- Juan Francisco Alonso
- Role,BBC News Mundo
“Eu sou um liberal libertário. Filosoficamente, sou um anarquista de mercado”.
Assim se definiu em 2021 o deputado Javier Milei, que surpreendeu nativos e estrangeiros ao vencer com folga as eleições primárias realizadas no domingo na Argentina e assim se tornar o favorito para as eleições presidenciais marcadas para o próximo dia 22 de outubro.
O argentino também deixou essa posição refletida em O caminho do libertário (janeiro de 2022), uma compilação de textos e discursos onde explica o caminho que o levou a perceber e calibrar o descontentamento da sociedade com o que chama de casta política.
O candidato, um economista de 52 anos com estilo roqueiro, há anos chama a atenção por suas polêmicas – e muitas vezes barulhentas – aparições nos programas de televisão mais populares na região sul do país.
Com frases como “estou aqui para expulsar esses bandidos”, Milei começou a conquistar o apoio de jovens e de uma classe média desencantada, que se diz cansada da incapacidade das forças políticas tradicionais de resolver seus principais problemas, prinicpalmente a inflação desenfreada.
E embora suas promessas de “dinamitar” o Banco Central, acabar com as “obras públicas”, cortar subsídios e permitir o porte de armas pareçam ir ao encontro do que se espera de um libertário, outras propostas dessa figura polêmica geram dúvidas sobre sua real posição.
O libertarianismo é alimentado pelo pensamento de filósofos como John Locke.
O que é o libertarianismo?
O libertarianismo é uma corrente filosófica da política que estabelece a “liberdade individual como valor político supremo”, afirma David Boaz, ex-vice-presidente do Instituto Cato, fundação norte-americana que busca justamente promover essa ideologia.
“Um libertário admite que as pessoas podem ser justificadamente forçadas a fazer certas coisas, sendo a mais óbvia abster-se de infringir a liberdade dos outros. No entanto, um libertário considera inaceitável que alguém possa ser forçado a servir aos outros, mesmo que seja para o seu próprio bem”, define a Enciclopédia Filosófica da Universidade de Stanford.
Essa corrente tem suas raízes históricas no movimento iluminista, que começou em meados do século 18 e durou até os primeiros anos do século 19 na Europa.
Foi nessa época que pensadores como o francês Montesquieu, o inglês John Locke ou o escocês Adam Smith começaram a desenvolver teorias e ideias que questionavam a antiga – e então dominante – crença de que um grupo de pessoas poderia impor seus desejos a outras pessoas, por herança ou motivos religiosos.
O libertarianismo recebeu um impulso com a independência dos Estados Unidos, já que os chamados pais fundadores concederam amplos direitos aos cidadãos do novo país.
Mas como se não bastasse questionar o papel dos monarcas e do clero, esta corrente também tem procurado limitar os poderes dos governos democráticos e representativos.
“Os libertários acreditam que o respeito pela liberdade individual é o requisito central da justiça. Eles acreditam que as relações humanas devem ser baseadas no consentimento mútuo. Os libertários defendem uma sociedade livre, de cooperação, tolerância e respeito mútuo”, disse o filósofo americano Jason Brennan, em um artigo para a Escola Austríaca de Economia e Ideias Libertárias.
A definição deixa claro que esse movimento desconfia do Estado, por considerá-lo invasivo e desnecessário. E sustentam que “algumas formas de ordem na sociedade surgem natural e espontaneamente, sem direção central”, explica a Enciclopédia Britânica.
Por isso, os libertários acabaram se separando dos liberais, que supunham que uma estrutura (governo, leis, etc.) é necessária para acabar com os conflitos e também para ajudar a resolver as diferenças entre as pessoas.
“Considero o Estado um inimigo; os impostos são um estorvo à escravidão. O liberalismo foi criado para libertar o povo da opressão dos monarcas; neste caso, do Estado”, afirmou Milei, em uma declaração que o coloca em sintonia com os postulados básicos do libertarianismo.
O que significa ser um libertário na prática?
Milei defende a dolarização da economia argentina.
Ao promover o livre mercado, defender a propriedade privada e um Estado pequeno e limitado, os libertários foram colocados à direita no espectro político.
No entanto, outros elementos-chave de sua ideologia acabaram sendo assumidos por forças da esquerda. Entre eles estão a defesa da liberdade individual, especialmente em relação a questões sexuais ou ao uso de drogas, e o pacifismo.
No entanto, o sociólogo Felipe Benites alerta que “os libertários não aceitam a antiga separação política entre doutrinas de esquerda e direita”.
E, no centro de tudo, colocam a liberdade de cada um.
“Os libertários tentaram definir o escopo apropriado da liberdade individual em termos da noção de propriedade pessoal, ou autopropriedade, o que implica que cada indivíduo tem direito ao controle exclusivo de suas escolhas, ações e corpo.” Boaz explicou.
