Obra de arte destruída por extremistas e recuperada por estudantes da USP é tema de exposição

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Em cartaz na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU), mostra conta a história da escultura do artista plástico Flávio de Carvalho em homenagem ao poeta espanhol Federico García Lorca, que foi depredada em 1969 por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC)

Operação Lorca é o nome da exposição que ocupa até o próximo dia 18 a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP. Trata-se da reconstituição de uma história digna da ficção, que envolve um poeta comunista, uma obra de arte bombardeada, documentos falsificados e personagens que se tornariam celebridades no Brasil e no exterior.

Tudo começa em 1968, quando um grupo de exilados republicanos da ditadura espanhola do general Francisco Franco encomendou uma escultura ao arquiteto e artista plástico Flávio de Carvalho (1899-1973). Era uma homenagem aos 70 anos de nascimento do poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca, fuzilado pelas tropas franquistas em 1936.

Flávio aceitou a empreitada e produziu um monumento feito de tubos de ferro e chapas de aço, multicolorido de branco, preto, amarelo e vermelho, no qual inscreveu “Hay que abrirse del todo frente a la noche negra, para que nos llenemos de rocío inmortal” (Devemos nos abrir completamente para a noite negra, para que possamos ser preenchidos com o orvalho imortal), trecho do poema Los Álamos de Plata, de Lorca. Terminada, a obra foi instalada na Praça das Guianas, no Jardim Paulista, em São Paulo. Na inauguração, estiveram presentes, entre outros, o irmão de García Lorca e o poeta chileno Pablo Neruda, que fez um discurso para o amigo ausente.

Homem calvo com agasalho branco.
O cineasta Fernando Meirelles, líder da ação de recuperação da obra de Flávio de Carvalho, em 1979: “Resolvemos fazer isso totalmente no impulso. Tivemos a ideia e uma semana depois estávamos lá” – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Mais ou menos um ano depois, em 1969, o monumento amanheceria destruído pelo que pode ter sido uma explosão ou golpes de marreta, não se sabe ao certo. Panfletos chamando García Lorca de homossexual e de comunista, deixados no local, sugeriam a ação de grupos de extrema direita, particularmente o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Os destroços da obra foram recolhidos e jogados em um depósito da Prefeitura.

Por ocasião da 11a Bienal de São Paulo, em 1971, Flávio de Carvalho conseguiu reaver e restaurar a escultura, levando-a para a exposição. Pressões da representação diplomática franquista no Brasil, contudo, impuseram sua retirada da bienal – era, afinal, homenagem a um “comunista”. Assim, a obra voltou para os galpões municipais e ficou esquecida ali por quase uma década.

Em 1979, durante uma aula sobre a arquitetura expressionista de Flávio de Carvalho, o então estudante da FAU Fernando Meirelles – hoje o conhecido diretor de Cidade de Deus – ficou sabendo da trajetória tumultuada da tal escultura. Não teve dúvidas: pegou sua moto e saiu à procura da obra, encontrando-a em um galpão de sucata na altura do quilômetro 24 da Rodovia Raposo Tavares, em Cotia (SP), município vizinho à capital paulista. Voltou de lá obstinado em tirar a obra do ostracismo.

Jovens em frente ao um caminhão.
Registro da operação no depósito em Cotia (SP), com a obra de Flávio de Carvalho já em cima do caminhão – Foto: FAU-USP

Reunindo alguns amigos da FAU, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e de outros lugares, Meirelles partiu com 13 companheiros na boleia e na carroceria de um caminhão. Levava uma série de documentos falsos, com carimbos da prefeitura, para apresentar ao porteiro do galpão. O funcionário ficou em dúvida, mas eram tempos sem celular e internet, e confirmar qualquer coisa era tarefa muito mais complexa do que hoje em dia. A turma aproveitou a hesitação do porteiro, botou os pedaços da escultura no caminhão, fez um retrato oficial da operação e partiu.

Mas a ação não estava terminada. Nos salões da FAU, Meirelles e os amigos trataram de restaurar o monumento, deteriorado por anos de abandono. O trabalho contou com a cobertura detalhada da revista Cine Olho, editada por estudantes da FAU e da ECA, alguns inclusive participantes da operação. O que os jovens não deram conta de fazer, deixaram para os operários de uma fábrica situada no bairro do Ipiranga, na zona sul de São Paulo, terminar.

Restauro finalizado, na calada da noite de 25 de junho de 1979 o grupo voltou a subir no caminhão. O destino agora era a Avenida Paulista, mais especificamente o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp). No dia seguinte, o cartão-postal da cidade receberia um evento da prefeitura chamado Domingo Feliz, e Meirelles e companhia acharam o momento e o lugar ideais para devolver a escultura à cidade. O grupo se infiltrou entre os trabalhadores e montadores presentes por ali, apresentaram mais uma vez a documentação forjada e literalmente cimentaram a obra de Flávio de Carvalho debaixo do vão livre do museu.

No dia seguinte, o próprio prefeito Olavo Setúbal estava por lá e até gostou do que viu. Mas o diretor do Masp, Pietro Maria Bardi, não gostou nada de ver aquela escultura entre as quatro gigantescas colunas vermelhas do museu e convenceu o prefeito a tirá-la de lá. O monumento voltou então para a Praça das Guianas, onde permanece até hoje.

