Mercados financeiros ameaçam romper lua de mel com Haddad e “exigem” corte de despesas públicas. Mas omitem a principal: os juros, com os quais se refestelam. Veja, em números e gráficos, a hipocrisia – e como o governo (ainda) a reforça
por Antonio Martins – Quinta, 18 de abril de 2024
Cria cuervos, y te sacarán los ojos, adverte um famoso ditado espanhol. Os “mercados financeiros” (leia-se, os rentistas, que ganham muito sem nada produzir) ensaiaram a partir desta segunda-feira (15/4) uma primeira investida contra o governo Lula 3. O dólar subiu 3,1% em dois dias e atingiu, na terça, o patamar mais alto (R$ 5,28) em um ano. A bolsa de São Paulo acumulou queda de 4,2% em cinco dias. O estopim foi uma entrevista coletiva em que o ministro Fernando Haddad anunciou, na mesma segunda, uma alteração mínima nas metas do arrocho (“ajuste”) fiscal que estabeleceu para os próximos anos.
Não houve complacência nos comentários. “Governo abala confiança fiscal”. “É tiro no pé e mostra que governo jogou a toalha”. “Economia oscila entre o medíocre e o arriscado”. “O rombo [no Orçamento] pode chegar a R$ 31 bilhões”. disseram os jornais e TVs. A mensagem política foi ainda mais explícita. Os riscos de a dívida pública disparar estariam reacesos. E a tentativa de “equilíbrio das contas públicas” por meio de aumento de receitas teria se esgotado.
O governo Lula, cuja popularidade já caiu ao patamar do sofrível, por não ter sido capaz de melhor de forma nítida as condições de vida das maiorias, deveria agora submeter-se por completo e cortar na carne – ou seja, reduzir as despesas com Saúde, Educação e outras políticas públicas. Esta interpretação é um truque de mágica barata, ainda que feito em salão luxuoso. Ela projeta os holofotes sobre um fato corriqueiro, para escandalizá-lo – enquanto mergulha em sombras outro, essencial. A persistência desta trapaça é a causa central de quatro décadas de disparada das desigualdades e de declínio do Brasil.
As finanças públicas e seus números são apresentados ao público de maneira tão cifradam pelos mercados e maioria dos governos, que vale a pena submetê-los a um raio decifrador. Eis, traduzido em português, o que o ministro Haddad comunicou na entrevista de segunda-feira, e o que se deduz deste anúncio:
1. O “novo arcabouço fiscal” adotado em 2023 e aplaudido pelos “mercados” continua intacto. Num país muito empobrecido, o Estado permanecerá incapaz de reduzir as desigualdades por meio de um choque de serviços públicos de excelência e projetos de infraestrutura. O gasto estatal seguirá submetido a três trancas. Crecerá sempre menos que a arrecadação de impostos e, no máximo, 2,5% ao ano (contra 6%, em média, em Lula 2)
2. A mudança mínima, que atraiu os holofotes e desatou a gritaria, refere-se ao adiamento de uma espécie de bônus – em favor dos “mercados” e contra os serviços públicos, é claro. Além das trancas do arcabouço, o governo federal havia estabelecido como “meta” que em 2025 a União separaria parte da receita de impostos para destiná-la à amortização da dívida pública. Na linguagem hermética das finanças, haveria um “superávit primário” equivalente a 0,5% do PIB, ou cerca de R$ 62 bilhões. Agora, a meta para 2025 é zero e este bônus está adiado para 2027.
3. De onde vem, então, o “rombo” de R$ 31 bi? O “arcabouço” estabelece punições, caso a “meta fiscal” de um determinado ano não seja atingida. No exercício seguinte, os gastos com serviços públicos são comprimidos ainda mais severamente. Mas há uma tolerância, para acomodar pecados menores: 0,25% do PIB, para cima ou para baixo. É a mera hipótese de este suposto deslize se concretizar, em seu grau máximo, que leva o Valor a prever o possível “estouro” do orçamento.
