Qui-xote: a história interrompida de Dulcineia e senhor Miller é, na definição da própria Ocam – a Orquestra de Câmara da Escola de Comunicações
Por Luiz Prado – Domingo, 5 de dezembro de 2021
Qui-xote: a história interrompida de Dulcineia e senhor Miller é, na definição da própria Ocam – a Orquestra de Câmara da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP –, um espetáculo lítero-musical. Isso porque reúne a um só tempo concerto e teatro, música erudita e popular, literatura de cordel, artes visuais e audiovisual em uma obra que costura suas referências com a mesma vontade de mistura vista nesse conglomerado de linguagens.
O espetáculo inédito, que está disponível a partir do dia 3 de dezembro no canal da OCAM no YouTube, é a resposta da orquestra para uma pergunta urgente que vem arrepiando seus integrantes: como fazer arte diante de uma realidade na qual 600 mil vidas foram levadas pela pandemia? Nessa resposta, a relevância do fazer artístico surge por meio do entrelaçamento de referências, cruzamento de linguagens, fusão do erudito e do popular, síntese do passado com o presente, em um liquidificador criativo que faz do todo final, para usar a batida mas exata expressão, maior do que a soma das partes.
O ingrediente inicial dessa receita foi a vontade de homenagear o Movimento Armorial, que completou 50 anos em 2020, conforme explica André Bachur, regente de Qui-xote, regente adjunto da OCAM e pós-graduando na ECA, que assina a concepção do projeto ao lado do diretor artístico assistente Lucas Coelho e do músico Thiago Brisolla. É do movimento fundado por Ariano Suassuna que o espetáculo parte para reunir arte erudita e manifestações da arte popular brasileira, sobretudo nordestina, como a literatura de cordel, a xilogravura, o teatro de rua e o uso de instrumentos como violas, rabecas e sanfonas.
A esse panorama popular, Thiago Brisolla juntou a referência de Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes. Integrante da Ocam e também estudante de pós-graduação na ECA, com uma pesquisa sobre ensino de violino através do cordel, Brisolla é o autor do texto de Qui-xote, além de tocar viola nordestina no espetáculo e fazer as vezes de narrador. “Será que nós, como artistas, não estaríamos sendo como Quixote, batendo no moinho de vento? Será que essa incursão é em vão?”, questiona o músico.
O destaque do espetáculo, entretanto, não fica para a figura do engenhoso fidalgo, mas para uma Dulcineia reinventada em um Brasil no qual se torna dona de um boteco configurado por noitadas de forró, chinelos de dedo, copos americanos, porções gordurentas e boemia. “Dulcineia representa o artista e sua atitude diante da morte”, comenta Brisolla.
Resistência face à morte, frisa o músico, pois o botequim de Dulcineia faz frente a um cemitério, celebrando a vida. “Essa algazarra toda faz um eco no silêncio do cemitério e desafia aquilo ali.” A indesejada das gentes, entretanto, não segura o contra-ataque e envia o senhor Miller do título para instalar sua agência funerária exatamente em cima do estabelecimento da heroína. Entre clientes afugentados e escaramuças, um incêndio simplesmente destrói tudo e coloca os personagens em movimento, uma jornada que materializa a procura por uma nova forma de se fazer arte.
Nessa travessia, Dulcineia e Miller, representantes da arte popular e erudita, respectivamente, são acompanhados de perto pelo narrador – um lampião de lata, a cabeça decepada de um poste de luz que é a alegoria do Quixote escorrido de sua lucidez. Ecoando a importância do narrador na obra de Cervantes, é esse lampião de lata encarnado por Brisolla que conta a história, através de um poema constituído de quase 800 versos arquitetados em formas típicas da literatura cordelista: sextilhas, mote de sete, mote de dez, galope à beira-mar, martelo agalopado e pé-quebrado.
