Gilsam conheceu Jorge de Angélica nos anos 80, com quem compartilhou composições e projetos como a Trilogia do Reggae
Cantor, compositor, agitador cultural e social, reggaeman, Jorge de Angélica foi (e seguirá sendo) referência para toda uma geração de artistas de Feira de Santana (BA) e região. Há pouco mais de um mês, faleceu aos 64 anos, enquanto aguardava transferência no Pronto Atendimento do Hospital Geral Clériston Andrade (HGCA).
“O processo de regulação é uma realidade cruel, muito demorado, e às vezes a pessoa está com o seu corpo debilitado e, quando finalmente regula, a pessoa vem a óbito. Com Jorge houve uma demora, no segundo dia da internação estivemos numa luta muito grande para conseguir uma ambulância, que chegou à noite para que ele fosse transferido. Infelizmente, no momento que chegou, ele faleceu”, lamenta Gilsam, de 60 anos, reggaeman, cantor, compositor, instrumentista e arte-educador feirense. Gilsam acompanhou a trajetória de Jorge de Angélica de perto desde 1985, sendo este sua principal referência do gênero.
Quem foi Jorge de Angélica
Descrito por Gilsam como uma pessoa de temperamento meigo, o artista construiu uma carreira de mais de 40 anos, também se dedicando a diversos projetos sociais. Foi o principal fundador do Afoxé Pomba de Malê e criador dos projetos “Cobra Coral” e “Mão Angelical Jesus com Gente”.
Seu último lançamento aconteceu este ano, a música “Gari” faz uma homenagem aos agentes de limpeza pública. O feirense já se apresentou no Carnaval de Salvador, na Micareta de Feira e também nos estados de São Paulo, Piauí e Amazonas. E no que depender de quem trabalhou ao lado de Jorge, seu legado não será esquecido.
Para Gilsam, ele foi a primeira referência da música reggae do país. Foi com quem começou a compreender o que o gênero somava em termos de reflexão enquanto homem negro. “Obviamente a gente tinha os clássicos da música internacional, Bob Marley, Peter Tosh, [que] foram os primeiros que difundiram a música reggae pelo mundo. Mas em termos de Brasil, se existe uma personalidade que me dá régua e compasso, chama-se Jorge de Angélica”, ressalta.
Antes de conhecer Jorge, Gilsam se dedicava à música regional, com referências nordestinas como Luiz Gonzaga. “Era uma forma de colocar a cultura nordestina e as problemáticas regionais em foco. Até então ainda não tinha reflexões sobre meu papel como homem negro, como a sociedade me via”, conta.
Os músicos se conheceram em 1985, quando Gilsam tinha apenas 22 anos, e Jorge 26. Na época, Gilsam estava se aproximando do Afoxé Pomba de Malê. O Afoxé buscava, através dos desfiles, engrandecer a cultura do povo negro, e também promovia ações afirmativas como o Projeto Atiba, que tinha por objetivo levar educação a jovens e adultos que buscam conclusão no ensino fundamental e médio via CPA, oficinas de dança e percussão, apoio a mulheres empreendedoras que buscam espaço com costura e salão de beleza, entre outros.
“A partir dali, eu comecei a compreender a ação política, social e ético-racial que o Afoxé representava naquele momento e ainda representa. Com essa convivência, eu comecei a escrever músicas para o Afoxé com o Jorge. Depois disso, fizemos carreiras individuais”, conta Gilsam.
Um tempo depois, em 2010, os dois músicos se uniram a Tonho Dionorina, outro expoente do reggae na região. Apesar de nascido em Jussarí (BA), Dionorina cedo se mudou para a princesa do sertão, onde criou suas raízes. Juntos, formaram a Trilogia do Reggae. O projeto foi uma das ações culturais mais bem sucedidas dos últimos anos não só na cidade, mas em toda a Bahia, e chegou a ganhar um documentário produzido pela TV Olhos D’água.
“Educador social”
No entanto, para Gilsam, o reconhecimento da produção artística cultural desenvolvida por Jorge em Feira de Santana veio tardiamente, depois de sua morte. “Ele era um educador social, desenvolvia ações importantes, operacionalizando vários cursos, perspectivando vidas. Não sei se, em vida, ele tinha dimensão do que representava para a cidade. Ele deixa um grande legado cultural”, ressalta.
Gilsam defende que tornar a memória da obra de Jorge de Angélica cada dia mais vivaz, é uma tarefa coletiva. A literatura afrocentrada do compositor, afirma, é um de seus principais legados. Bem como sua história de vida, atravessando e superando estereótipos racistas relacionados às suas demarcações geográficas e sua religião.
“Jorge de Angélica sempre buscou transcender essas delimitações sociais, sempre tentou quebrar com a forma estereotipada, marginalizada, que a sociedade sempre o colocou”, acrescenta.
No último dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, o artista realizou uma apresentação durante a programação voltada à data na Praça de Alimentação, em Feira de Santana (BA), onde cantou em homenagem ao amigo. “Quando eu penso em Jorge, me emociono muito. Ele deixa uma cratera muito grande na nossa memória, no nosso coração, no nosso fazer artístico. Fazer reggae sem Jorge Angélica por perto, fica uma margem muito grande”.
Para preencher esse vazio, Gilsam se apega às lembranças que construíram juntos desde a juventude. Como as apresentações gratuitas que promoviam na cidade através do Afoxé Pomba de Malê nas quartas e sábados, onde reuniam pessoas em um “despertar da consciência étnica que fazíamos antes mesmo das Leis 10.629/03 a 11.645/08. Antecipávamos trabalhando as questões raciais. Eram momentos fantásticos”, lembra.
As experiências com a Trilogia do Reggae também são momentos guardados com afago, como a participação do documentário que conta a trajetória artística dos três reggaemans no Festival Internacional de Cinema em Cachoeira. Além dos shows que realizaram estado afora.
“São memórias vivas, que o tempo não apagará. É importante ter esse olhar de referências internas, dialogar com essas grandes personalidades, que constroem uma cidade melhor, antirracista. Jorge de Angélica é essa personalidade, que merece todo o respeito, e que sua memória seja sempre perpetuada como um homem que viveu além de seu tempo”, completa.
Edição: Gabriela Amorim
Fonte: Brasil de Fato/BA