Apresentei o projeto. Primeiro, um treinamento dado por ela para todos os envolvidos (diretor, atores, fotógrafo etc.) sobre malária, o problema identificado, o objetivo a ser alcançado, o perfil do público-alvo.
Não havia recursos financeiros disponíveis. Eu tinha acesso à loja “diplomática” e comprei muitas grades de cerveja. A venda de cerveja em Luanda era comum e lucrativa. Os atores venderam as cervejas e com o lucro fizeram os figurinos e compraram o material. E a dedicação de todos cuidou do resto. Constavam do projeto fotos e vídeos de todas as suas etapas. Isto é, seria documentado. O público prestigiou as apresentações em escolas e espaços públicos.
Resultado: um sucesso. Para pessoas que nunca tinham visto nada parecido, o “teatro de rua” foi uma mágica: panos, cores, movimentos, sons e gestos. A reação das audiências foi emocionante. O que narrei pode ser reproduzido nas regiões do Brasil, um país com tantos grupos de circo, teatro, música, dança, artes plásticas. Talentos que precisam ocupar os espaços da administração pública para “comunicar”.
Vamos trazer a “mágica” das artes para a saúde pública. A beleza dos sonhos e a utopia pedem passagem.
Fonte: Outra Saúde / Créditos: Fora do Palco