“O texto do Thiago está muito legal, tem várias camadas. Às vezes, dentro de uma frase que parece leve, há diversas referências e simbolismos que são bacanas”, comenta Bachur sobre o trabalho do colega. O regente salienta que vários tons se costuram no espetáculo, sobrepondo momentos poéticos, sérios e cômicos, se alimentando da carga dramática e do humor tanto do livro de Cervantes quanto da tradição armorial, sem, contudo, tentar reproduzi-los. “A narrativa é inspirada em Dom Quixote e no movimento armorial, mas ela não é nenhuma das duas coisas. É uma criação.”
Do barroco ao forró
Sobre o conteúdo propriamente musical do espetáculo, Bachur conta que parte das peças foi selecionada do repertório armorial, parte veio da literatura musical sobre Dom Quixote e parte de obras que pudessem se relacionar com a história escrita por Brisolla. Isso faz com que Qui-xote transite de composições barrocas, como é o caso de Bourlesque de Quixotte, escrita por Georg Phillip Telemann, para Asa Branca, forrós e músicas de Antonio Nóbrega, passeando sem vergonhas entre o erudito e o popular. “Essa é uma fronteira que está absolutamente diluída dentro desse universo colorido”, comenta o regente. “Tanto no formato quanto no repertório não é possível definir exatamente o que é isso, o que nos interessa muito.”
Dentre a seleção, duas peças são apresentadas ao público pela primeira vez. Uma delas é Fragmento, de Carlos dos Santos, compositor, percussionista e ex-músico da Ocam, que a escreveu especialmente para a produção. A outra é Gigantes o molinos, terceiro movimento da obra Don Quijote: Concierto-Fantasía para Quinteto de Sopros, do espanhol Alberto Roque Santana.
Outro sincretismo central no espetáculo é a fusão de instrumentos convencionais de orquestra com aqueles vindos da música popular. É o caso da viola, da zabumba, do triângulo e do acordeom, conforme explica Bachur. Em momentos nos quais o cravo ou o órgão seriam as escolhas tradicionais para o acompanhamento de um trecho, por exemplo, é a viola que assume o posto, ou a sanfona. “Isso é um eco armorial, porque eles faziam isso”, pontua Brisolla. “O cravo entrava para acompanhar a rabeca, a viola para acompanhar o violino.”
Por outro lado, destaca Bachur, houve também a preocupação em fazer os instrumentos clássicos da orquestra soarem dentro do estilo da música popular, um traço pouco comentado das experiências do próprio repertório armorial. “Como tocar o violino de forma mais rabecada? Como fazer o instrumento soar dentro da linguagem?”
Diferentemente de um concerto tradicional, para Qui-xote os músicos da Ocam experimentaram uma rotina e uma organização que dividiram a orquestra em várias etapas de gravação e levaram as atenções para o processo de registro audiovisual do trabalho, que somaram dois dias. De acordo com Bachur, todos os músicos da Ocam participam do espetáculo, mas atuando em formações com no máximo 16 membros, número delimitado tanto pelo tamanho do estúdio de gravação quanto pelos protocolos de segurança da pandemia.
Agora, adianta Bachur, há expectativas para levar o projeto aos palcos, em uma adaptação que aprofunde a relação de Qui-xote com o teatro. “Estamos muito felizes com o resultado”, diz o regente. “Espero que as pessoas gostem e que a gente consiga transmitir um pouco da nossa viagem para vocês”, finaliza.
Orquestra lança filme sobre consciência ambientalTambém a partir do dia 3 de dezembro, a Ocam disponibiliza em seu canal no YouTube o filme Sementes. Com imagens feitas na Floresta Nacional do Tapajós e na Ilha do Combu, no Pará, a obra traz gravações da Ocam de compositores como Rodrigo Lima, Ronaldo Miranda, Villa-Lobos e Lea Freire.Com a mensagem de preservação da natureza e defesa do reflorestamento, Sementes foi dirigido por Vinícius Colé, com roteiro de Flávio Vieira e Joaquim Carvalho e imagens aéreas de João Romano. A proposta para realização do vídeo partiu de Gil Jardim, diretor da Ocam, que também é o responsável pela edição da trilha sonora da obra. |
Fonte: Jornal USP