O que o Rio Grande do Sul pode aprender com as falhas na resposta ao Katrina nos EUA

Brasil Mundo
  • Alessandra Corrêa
  • Role,De Washington para a BBC News Brasil

No momento em que o Rio Grande do Sul confronta o alcance da destruição provocada pela maior enchente de sua história, surgem comparações com um dos mais devastadores desastres naturais a atingir os Estados Unidos: a passagem do furacão Katrina, em 2005.

Nos últimos dias, veículos da imprensa internacional chegaram a dizer que as inundações no sul do Brasil podem representar um teste e um “momento Katrina” para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Até a manhã de segunda-feira (13/5), havia 447 municípios afetados no Rio Grande do Sul, com mais de 2 milhões de pessoas afetadas. O governo havia contabilizado 147 mortes e mais de 800 feridos.

Nos Estados Unidos, o então presidente George W. Bush foi duramente criticado pelo fracasso na resposta ao Katrina, que deixou quase 1,4 mil mortos e mais de 1 milhão de desalojados na região americana da Costa do Golfo do México e arrasou a cidade de Nova Orleans.

Quase 20 anos depois, as falhas de planejamento e preparação, a extensão dos danos e os desafios na reconstrução continuam sendo um símbolo no país e uma lição para outros locais afetados por desastres naturais.

Enquanto muitos dos estragos eram considerados inevitáveis, diante da força do furacão, hoje há consenso de que a devastação nos Estados Unidos foi agravada pela demora e ineficácia da resposta.

Segundo Jeffrey Schlegelmilch, diretor do Centro Nacional de Preparação para Desastres da Universidade Columbia, em Nova York, o Katrina até hoje continua sendo “um exemplo muito importante” dos erros a evitar em catástrofes do tipo.

Problemas no sistema de proteção

Schlegelmilch diz à BBC News Brasil que parte dos problemas vinha de longo prazo, e já se sabia há muito tempo que Nova Orleans era vulnerável a inundações.

Maior cidade do Estado da Louisiana, Nova Orleans está localizada às margens do Lago Pontchartrain e do rio Mississippi, em uma área abaixo do nível do mar, e contava com um sistema de diques para se proteger das águas.

“Sabia-se que havia fragilidades no sistema”, afirma Schlegelmilch. “Também em torno de como o rio Mississippi, como bacia hidrográfica, estava sendo usado, e como a agricultura e o desvio de águas reduziam algumas das barreiras naturais para evitar inundações.”

O Katrina chegou em 29 de agosto de 2005. Um dia depois, os diques se romperam, provocando uma inundação que destruiu bairros inteiros e deixou 80% da cidade submersa.

Em análises e estudos feitos após a tragédia, especialistas concluíram que, caso tivessem sido construídos de maneira adequada, os diques poderiam ter suportado a tempestade.

No entanto, o próprio US Army Corps of Engineers (Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos, agência federal de engenharia pública que projetou o sistema de proteção da cidade) admitiu posteriormente uma série de problemas na construção dos diques.

O projeto havia sido baseado em dados desatualizados, tinha design defeituoso e problemas de qualidade de materiais, resultado da falta de financiamento apropriado.

Segundo Tim Frazier, diretor docente do programa de gestão de emergências e desastres da Escola de Estudos Continuados da Universidade de Georgetown, em Washington, tanto o governo federal quanto o Estado e o município falharam em relação à manutenção e aperfeiçoamento dos diques.

“Mas a realidade é que os diques foram erguidos para proteger uma cidade que nunca deveria ter sido construída nesse local”, diz Frazier à BBC News Brasil.

Moradores deixados para trás

Quando os diques se romperam, cerca de 1,2 milhão de pessoas já haviam deixado a região afetada, que englobava também outras cidades próximas. Mas pelo menos 100 mil moradores haviam ficado para trás, alguns por opção, outros por não conseguirem sair por conta própria.

“Não se percebeu que tantas pessoas precisariam de ajuda, fossem idosos com problemas de locomoção ou pessoas pobres, que não tinham carro nem dinheiro para pagar um meio de transporte e deixar a área”, ressalta Frazier. “Além disso, não havia para onde ir.”

Muitos morreram afogados instantaneamente, outros sucumbiram a ferimentos dias depois. Famílias inteiras passaram horas em cima dos telhados, à espera de resgate.

“Não havia um plano para uma evacuação dessa magnitude”, observa Schlegelmilch.