Pessoas olhando para painéis numa exposição.
Por meio de painéis, exposição conta a história do resgate da obra de Flávio de Carvalho por alunos da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Uma revista em cima de uma mesa.
Fac-símile da revista “Cine Olho”, publicação feita por estudantes da USP que documentaram o resgate da escultura de Flávio de Carvalho – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Página de jornal antigo.
Matéria do “Jornal da Tarde”, de 26 de junho de 1979, relata o resgate do monumento e sua instalação no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp) – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Pessoas olhando para painéis numa exposição.
O público presente na exposição “Operação Lorca” – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Pessoas olhando para painéis numa exposição.
Por meio de painéis, exposição conta a história do resgate da obra de Flávio de Carvalho por alunos da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Uma revista em cima de uma mesa.
Fac-símile da revista “Cine Olho”, publicação feita por estudantes da USP que documentaram o resgate da escultura de Flávio de Carvalho – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Um salto no tempo. Em 2024, ao ler a respeito dessa história nas páginas da revista Piauí, o estudante de Audiovisual da ECA Igor Estevam encontrou o assunto de que precisava para seu trabalho na disciplina Interfaces Audiovisuais, ministrada pelo professor Almir Almas. Convenceu seu grupo a abraçar o tema e produziu um filme, embrião do documentário Operação Lorca, o Bailado, dirigido por Estevam, com previsão de estreia em 2026.

Foi esse documentário que inspirou a exposição Operação Lorca, produzida por Ísis Kanashiro, estudante da FAU que participou da disciplina ao lado de Estevam. Na mostra, uma série de painéis faz a reconstituição cronológica dessa história, trazendo reproduções de notícias dos jornais da época e fotografias. Um fac-símile da revista Cine Olho também está à disposição do público, assim como dois curtas-metragens.

Um deles é 7 Lições Que se Aprendem Com as Crianças, os Loucos e os Ladrões, realizado em 1979 por Carlos Nascimbeni, um dos participantes da operação. A película captura a presença da escultura de Flávio de Carvalho no vão do Masp, trazendo entrevistas com Meirelles e com o então prefeito Olavo Setúbal. O outro curta é um teaser de Operação Lorca, o Bailado. O documentário reúne depoimentos dos participantes da operação, entremeados com performances que fazem referência a García Lorca e a Flávio de Carvalho, a partir da dança flamenca e de máscaras da peça teatral O Bailado do Deus Morto, escrita por Flávio.

Homem ao lado de painéis numa exposição.
O diretor do Instituto Cervantes, Daniel Gallego Arcas, em visita à exposição na FAU – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Homem de barba.
O diretor do documentário “Operação Lorca, o Bailado”, Igor Estevam – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Pessoas assistindo a uma projeção.
Na exposição, público assiste ao documentário “7 Lições Que se Aprendem Com as Crianças, os Loucos e os Ladrões”, de Carlos Nascimbeni – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Uma jovem de óculos, falando ao microfone.
A produtora da exposição “Operação Lorca”, Ísis Kanashiro – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Um grupo de pessoas reunidas.
Participantes da Operação Lorca reunida, 47 anos depois – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Homem ao lado de painéis numa exposição.
O diretor do Instituto Cervantes, Daniel Gallego Arcas, em visita à exposição na FAU – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Homem de barba.
O diretor do documentário “Operação Lorca, o Bailado”, Igor Estevam – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

As duas produções cinematográficas foram exibidas na abertura da exposição, no dia 11, quarta-feira, que contou com a presença de vários membros do grupo de resgate do monumento, incluindo Meirelles e Nascimbeni. O diretor da FAU, João Sette Whitaker Ferreira, também esteve presente, assim como o diretor do Instituto Cervantes, Daniel Gallego Arcas, representando o governo espanhol.

Em entrevista exclusiva para o Jornal da USP, Meirelles conta que a operação de resgate do monumento foi feita de maneira espontânea. “Totalmente sem planejar, um acidente de percurso”, lembra o cineasta. “Resolvemos fazer isso totalmente no impulso. Tivemos a ideia e uma semana depois estávamos lá.”

Questionado se ele acharia possível uma aventura dessas em 2025, Meirelles julga difícil. “Hoje é tudo mais controlado, mais fechado”, reflete. “A vida está muito mais chata, os advogados tomaram conta do mundo. Talvez eu tivesse sido preso.”

Uma escultura abstrata numa praça.
A obra de Flávio de Carvalho, na Praça das Guianas, em São Paulo – Foto: FAU-USP

O cineasta conta que logo após a devolução da obra, em 1979, foi chamado à delegacia. Teve uma conversa com o delegado, que entendeu não ter havido nenhum beneficiário do “roubo” além da própria cidade. “O delegado começou a tomar meu depoimento e chegou uma hora que disse: ‘Quer saber, garoto? Vai para a casa e não faz mais isso’”, conta Meirelles. “Hoje não seria assim, teria virado um processo. Era mais fácil antes, com menos controle. A vida é muito mais chata hoje”, pondera o cineasta.

A exposição Operação Lorca fica em cartaz até 18 de junho na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP (Rua do Lago, 876, Cidade Universitária, em São Paulo). Entrada grátis.

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