Opióides em alta: grupo analisa extensão dos efeitos do uso de drogas na América do Sul

Ciências saúde

Maioria dos transtornos está associada a opióides, como a heroína e analgésicos. Já as ocorrências relacionadas à cocaína estão em queda, porém são mais elevadas que a média mundial. Estudo visa a orientar políticas de saúde

Domingo, 05/03/23

Texto: Júlio Bernardes
Arte: Carolina Borin Garcia

Estudo realizado por um grupo de 19 pesquisadores da América do Sul analisa a extensão dos transtornos causados por uso de anfetaminas, cocaína, maconha e opioides na região, verificando desdobramentos como dependência, incapacidade e morte. O trabalho mostra que a maioria dos transtornos está associada aos opioides, como a heroína e alguns analgésicos. Já as ocorrências relacionadas à cocaína estão em queda, mas ainda são mais elevadas que a média mundial. A pesquisa contou com a participação do Departamento de Psiquiatria e de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e pode servir como fonte de informação para orientar políticas de saúde pública. As conclusões do trabalho são detalhadas em artigo publicado na edição de fevereiro da revista científica The Lancet Psychiatry.

A pesquisa foi baseada nas informações do Global Burden of Disease Study (GBD), liderado pelo Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), um estudo epidemiológico observacional mundial, que estimou a incidência, prevalência, mortalidade, anos de vida perdidos (YLL), anos de vida vividos com incapacidade (YLD) e anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs) devido a transtornos por uso de substâncias em cada um dos 12 países sul-americanos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), para o ano de 2019.

“Os cálculos empregaram várias fontes de dados relevantes para cada doença, incluindo revisões sistemáticas de estudos, sites governamentais e de organizações internacionais, relatórios, fontes de dados primários, como o Programa de Pesquisas Demográficas e de Saúde e contribuições de colaboradores”, descreve ao Jornal da USP o psiquiatra João Maurício Castaldelli Maia, professor da FMUSP, primeiro autor do artigo. “Os dados foram modelados usando ferramentas padronizadas para gerar estimativas por sexo, local e ano. A análise incluiu comparações por sexo e país e em relação a estimativas regionais e globais.”

Em comparação com estimativas globais, os países da região ainda mostraram um maior índice de transtorno por uso de cocaína, níveis semelhantes por anfetaminas e maconha e mais baixos por opioide (OUD).

João Maurício Castaldelli-Maia – Foto: Arquivo Pessoal

Embora no caso do opioide a incidência na América do Sul seja inferior à média registrada globalmente, ela aumentou lentamente durante as últimas três décadas e tornou-se a maior na região.

“Ainda que os analgésicos feitos de opioides estejam incluídos nessa categoria, não há dados específicos sobre os transtornos por eles causados”, aponta Castaldelli Maia. “O transtorno devido à cocaína cresceu mais rapidamente até 2010, quando se estabilizou, antes de diminuir no período de 2016 a 2019, mesmo assim representa o segundo maior na América do Sul. Por outro lado, o patamar de transtorno por uso de anfetaminas e maconha permaneceu estável durante as últimas três décadas, exceto em alguns países.”

“Apesar de uma diminuição na incapacidade atribuída ao transtorno por uso de cocaína de 2016 a 2019, o nível na região continua muito maior do que a média global, tanto na América do Norte quanto na América do Sul, que é o principal fornecedor global de cocaína, e a sua alta prevalência pode estar ligada à proximidade da produção e ao baixo preço da droga, principalmente na forma de crack e pasta de base”, afirma o psiquiatra. “Desde o início do GBD, as estimativas de carga de opioides para a América do Sul têm sido menores do que as do resto do mundo. Tradicionalmente, o uso de heroína tem sido baixo, por ser cara e inalada ou fumada em vez de injetada.”

Transtornos e mortalidade

Os países da América do Sul apresentaram maiores índices de anos de vida vividos com incapacidade e menores níveis de anos de vida perdidos em comparação com as taxas globais relacionadas ao transtorno do uso de anfetamínicos.  “Provavelmente, isso se deve ao fato desses transtornos serem relacionados ao uso não médico de anfetamínicos de prescrição mais comum em comparação aos metanfetamínicos, que estão mais relacionados a overdoses e morte”, comenta Castaldelli Maia. “Peru e Paraguai apresentaram taxas maiores que os outros países da região.”

De acordo com o psiquiatra, o nível de transtorno por uso de cocaína caiu em alguns países da América do Sul, mas os esforços de prevenção e tratamento na região devem ser mantidos. “No caso dos analgésicos opioides, a sugestão é que a educação médica para gerenciamento eficaz e serviços de vigilância em saúde para monitorar prescrições em farmácias são necessários para evitar o uso indevido”, afirma.  “Os números dos transtornos por uso de anfetaminas não mudou, portanto, são necessários programas de gerenciamento, especialmente para prevenir o uso não médico de drogas estimulantes entre os jovens.”

Pesquisa não encontrou aumento no transtorno por uso de cannabis devido a liberalização no Uruguai; país, que legalizou tanto o uso recreativo quanto o medicinal, apresentou uma prevalência de uso alta, mas estável, e um nível elevado, porém também estável, de transtorno durante as últimas três décadas – Foto: Prexels

“Nossas descobertas podem ser consideradas em relação aos programas de acesso ao tratamento, descriminalização e redução do estigma, que é muito grande em toda a América Latina, sendo uma barreira importante para a obtenção de tratamento”, diz Castaldelli Maia. “Não encontramos um aumento no transtorno por uso de cannabis devido à liberalização no Uruguai, o país com as maiores taxas de descriminalização na região. Nosso estudo não encerra a questão dos desfechos de saúde relacionados à legalização, mas mostra que o modelo uruguaio vem apresentando resultados interessantes. O país, que legalizou tanto o uso recreativo quanto o medicinal, apresentou uma prevalência de uso alta, mas estável, e um nível elevado, porém também estável, de transtorno durante as últimas três décadas.”

A Colômbia, que teve uma das taxas mais baixas de descriminalização do uso de maconha para fins não medicinais na região, teve um aumento considerável dos transtornos, segundo o psiquiatra. “Embora o Brasil tenha o maior índice no continente de transtornos causados pelos opioides, também possui a maior extensão de aprovação e disponibilidade de programas de tratamento usando metadona e naloxona na região”, explica. “Eles incorporam o uso dessas duas medicações, que são muito importantes para o manejo da dependência, no caso da naloxona, e da abstinência, foco da metadona.”

Mais informações: e-mail jmcmaia@usp.br, com João Maurício Castaldelli Maia

Fonte: Jornal USP

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