Por Rogério de Almeida, professor da Faculdade de Educação (FE) da USP, e Celso Luiz Prudente, apresentador do programa “Quilombo Academia”, da Rádio USP, e livre-docente pela FE-USP
Domingo, 20 de novembro de 2022
Comenta-se que o século 21 seria o tempo de Aquarius e da Paz. Mas, infelizmente, esta era começou com guerras, estamos testemunhando um cenário mundial que é excessivamente belicoso.
Vivenciamos um processo que coloca em questão a bipolaridade em proveito de uma emergente multipolaridade, que é desfavorável à hegemonia norte-americana, expondo uma inequívoca crise da ocidentalidade eurocaucasiana. Contexto em que o ideal do homem branco, alto e de olhos azuis, como símbolo da harmonia, bondade e da perfeição, fragmentou-se com o fracasso político dos governos de Donald Trump, Boris Johnson e da fatídica versão tropical, com Jair Messias Bolsonaro. Desse modo, a crise da hegemonia eurocidental está no imaginário. Bertold Brecht, poeta e dramaturgo, judeu e antirracista, na luta contra o nazismo observou que: “(…) as doutrinas ditam inabaláveis estão abaladas (…)”, na peça teatral intitulada Vida de Galileu.
Este século, por outro lado, trouxe a Revolução Tecnológica que se encontra nos avançados estágios, da inteligência e da vida, artificiais. É provável que na complexidade revolucionária da tecnologia, a informação ocupe o mesmo prestígio que a máquina ocupou no longo período na industrialidade. Percebemos que as relações abstratas da representação se tornaram mais importantes que as relações objetivas da história, a informação é substancialmente cognitiva e o símbolo tem essência informativa.
Observamos, nessa linha de compreensão, que a imagem é conhecimento. De tal maneira que essa Era é favorável às minorias, pois é substancialmente contrária às relações preconceituosas. Preconceito e conhecimento são antitéticos, o que reforça a importância da efeméride do mês da Consciência Negra, como uma união de lutas contra o convencionalismo da dominação do euro-hétero-macho-autoritário, revelando uma derrota da dominação com o desconforto que há na verticalidade intransigente, dado que atitudes discriminatórias se mostram cada vez mais inadmissíveis.
Nas sociedades poliétnicas de economia dependente, como é caso específico do Brasil, o modo de produção determina a localização social. Temos, por isso, a percepção que esse processo pauta também a seleção racial. Assim, os grupos com fenótipos mais próximos da feição da eurocolonização caucasiana são mais privilegiados. Marx e Engels, no clássico Manifesto do Partido Comunista, ensinam que a burguesia faz da sociedade sua imagem e semelhança. Razão pela qual os segmentos mais distantes da fisionomia branca europeia estão mais passíveis de marginalização. Insistimos em dizer que a pirâmide social brasileira parece uma fórmula química clara em cima e na medida em que desce vai escurecendo. As pessoas e as maneiras de ser diferentes do comportamento eurocaucasiano são vítimas do reducionismo da euro-heteronormatividade, que tenta fragmentar os traços epistemológicos daqueles que lhe são estranhos e por isso entendidos como “outros”.
A Era da Informação, portanto, tem centralidade favorável à luta de redenção das minorias, assim como foi e continua sendo em relação à batalha utópica do proletário pela regeneração das relações humanas no período industrial. Entendemos que no tempo da tecnologia da informação os conflitos sociais se traduziram em lutas de minoria, bem como as lutas de classes se projetaram em lutas de imagens. O afrodescendente e as minorias desenvolvem uma luta ontológica contra a verticalidade da hegemonia imagética do euro-hétero-macho-autoritário, que tenta mediante as mídias de massa impor os estereótipos de inferioridade racial e subalternização dos tido como diferentes.
A sétima arte, para o esteta Giorgio Agamben, é a única mídia transformadora, pois permite que o espectador vá ao possível e ao impossível, facilitando um retorno ao passado e uma projeção ao futuro, que possibilita posturas disruptivas com a ordem estabelecida. O Cinema Negro é uma tendência emergencial que caracteriza a própria radicalização da linguagem cinematográfica, como pontua o filotécnico Paulo Alexandre-Morais, pesquisador da Escola Superior de Educação de Lisboa. E, por isso, insere-se como uma filmografia das minorias vulneráveis, permitindo-lhes a condição de sujeitos, rompendo com a hegemonia do roteiro e direção por parte das classes dominantes, representadas pelo patriarcalismo eurocaucasiano.
Com o destino da sua representação em mãos em um processo autoral de realização, construindo desse modo sua imagem de afirmação positiva, o afrodescendente e a minoria reescrevem sua história com base na sua visão de mundo, lembrando que Sartre chamou atenção, no livro Reflexões sobre o Racismo, para uma possível dominação por meio do olhar do eurocaucasiano. Segundo o filósofo, o homem branco viveu mais de três mil anos observando sem que fosse observado.
A categoria conceitual de dimensão pedagógica do Cinema Negro cumpre, desta forma, um papel civilizatório na medida em que tem um ensinamento dialético de contemporaneidade inclusiva. O afrodescendente, ou minoria, ensina como é e como deve ser tratado, contribuindo com isso para superar o anacronismo excludente do euro-hétero-macho-autoritário, que tenta sufocar a emergência multicultural da dinâmica miscigênica – que é a verdadeira feição do povo brasileiro. Observamos, portanto, que o sentido civilizatório do Cinema Negro está na construção da imagem de afirmação positiva de um Brasil em uma perspectiva holística, que percebe a sua grandeza na amplitude do respeito à diversidade e biodiversidade.
Fonte: Jornal USP