Inspirado na vida do comunista potiguar Glênio Sá, o longa de José Eduardo Belmonte mostra a adesão entusiasmada à Guerrilha do Araguaia e a luta contra a ditadura militar
“Antes de levarem-no embora, tínhamos combinado de nos encontrar na torre de Brasília, ao pôr-do-sol, no dia 31 de dezembro de 1999. Iríamos, juntos, assistir o nascimento do ano 2000”. O trecho do livro “Araguaia – Relato de um Guerrilheiro”, escrito pelo potiguar Glênio Sá, inspirou uma ficção histórica. Trata-se do filme “O Pastor e o Guerrilheiro” que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (13).
Produzido por Nilson Rodrigues e com o roteiro de Josefina Trotta, inspirado em uma história real, o filme foi rodado no Estado do Tocantins, às margens do Rio Araguaia, e em Brasília. O longa-metragem do cineasta José Eduardo Belmonte é estrelado pelos atores Johnny Massaro, Julia Dalavia , César Mello, Túlio Starling, Ana Hartmann, William Costa, Antônio Grassi, Buda Lira, Gabriela Corrêa e Ricardo Gelli. O filme conta ainda com a presença do Sérgio Mamberti, que morreu em 2021, em seu último trabalho.
O relato que costura o longa-metragem revela a indignação de Glênio, estudante secundarista, com as injustiças e mostra como o descontentamento ganha corpo e tem escoadouro na militância revolucionária ao ingressar no Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Daí para aderir com entusiasmo à resistência armada no Araguaia foi apenas questão de tempo.
Relato escrito por Glênio Sá
Relato escrito por Glênio Sá
Quando este livro chega às mãos do produtor Nilson Rodrigues, ainda na década de 1990, ele se encanta com a imagem do encontro selado entre o comunista e o evangélico para a virada do milênio. O potencial imagético é a fonte para anos mais tarde se transformar em argumento para o filme “O Pastor e o Guerrilheiro”.
O encontro nunca aconteceu. Glênio Sá, líder comunista, ex-preso político e único norte-rio-grandense a lutar na Guerrilha do Araguaia, morreu em 26 de julho de 1990, num acidente automobilístico ainda não esclarecido. E o fato terá um desfecho diferente do que foi combinado nas celas do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do Exército, em Brasília.
No longa-metragem, o livro chega às mãos de Juliana (Julia Dalavia), estudante da UnB e filha bastarda de um general. Ela fica obcecada pelos relatos e pelos personagens daquele livro e seguindo as páginas do livro sai em busca de sua própria história. Em um diálogo do filme, Juliana define assim o livro: “É tipo um diário do Che, só que com mais mosquito e uma guerrilheira fodona”.
“Tenho orgulho do meu pai ter feito parte dessa resistência tão importante, que foi a Guerrilha do Araguaia, e de que suas vivências inspirem histórias como as contadas nesse filme”, afirma o filho mais velho de Glênio, Gilson Sá, ao falar sobre as expectativas da família com a estreia do filme.
“Espero que o filme traga mais clareza à sociedade sobre este momento obscuro e de grande efervescência política do país, ao tratar dos conflitos que se deram contra o golpe militar, que ao longo da história têm sido escondidos. Ainda hoje tentam apagar o direito à verdade dos acontecimentos sucedidos nesse período”, avalia Gilson.
Rodado em Brasília, com cenas na UnB, e nas margens do rio Araguaia no estado do Tocantins, o filme “O Pastor e o Guerrilheiro” vem se somar às obras cinematográficas produzidas no país com a temática da ditadura militar e contribuir para que não aconteça o apagamento da memória.
“Muito feliz em ver uma história tão rica, um misto de amor e coragem, que tive a oportunidade de escutar tantas vezes, narrada por ele, desde que nos conhecemos, no final da década de 70, inspirar produções cinematográficas. Viva o cinema brasileiro! Viva a luta desse companheiro incrível, que foi Glênio Sá! Estará presente, sempre, em minha vida, na dos nossos filhos, Gilson Sá e Jana Sá, e das nossas netas, Ana Beatriz e Manuela”, afirma a companheira de Glênio Sá, Fátima Sá.
O Pastor e o Guerrilheiro – Trailer
Passado e presente
“O filme cuida de resgatar a memória dos horrores da ditadura militar e dos militantes que a combateram, inspirado no livro do militante Glênio Sá”, define o produtor Nilson Rodrigues.
Para ele, a obra “traz questões importantes para o momento atual, quando na virada do milênio a estudante descobre a história quando está na universidade lutando pela implantação das cotas raciais. E, também, mostra a ascensão dos neopentecostais no ano de 1999, quando vemos o evangélico que esteve na cadeia durante a ditadura em conflito com seu filho, que quer buscar um caminho mercantilista para sua igreja. Um filme que mostra os impactos da ditadura nos tempos atuais”.
O longa-metragem “O Pastor e o Guerrilheiro” chega ao público de todo o Brasil na próxima quinta-feira, 13 de abril, mas ele já foi assistido por mais de seis mil alunos do ensino médio e dos institutos federais de Brasília. Por meio do Projeto Escola no Cinema – Circuito Brasileiro de Cinema -, nos meses de fevereiro e março, foram realizadas pela Associação Amigos do Cinema e da Cultura, pré-estreias e debates com alunos e professores em várias escolas públicas.
Sobre Glênio Sá
Glênio Sá, como estudante secundarista, antes de ir para a Guerrilha do Araguaia
Glênio Fernandes de Sá nasceu no município de Caraúbas, Rio Grande do Norte, em 30 de abril de 1950. Dois anos depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, aos 16 anos, começou seu engajamento na ação política oposicionista, quando ainda fazia o curso ginasial no Colégio Estadual de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Em 1968, já em Fortaleza, engaja-se rapidamente no movimento estudantil cearense, do qual passa a participar ativamente, quando ingressa nas fileiras do PCdoB. Por suas atuações no movimento estudantil e pelas suas posições políticas foi preso duas vezes em 1969.
No auge da Ditadura Militar, deslocou-se para o sul do Pará, onde ajudou na organização e conscientização dos camponeses da região na luta contra grileiros e latifundiários, num movimento que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia. Por sua participação na Guerrilha, foi preso em 1972 e libertado apenas em setembro de 1974. Neste período, foi barbaramente torturado e transferido, por diversas vezes, de prisão. Mas Glênio nunca foi julgado por tal participação.
Ao alcançar a liberdade, já tinha a convicção da tarefa de reconstruir o Partido Comunista do Brasil no seu Estado, com uma atuação muito intensa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde cursava Geologia. Glênio se casou com Fátima Sá, com quem teve dois filhos, Gilson Sá e Jana Sá.
Foi candidato a vereador em 1982, a deputado estadual, em 1986, e em 1990, ao Senado pela Frente Popular do Rio Grande do Norte, quando faleceu, vítima de um suposto acidente automobilístico. A família contesta a versão oficial e lançou um documentário com elementos que levantam as dúvidas: “Não foi acidente, mataram meu pai”. Documentos oficiais de órgãos militares e da Abin atestam que Glênio foi perseguido pelos militares quase 10 anos depois da promulgação da Lei de Anistia. No livro “Memórias de Uma Guerra Suja”, o ex-delegado do DOPS Claudio Guerra afirma que os militares forjaram um acidente automobilístico no interior do Nordeste, no início dos anos 1990, no qual morreu um político que lutou contra o antigo regime.
Edição: Bárbara Luz
Fonte: Portal Vermelho