A cúpula do Brics terminou nesta quinta-feira (24/10) após três dias de reuniões que, para muitos analistas, confirmaram a predominância da agenda de Rússia e China no bloco e seu viés antiocidental.
Segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil, o cenário que se apresenta é de grande desafio para o Brasil, que agora precisará avaliar os custos e benefícios de fazer parte de um grupo que se expande a partir dos interesses de Pequim e Moscou.
Para Laura Trajber Waisbich, pesquisadora da Universidade de Oxford, o contexto de cada vez mais tensão entre, de um lado, Rússia e China, e de outro, Estados Unidos, Europa e seus aliados, impute ponderações mais complexas para a diplomacia brasileira.
“Os custos e benefícios estão mudando a cada dia”, diz a analista de assuntos internacionais. “Se o Brics virar uma plataforma que é puramente reflexo dos interesses russos ou chineses, o Brasil perde.”
“O custo é o acirramento de um estranhamento com o Ocidente”, completa.
Marco Vieira, professor do Departamento de Ciência Política e Estudos Internacionais da Universidade de Birmingham, acredita que o governo brasileiro não pode se afastar dos seus aliados do bloco neste momento, já que o Brics ainda é uma plataforma importante.
“Mas também não pode mostrar que está se alinhando muito”, diz. “É um grande desafio.”
‘Há males que vêm para o bem’
O palco do encontro dos Brics foi a cidade russa de Kazan e o anfitrião da cúpula foi Vladimir Putin.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) participou da reunião apenas de forma virtual, após sofrer um acidente doméstico nas vésperas. A delegação brasileira foi então chefiada em Kazan pelo chanceler Mauro Vieira.
Além dos nove membros oficiais Putin convidou mais de 20 outros países interessados em se juntar ao Brics para a reunião.
O bloco que até o final do ano passado era composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul passou a integrar também Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia em 2024.
Na cúpula de Kazan, os chefes de Estado discutiram e aprovaram a criação de uma nova categoria de parceiros do grupo. Eles não serão integrantes plenos, mas poderão desfrutar de muitos dos benefícios fornecidos pelos Brics.
A lista oficial de associados não foi divulgada oficialmente, mas 13 nomes circulam nos bastidores da cúpula: Turquia, Indonésia, Argélia, Belarus, Cuba, Bolívia, Malásia, Uzbequistão, Cazaquistão, Tailândia, Vietnã, Nigéria e Uganda.
Ao todo, porém, a Rússia afirmou que mais de 30 países manifestaram interesse de fazer parte do novo esquema antes da cúpula.
Por tudo isso, o encontro foi visto como uma oportunidade para Vladimir Putin posar para fotos ao lado de seus contrapartes, impulsionar a ideia de que não está isolado e reforçar sua posição na geopolítica mundial.
A presidência da Rússia no sistema rotativo no bloco e a própria dinâmica da política internacional atual contribuíram para a ampliar a imagem “anti-Ocidente” dos Brics, dizem os especialistas.
O comportamento da China, que se tornou muito mais assertivo nos últimos anos, também contribuiu para esse direcionamento, afirma Vinícius Vieira, professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e da Fundação Getulio Vargas (FGV). [Apesar do sobrenome em comum, não há uma relação de parentesco entre os dois entrevistados e o ministro das Relações Exteriores do Brasil.]
“Mas o fato de Lula não ter ido presencialmente contribuiu para que ele não tivesse uma foto ao lado do Putin, o que no atual contexto seria ainda pior para a imagem dele e do Brasil junto ao Ocidente”, avalia Vinícius Vieira. “É como diz aquele ditado popular: ‘há males que vêm para o bem’”.
‘Vitória importante’
Dois países interessados em fazer parte da nova categoria de parceiros dos Brics e que ficaram de fora da lista final são Venezuela e Nicarágua.
O governo do presidente Lula não apoiava o ingresso de nenhuma das duas nações e, segundo interlocutores presentes na reunião, um veto informal fez com que a vontade do Brasil prevalecesse.
O presidente brasileiro tem feito críticas a Nicolás Maduro e à sua recusa em divulgar as atas das eleições de julho, das quais diz ter saído vitorioso. No caso da Nicarágua, o desconforto brasileiro é motivado pelo recente congelamento das relações com o país.
Ex-aliado de Lula, o líder nicaraguense Daniel Ortega expulsou o embaixador brasileiro de Manágua em agosto. Em resposta, o Brasil fez o mesmo com a embaixadora do país sul-americano em Brasília.
Os dois países, porém, são considerados aliados de China e Rússia. Nicolás Maduro inclusive apareceu de surpresa na cúpula, em um movimento que muitos entenderam como parte de uma campanha russa em favor do chavista.