4. A tabela a seguir, apresentada na coletiva de segunda-feira pelo governo, é um resumo destas contas. Vale a pena examiná-la, para afastar as mistificações. E é mais fácil do que às vezes parece. — basta fazer somas e subtrações. As receitas da União, resumidas, estão nas linhas 1 a 3. As despesas primárias (atenção: o conceito exclui os juros), na linha 4. Os resultados primários previstos, na linha 7. E a meta oficial, na linha 8.
5. Todo o a argumento do governo em favor do arrocho (“ajuste”) fiscal apoia-se na suposta necessidade de reduzir a dívida pública. Trata-se de um argumento precário, baseado em teorias monetárias obsoletas. Não é possível debater exaustivamente o tema aqui. Para saber mais a respeito, leia por exemplo este texto, ou assista à notável entrevista do economista André Lara Resende neste vídeo (versão integral | destaques). Mas o central, para nossa análise é: apesar de todas as trancas impostas ao gasto público, e dos bônus suplementares, a dívida pública não cai! — mesmo nas previsões do governo. Ao contrário: ela sobe, durante todo Lula 3. Diminuiu muito lentamente a seguir, mas trata-se de mero pensamento positivo. Qualquer oscilação nas taxas de juro (como as que o Banco Central já passou a cogitar esta semana) pode inverter a tendência. As orelhas do coelho enroscam-se na cartola do mágico, como mostra o gráfico a seguir.
6. Motivo? Na tabela que você viu acima, e que foi apresentada na entrevista coletiva de segunda-feira, falta uma linha. Ela refere-se a uma classe especial de despesa do Estado brasileiro: os juros da dívida pública, há quatro décadas (exceto em brevíssimos intervalos) os maiores do mundo. São estas as despesas que beneficiam os rentistas, ampliam de forma obscena a desigualdade, engordam a opulência do 0,1% mais rico e… puxam a dívida para cima, em meio ao arrocho (“ajuste”?) dos gastos que deveriam socorrer os 99%…
7. Na tabela a seguir, a linha omitida na entrevista de segunda-feira está reinserida. Os dados são oficiais. Vêm de outro documento do ministério da Fazenda: o Relatório de Projeções Fiscais de março de 2024. Vamos colocá-los numa linha 9. Veja como fica, sem omissão, a tabela das receitas e despesas do Estado.
8. E compare, agora, os R$ 31 bilhões do “rombo” suposto para 2025 pelo “mercado” (lembre-se: são os rentistas, que enriquecem sem nada produzir) com o rombo real, de R$ 749,6 bi representado pelo pagamento de juros ao 0,1% mais rico. Não há dúvida: os mercados financeiros dão escândalo por um possível déficit vinte e quatro vezes menor do que aquilo que, com toda certeza, capturarão da sociedade em 2025… — assim como fazem, ano após ano, há pelo menos quatro décadas.
O “déficit público” imaginário e o que existe de fato
(Previsões do ministério da Fazenda para 2025 – em bilhões de reais)
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Como o Estado brasileiro transfere ao 0,1% mais rico, a cada ano, um volume de recursos que equivale a dois orçamentos da Saúde e um e meio da Educação? Por que este fato não emerge no debate público? De que forma os rentistas controlam as narrativas, a ponto de criminalizar – e tentar reprimir ainda mais — os gastos que poderiam tornar o país um pouco menos desigual e mais suportável? E, em especial: qual a relação entre todos estes fatos, a ausência de um horizonte político de esquerda e a emergência, neste vácuo, de um justo ressentimento, que se volta contra a democracia?
Um dos livros mais importantes do ano passado é A Ordem do Capital, de Clara Mattei. Na obra, a jovem autora italiana aponta como as políticas de “austeridade”, adotadas no Ocidente nos anos 1920 e 30, frustraram as maiorias e abriram caminho para a ultradireita. A História repete-se às vezes, como farsa. Há muito o que fazer, para salvar o governo Lula e evitar o pesadelo neofascista. Mas cada vez parece mais claro que tudo começa por reverter o longo flerte com os “mercados” (os rentistas!) e iniciar, enfim, um governo de reconstrução nacional em novas bases.
Fonte: Outras palavras / Foto: Outras Plavras