Milei deixou claro que a questão do uso de drogas não será sua principal preocupação se ele se tornar presidente da Argentina. “Drogar-se é cometer suicídio em prestações. Se você quer ficar chapado, faça o que quiser, mas não me peça para pagar a conta”, disse ele.
Líderes políticos como o americano Ronald Reagan assumiram algumas propostas dos libertários, em particular aquelas relacionadas à redução do Estado.
Os seguidores desta corrente também se opõem aos conflitos armados, já que “a guerra traz morte e destruição em grande escala, desorganiza a vida familiar e econômica e coloca mais poder nas mãos da classe dominante”, acrescenta o ex-vice-presidente do Instituto Cato .
Nas palavras de Benites, o libertarianismo “é uma linha de pensamento que abomina o uso desnecessário da violência”.
Milei mostrou estar em sintonia com este último princípio. Prova disso é que ele criticou duramente a guerra das Malvinas (ou Falklands, para os britânicos) de 1982 e garantiu que um de seus governos defenderá o diálogo, embora tenha admitido que a tarefa “é complicada”.
“Se você quiser que [as ilhas] voltem a fazer parte da Argentina um dia, isso envolverá uma negociação muito, muito longa e na qual a Argentina terá que ser capaz de propor algo interessante (…)
“Você terá que sentar e conversar com o Reino Unido e discutir essa situação com quem mora nas ilhas”, disse ele em entrevista que concedeu em 2022 a uma agência especializada em questões econômicas.
As Malvinas são um tema de tensão entre britânicos e argentinos. O pequeno arquipélago 500 km ao leste do extremo sul da Argentina foi anexado pela Grã-Bretanha em 1833.
Libertário ou populista?
A principal razão para duvidar que Milei seja um libertário é sua posição sobre o aborto.
“Sou contra o aborto, porque acredito no projeto de vida dos outros. A mulher pode escolher sobre seu corpo, mas o que ela tem dentro do ventre não é seu corpo, é outro indivíduo”, declarou o candidato presidencial.
Por isso, a especialista em comunicação política Carmen Beatriz Fernández afirma que Milei não se encaixa no rótulo de libertário, mas em outros como o de “neopopulista ou autoritário de direita”.
“Um libertário clássico é aquele que tem posições liberais no campo econômico, mas também no que se refere às liberdades pessoais e individuais. Não diria que Milei é um libertário clássico, embora seja um promotor das ideias econômicas da Escola Austríaca”, disse o professor da Universidade de Navarra, na Espanha, à BBC Mundo.
Essa visão não é compartilhada pelo cientista político Guillermo Tell Aveledo, que considera Milei o representante “mais organizado” dessa tendência política.
“Suas críticas a temas como orçamentos e políticas específicas, tanto na época como comentarista de programas de televisão quanto agora como deputado federal, têm sido direcionadas ao tamanho e à atuação do Estado, por isso ele se enquadra no perfil de um libertário”, afirmou o reitor da Faculdade de Estudos Jurídicos e Políticos da Universidade Metropolitana de Caracas.
A posição de Milei sobre o aborto é contrária às teses libertárias, que defendem que cada um pode fazer o que quiser com seu corpo.
No entanto, Aveledo admite que as posições conservadoras do polêmico candidato presidencial argentino e outras contradições o impedem de ser considerado um “genuíno libertário”.
E, por isso, o rotula como “um paleolibertário (libertário conservador)” ou um “anarcocapitalista”; ou seja, alguém que acredita que a sociedade só pode se organizar e funcionar com o mercado, sem a necessidade do Estado.
“Um libertário genuíno defende a abolição do Estado e da própria Presidência, mas ele aspira a esse cargo”, disse o especialista.
Benites, por sua vez, vê o presidenciável muito bem enquadrado nessa ideologia.
“Javier Milei é um economista que pensa como libertário, articula como libertário e seu programa de governo tem muito libertarianismo”, disse à BBC Mundo.
Mas há quem diga que Milei é populista. Sobre isso, Benites afirma que o populismo só pode ser definido como tal a partir do momento em que se estabelece sob uma forma de governo (“quando sua ação o coloca fora dos limites de qualquer restrição institucional, não antes”).
“Por enquanto, talvez apenas talvez, pode-se dizer que sua abordagem é demagógica. Mas quem com chances reais de vitória pode deixar de sê-lo nestes tempos de democracias sitiadas por todos os lados?”, alertou.
Se anhar as chaves da Casa Rosada nas eleições presidenciais de outubro próximo, será possível observar se Milei cumpre ou não com suas promessas e, a partir daí, as dúvidas serão esclarecidas.
Fonte: BBC Brasil