O então prefeito de Nova Orleans, Ray Nagin, foi criticado na época por só ordenar a evacuação obrigatória da cidade na véspera da chegada do Katrina, o que teria dificultado a saída de parte dos moradores.

“Havia dúvida sobre se o prefeito tinha autoridade legal para ordenar a evacuação ou para usar os ônibus escolares”, lembra Schlegelmilch.

“Quando a questão de quem tinha autoridade foi resolvida, já era tarde demais, a tempestade estava muito próxima.”

Milhares de pessoas que tiveram de deixar suas casas foram direcionadas ao estádio Superdome e ao Centro de Convenções, no que era para ser uma solução temporária, enquanto aguardavam resgate para serem transferidos para outros abrigos.

No entanto, os desabrigados acabaram passando dias nesses locais, sob calor intenso, sem água, comida, medicamentos ou segurança, em péssimas condições de infraestrutura e higiene que deixaram claras as deficiências e a desorganização na resposta imediata.

“Houve atraso na tomada de decisões de evacuação, decisões de trazer recursos. Subestimaram os danos que poderiam ocorrer”, salienta Schlegelmilch. “E também não havia muita flexibilidade no sistema.”

Troca de acusações e falta de coordenação

Em meio à troca de acusações entre autoridades locais, estaduais e federais, a falta de coordenação e a burocracia contribuíram para o caos.

As principais críticas recaem sobre o governo federal e, principalmente, a Federal Emergency Management Agency (Agência Federal de Gestão de Emergências, FEMA na sigla em inglês), responsável por coordenar a resposta nacional a situações de emergência.

Na época liderada por um administrador com pouca experiência em desastres, a agência foi acusada de atrasar e bloquear esforços de socorro em meio a trâmites burocráticos e confusão sobre o tipo de autorização necessária, impedindo que ajuda e suprimentos chegassem aos necessitados.

“Havia relatos de pessoas morrendo de desidratação por falta de água, enquanto caminhões com água não tinha permissão para entrar na cidade porque não traziam o formulário correto ou a assinatura necessária”, lembra Frazier.

Grupos de bombeiros altamente treinados para situações de emergência foram enviados a Nova Orleans, mas passaram dias em um hotel em outro Estado recebendo treinamento sobre temas como assédio sexual antes de poderem chegar aos locais atingidos.

Ônibus requisitados para transportar os desabrigados chegaram com vários dias de atraso e em número muito menor do que o necessário. Trens saíram da região sem passageiros por não ter autorização para transportar as pessoas que precisavam evacuar.

Os dias e semanas após a chegada do Katrina também foram marcados por relatos de violência, com tiroteios e saques. Tropas da Guarda Nacional enviada por outros Estados demoraram a chegar à área afetada por problemas burocráticos e falta de comunicação.

Uma comissão especial criada pela Câmara dos Representantes para investigar a preparação e a resposta ao Katrina concluiu que houve “falhas em todos os níveis de governo”.

Danos e disparidades

À medida que a extensão da tragédia ficava mais clara, os americanos tiveram de confrontar a série de erros que deixaram o país mais rico do mundo, acostumado a enviar ajuda a vítimas de desastres em outras nações, tão vulnerável a tamanha devastação e incapaz de manejar a crise em seu próprio território.

O Katrina foi o desastre natural mais caro da história dos Estados Unidos, com danos calculados em mais de US$ 190 bilhões (R$ 977 bilhões), em valores revisados em 2024 pelo governo americano. Cerca de 200 mil casas foram totalmente destruídas ou seriamente danificadas.

O número de mortos, inicialmente estimado em 1.833 pessoas, foi posteriormente revisado para 1.392. A população de Nova Orleans, que antes era de aproximadamente 485 mil habitantes, caiu pela metade e até hoje não voltou ao nível de antes do Katrina, com 370 mil moradores segundo os dados mais recentes.

Apesar de o furacão e a inundação terem afetado tanto moradores negros quanto brancos, a resposta e a reconstrução deixaram claras as desigualdades sociais e raciais. Em Nova Orleans, 60% dos moradores são negros, e a taxa de pobreza nessa parcela da população é o triplo da verificada entre os habitantes brancos.

Muitos dos mais pobres não tinham seguro residencial e viviam em casas alugadas ou sem título de propriedade, dificultando o recebimento de auxílio financeiro para recuperar os imóveis. O aumento nos preços dos aluguéis após a reconstrução impediu que muitos voltassem para os bairros em que viviam.

