Os 1400 anos do exílio que marca o início do islã

Mundo

Religiões precisam de mitos fundadores. No caso do islã, este marco é a chamada hégira — a migração do profeta Maomé (571-632) e seus seguidores da cidade de Meca para Medina, ambas na atual Arábia Saudita. O trajeto, de cerca de 500 quilômetros, foi vencido em 12 dias.

Maomé, ou Muhammad, já era um líder religioso respeitado. Considerado mensageiro de Deus — chamado de Alá pelos muçulmanos —, promovia reformas tanto no judaísmo quanto no cristianismo, além de combater religiões pagãs politeístas.

Isso fez com que ele passasse e a ser alvo de hostilidades em Meca, sua cidade natal. Imbuído de seus princípios e convidado por lideranças de Medina, decidiu promover esse movimento de exílio. Ele já tinha mais de 50 anos. Pela contagem do calendário gregoriano, a hégira ocorreu há exatos 1,4 mil anos.

“Em Meca, os muçulmanos vinham sendo perseguidos. Havia muita violência, havia muita disputa, muitas agressões. Um grupo de convertidos ao islã [de Medina] foi até o profeta Muhammad para dizer que poderia fazer [seu projeto] lá, que lá seria importante porque havia uma disputa entre judeus e pessoas que eram idólatras”, explica a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, professora na Universidade de São Paulo (USP-Ribeirão Preto) e autora do livro Hajja, hajja: a experiência de peregrinar.

“E isso [a chegada de Maomé] foi importante também para pacificar essas divergências que lá existiam.”

“Em linhas gerais, a hégira foi a imigração dos primeiros muçulmanos, historicamente, para a cidade de Medina e também para a Abissínia, mais precisamente onde ficam a Eritreia e a Etiópia”, esclarece o cientista da religião Atilla Kus, pesquisador e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e autor do livro A Constituição de Medina.

Não há um consenso sobre a data exata desse acontecimento histórico. Por várias razões. A começar pelo fato de que a contagem do tempo naquela época era diferente de hoje. Em seguida, porque para os muçulmanos, que consideram a hégira justamente o marco zero, o calendário é lunar, diferentemente do gregoriano utilizado em boa parte do mundo contemporâneo.

O próprio calendário gregoriano, aliás, foi implementado há bem menos tempo — 440 anos —, e antes disso eram tantos ajustes realizados de tempos em tempos para corrigir distorções na contagem do tempo que se torna muito difícil fazer uma atualização precisa.

“Além disso, esses acontecimentos por muito tempo foram transmitidos oralmente, então há quem diga que foi em tal data, há quem diga que foi em outra”, explica Kus. Há quem defenda que a hégira tenha começado em 21 de junho de 622. Mas também há quem crave 15 ou 16 de julho ou, ainda, datas no mês de setembro.

Califa Omar, o sucessor de Maomé que teria estabelecido o calendário tendo a hégira como marco zero. Imagem de autor desconhecido, em Domínio Público
Legenda da foto,Califa Omar, o sucessor de Maomé que teria estabelecido o calendário tendo a hégira como marco zero

Na contagem muçulmana, cujo calendário é mais curto do que o gregoriano — que tem base solar —, o acontecimento fundamental da hégira ocorreu há 1444 anos.

Nesse calendário, o atual ano começou em 10 de agosto de 2021 e vai até 28 de julho de 2022.

Significado

A palavra hégira significa literalmente separação.

“É afastamento, se afastar de algumas pessoas, de algo, de algum lugar. Nos textos clássicos do islã, como no Alcorão e nos ditos do profeta Muhammad, a hégira é utilizada como um distanciamento daquilo que é mal”, explica Kus.

“E nesse mal se considera uma sociedade que tem maldade e injustiça nela.”

“A hégira não é só uma imigração física do corpo para outro lugar, mas também uma questão que envolve a espiritualidade”, afirma.

“O verdadeiro imigrante, para o islã, é aquele que se afasta daquilo que Deus proibiu, daquilo que é pecado.”

Nesse sentido, quando a hégira ocorreu, Kus contextualiza que era o afastamento “de uma sociedade injusta, desigual e perseguidora contra as opiniões diferentes”.

É interessante que a questão da imigração apareça como fundamental em muitas religiões. Moisés teria libertado o seu povo do Egito e o conduzido até a terra prometida.

Jesus Cristo nasceu em Belém porque José teria a necessidade de se alistar lá, em um censo que estaria ocorrendo.

E o próprio Jesus, na vida adulta, se tornaria um pregador peregrino.

O mesmo vale para Sidarta Gautama, o pai do budismo, que aos 29 anos acabaria saindo do palácio onde vivia para assumir uma vida errante.