“A entrada de Venezuela e Nicarágua não agregaria em nada para o Brasil agora, então esse bloqueio pode ser considerado uma vitória importante nessa cúpula”, avalia Vinícius Vieira.
Mas para Marco Vieira, professor da Universidade de Birmingham, a posição brasileira na cúpula certamente repercutirá nas relações com Caracas daqui para frente.
“O veto não vai ajudar na relação, que já está bastante estremecida”, diz.
Um Brics cada vez mais expandido
Se o bloqueio à entrada venezuelana no bloco foi considerado uma vitória, a expansão dos Brics, com a adoção da nova categoria de parceiros, é vista por analistas como um empecilho para as ambições do Brasil no grupo.
“Sempre foi muito claro que esse projeto de expansão não é brasileiro”, diz Laura Trajber Waisbich. “A ideia de aceitar mais membros, que levou aos atuais 9, veio da China e do próprio projeto de poder chinês.”
A mais recente ampliação, com os países parceiros, também atende mais aos interesses de Pequim e Moscou do que dos demais, diz a pesquisadora da Universidade de Oxford.
“A lógica sempre foi fazer parte de um clube exclusivo com países reconhecidos como geopoliticamente importante e com poder de contestação”, diz.
Para Waisbich, o governo Lula tem deixado bastante claro em suas declarações que aceitar novos associados a cada novo ano está totalmente fora de sua agenda. Mas até o momento o país não parece ter tido energia suficiente para barrar esse movimento.
Em uma entrevista à CNN Brasil, o assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República, Celso Amorim, afirmou que a entrada de novos países tem que ser muito bem estudada.
“Não adianta encher de países, senão daqui a pouco cria um novo G-77”, disse Amorim, enfatizando que é preciso que os Brics sejam ampliados com países com perfis que possam contribuir dentro de um contexto de um mundo “polarizado e multipolar”.
Com tudo isso, o avanço de algumas das pautas impulsionadas pelo Brasil, como a desdolarização da economia mundial, avançou pouco, afirmam os especialistas.
Uma das prioridades do Brasil em Kazan era o estabelecimento de critérios e requisitos básicos para que os países parceiros sejam aceitos.
Segundo o chanceler Mauro Vieira, esse ponto foi abordado durante as reuniões. “Foi discutido e aprovado – houve consenso – sobre os princípios e critérios que guiarão essa ampliação”, disse o ministro a jornalistas.
Mauro Vieira afirmou ainda que o Brasil é favorável a entrada de 10 países parceiros nesse primeiro momento e que a lista final será decidida após consulta a todos os membros atuais.
A declaração final da cúpula, porém, trata a criação da categoria de países associados, mas não faz menção aos critérios anunciados pelo chanceler brasileiro.
Vinícius Vieira explica que a inclusão de novos membros em organizações internacionais sempre representa um risco de perda de poder e influência para os integrantes originais.
Mas segundo o professor da FGV, também é possível enxergar benefícios para o Brasil no contexto que se desenha.
Segundo Vinícius Vieira, se a lista de 13 parceiros que circula nos bastidores for confirmada, o país tem muito a ganhar com a presença de outras nações que também apostam em uma postura de não-alinhamento.
“Turquia, Indonésia, Vietnã e Nigéria são exemplos de países que se aproximam do Brasil no sentido de negar um alinhamento, seja com o Ocidente, seja com a Rússia e a China”, afirma.
Na visão do especialista, essas nações têm um perfil de liderança regional e têm se mostrado capazes, seja por sua geográfica ou por seu histórico de colonização, de fazer uma ponte entre os dois grandes polos geopolíticos atuais.
Elas poderiam ser, portanto, aliadas do Brasil nos esforços de recuperar os propósitos iniciais dos Brics, diz Vinícius Vieira
Ao mesmo tempo, a lista provisória de possíveis parceiros traz países com grandes mercados internos, o que pode ser benéfico também em termos econômicos para o Brasil, completa.
Brasil à frente em 2025
Conforme o esquema rotativo em vigor nos Brics, o Brasil assumirá a presidência do bloco em 2025.
Para Marco Vieira, da Universidade de Birmingham, essa posição pode dar ao Brasil um impulso a mais na busca por seus objetivos com o grupo.
Cabe ao presidente da vez, por exemplo, selecionar os países convidados para acompanhar a reunião de cúpula e definir os temas principais da agenda das reuniões.
Mas o especialista não vê os desafios desaparecendo tão facilmente. “E esses desafios também se replicam no âmbito do G20”, diz.
O Brasil é o atual presidente do G20. Composto também por África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia, o grupo se reunirá em Brasília de 6 a 8 de novembro.
“O Brasil também vai ter que se posicionar de alguma forma na polarização atual – uma posição que fica mais difícil diante dos rumos que o Brics está tomando”, finaliza Marco Vieira.
Fonte: BBC Brasil