Enquanto as partes turísticas e os bairros mais afluentes foram reconstruídos, áreas mais pobres e de maioria negra, como Lower Ninth Ward, que fica na beira do Mississippi e foi uma das mais devastadas, até hoje não se recuperaram completamente.

“Para quem está de fora, a cidade parece recuperada”, afirma Schlegelmilch. “Mas há muitas pessoas que nunca se recuperaram. Muitos partiram e nunca mais voltaram.”

Mudanças após o Katrina

O fracasso da resposta ao Katrina levou a uma série de reformas na política de gestão de emergências nos Estados Unidos.

Entre as mudanças está uma melhor coordenação entre diferentes agências e níveis de governo, com definição clara sobre o papel de cada um e adoção de acordos e autorizações preliminares para que a ajuda possa ser acionada imediatamente em caso de desastre.

Foram implementadas exigências mais rígidas de planejamento e treinamento conjunto entre autoridades locais, estaduais e federais, para que estejam preparadas para agir de forma coordenada. Gestores também são melhores treinados para aceitar e coordenar a ajuda de voluntários.

“Ainda temos problemas de resposta, mas há menos barreiras legais e burocráticas do que na época do Katrina, quando voluntários estavam prontos para trabalhar, mas sendo instruídos a não agir”, observa Schlegelmilch.

Para evitar a falta de suprimentos vista durante o Katrina, quando caminhões com água e comida não conseguiam chegar às pessoas afetadas, hoje em dia há maior organização para abastecer previamente locais que serão designados como abrigo.

Também foram feitas reformas para aprimorar o planejamento e a coordenação entre hospitais e lares de idosos para transferir doentes para centros médicos mais capacitados em caso de emergência.

O Congresso americano aprovou ainda uma lei que exige que a evacuação e abrigo de animais de estimação sejam incluídos nos planos de emergência. Durante o Katrina, muitos se recusaram a deixar suas casas sem seus cães e gatos.

Reconstrução

Os especialistas consultados pela BBC News Brasil ressaltam que a reconstrução após um desastre da magnitude do Katrina ou do que atinge o Rio Grande do Sul pode levar décadas, mas também representar uma oportunidade de repensar a forma como as comunidades são construídas.

“Pode exigir mais dinheiro, demorar um pouco mais, mas evitará que essas casas sejam perdidas (novamente) no futuro”, afirma Schlegelmilch, lembrando que é também uma oportunidade de levar em conta questões sociais, de equidade e de justiça ambiental.

“Muitas vezes há pressão para reconstruir o mais rápido possível. Isso normalmente significa que as comunidades mais influentes e ricas são reconstruídas rapidamente, e as comunidades pobres e marginalizadas ficam ainda mais para trás”, diz Schlegelmilch.

Frazier ressalta que muitas vezes comunidades em locais vulneráveis são construídas de forma menos resiliente do que deveriam.

“É mais barato”, diz Frazier. “Há uma disposição de arriscar a exposição a tempestades por causa dos custos associados aos níveis de preparação que minimizariam o risco.”

Em Nova Orleans, o sistema de diques e barreiras de proteção contra inundações foi reconstruído e aprimorado, a um custo estimado em cerca de US$ 15 bilhões.

Especialistas concordam que a cidade está melhor preparada do que na época do Katrina, mas alertam que ainda há riscos, especialmente à medida que mudanças climáticas podem afetar a intensidade e frequência dos furacões.

“(A região) enfrentou outras tempestades. Certamente não da extensão do Katrina, mas algumas bastante significativas, e se saiu melhor”, observa. “Mas a questão é: estamos tão bem preparados como deveríamos? A resposta, provavelmente, é não.”

Frazier salienta que um dos desafios enfrentados globalmente é testar a eficácia das reformas.

“Depois de cada desastre, tentamos determinar o que deu errado, criamos novas políticas para corrigir problemas e fragilidades. Mas não temos uma boa maneira de testar as mudanças até o próximo desastre.”

Para Schlegelmilch, apesar de avanços, lições importantes do Katrina até hoje não foram aprendidas.

Segundo ele, muitos dos incentivos políticos continuam sendo para resposta e recuperação, e não preparação e planejamento para evitar que catástrofes aconteçam.

“(Quando há um desastre natural) todo mundo fala: ‘Não poderíamos ter previsto'”, observa Schlegelmilch. “Isso é categoricamente falso. Sempre há pilhas e pilhas de relatórios onde isso foi analisado. Sabemos das vulnerabilidades, mas optamos por não nos preparar.”

Fonte: BBC Brasil / GETTY IMAGES

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