“Acho muito revelador que existam tais semelhanças entre as religiões. São saídas de lugares de opressão para lugares onde as pessoas podem viver sua religiosidade e espiritualidade da melhor forma possível”, analisa a antropóloga Francirosy Barbosa.

“É como se Deus mandasse um sinal para aquele povo sofrido de que há, sim, uma possibilidade de uma certa redenção, um lugar de acolhimento onde as pessoas podem exercer, praticar sua religiosidade. Todas essas experiências religiosas, textos sagrados, marcam isso. Tanto que um dos pilares da fé islâmica é acreditar nos livros sagrados anteriores ao Alcorão, como a Torá, os Salmos de Davi, o Antigo Testamento… Porque esses textos também trazem referências a histórias que são importantes de serem contadas.”

O pesquisador Kus salienta que esse movimento migratório de Maomé representa “o marco inicial da cultura e da civilização islâmica, o marco inicial da sociedade islâmica”.

“Quando você trata da questão de diferenciação das identidades, a hégira serve de base para a diferenciação entre monoteísmo e os politeísmos, além de também dentro do próprio monoteísmo, ou dos monoteísmos, diferenciando o islã do judaísmo e do cristianismo”, argumenta Kus.

Em Medina, na época chamada de Iatrebe, os primeiros muçulmanos estabeleceram, segundo o cientista da religião, uma “demarcação identitária” que acabaria formando o “início da civilização islâmica”.

“No texto do Alcorão, começa a ideia dos ensinamentos sociais, o Alcorão começa a ter o tom de normatividade social, ensinamentos de como o muçulmano deve se comportar dentro da família, com os outros, como deve ser a atitude de um comerciante, de um agricultor, de um vendedor, como deve ser e quais são os princípios de um governo de acordo com os princípios islâmicos”, explica.

Medina

Para estudiosos, Medina passou a ser, nessa época, uma cidade-modelo para o islã.

“Há a idealização da cidade virtuosa, aquela onde não existira injustiça”, afirma Kus.

Barbosa explica que, naquele momento, o Alcorão estava em processo de escrita. Ela observa que as suratas — nome que se dá aos capítulos do livro sagrado — “reveladas” em Medina são diferentes das de Meca.

“Normalmente, as suratas reveladas em Meca tinham expressões como ‘ó, povo’, ‘ó, humanos’. Em Medina, o tratamento é ‘ó, fiéis’, porque ali Deus já estava falando com os fiéis. Em Medina, as pessoas já são muçulmanas”, ressalta ela.

Em Medina, Maomé estabelece uma constituição com os princípios do islã em forma de governo. “Por isso a hégira é a passagem para uma sociedade totalmente islâmica”, resume a antropóloga.

Imagem persa do século 15 que retrata Maomé. Autor desconhecido, Domínio Público
Legenda da foto,A migração do profeta Maomé e seus seguidores da cidade de Meca para Medina marca o início do islã

Ali são estabelecidas regras como o jejum anual, as orações, a contribuição anual que deve ser feita com base nos ganhos de cada muçulmano.

“As regras entram em prática. Ganham um formato, uma fórmula. Algumas dessas coisas já eram feitas em Meca, mas não exatamente como fazem hoje, dentro de uma estrutura religiosa. Em Medina a prática religiosa foi estabelecida”, pontua Barbosa.

Estudioso do assunto, Kus acredita que na sociedade original de Medina estavam visíveis princípios democráticos como pouco se via naquele tempo.

“A meu ver, a hégira também simboliza isso: a relação do islã com a democracia”, comenta.

“Há uma relação muito forte. A constituição de Medina foi um documento assinado por cristãos, judeus, muçulmanos e árabes politeístas daquela época.”

O texto foi formulado entre os anos de 622 e 624 e, conforme pesquisa de Kus, contava com uma “abertura para a liberdade de expressão muito forte”, o que permitiu, “depois de muitos séculos”, que houvesse “pela primeira vez uma união política entre árabes de diferentes segmentos em uma sociedade propriamente árabe daquela época”.

“Nesse sentido, podemos ver a hégira como uma confirmação, uma afirmação política e democrática de respeito à busca da liberdade sem abrir mão da liberdade dos outros. Algo como assegurar a liberdade para que a sua liberdade também seja assegurada”, afirma ele.

O entendimento da hégira como o marco zero do calendário muçulmano foi obra do segundo califa, ou seja, o segundo sucessor de Maomé.

Omar Ibne Alcatabe (586-644) liderou os muçulmanos de 634 a 644 e instituiu o calendário sete anos após a morte do profeta fundador.

“Na antiga sociedade árabe, não havia marco fixo de calendário, as datas sempre divergiam porque eram algo como ‘isso aconteceu tantos anos após tal acontecimento’. Para evitar confusões, o califa sistematizou o calendário a partir da hégira”, diz Kus.

Fonte: BBC Brasil

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *