Os 300 anos de uma obra que revela todos os segredos do teclado

cultura

Composto em 1722, “O Cravo Bem Temperado”, de Bach, legou para a posteridade novas técnicas instrumentais e ampla liberdade musical

Dois entendimentos seriam necessários para começar um texto sobre O Cravo Bem Temperado, de Johann Sebastian Bach, obra que em 2022 completa 300 anos. O primeiro é mais simples: trata-se de um conjunto de composições para um certo instrumento musical, no caso, o cravo. Há controvérsias sobre ser uma obra dedicada exclusivamente ao cravo. Algumas peças exigem durações mais longas de cada nota, requisitando instrumentos como o órgão. Possivelmente, o entendimento mais razoável seria o de “teclado bem temperado”, sem especificar necessariamente o cravo.

O segundo ponto trata do significado de “temperado” no campo da música. Dito de modo sintético, temperar um instrumento é ajustar sua afinação. E, aqui, trata-se de possibilitar e calibrar pequenos espaços entre as notas. Isso criou um leque maior de notas que podem ser tocadas num instrumento e sobre as quais o compositor poderia basear o desenvolvimento da música. Foi o que permitiu a Johann Sebastian Bach criar uma obra utilizando as 12 escalas maiores e as 12 menores.

O desenvolvimento desse sistema de afinação utilizado por Bach deve-se a um antecessor seu: Andreas Werckmeister, que publicou seu estudo tratando do tema em 1691, como sublinha Sérgio de Carvalho Oliveira em seu doutorado, defendido em 2015 na USP, sobre O Cravo Bem Temperado.

Aliás, Sérgio de Carvalho – como é mais conhecido -, cravista, pianista e organista do Coral da USP (Coralusp), organizador de séries de eventos sobre Bach nos mais variados espaços, começou sua trajetória bachiana ouvindo o Concerto para Cravo em Ré Menor (BWV 1052). A fita K7, emprestada por uma amiga, rodava do lado A ao lado B e depois começava de novo. O menino de 10 anos, deitado no chão, com uma caixa em cada ouvido, escutando aquele som que o magnetizava, ia mergulhando num mundo fantástico, do qual fala com entusiasmo contagiante até hoje.

Sobre O Cravo Bem Temperado, Carvalho ressalta a importância fundamental que tem na história da música. Bach sacramentou o sistema temperado e demonstrou para as gerações seguintes a amplitude técnica que os instrumentos de teclado permitem.

Compor para ensinar

A história de como O Cravo Bem Temperado foi idealizado revela bem o caráter pedagógico de uma obra que marcaria o futuro da música. Bach já vinha compondo peças didáticas. Em 1720, por exemplo, ele preparou para seu filho o Pequeno Livro de Teclado para Wilhelm Friedmann Bach, no qual havia onze versões mais curtas de prelúdios que viriam a integrar O Cravo Bem Temperado dois anos depois.

O castelo de Köthen, no leste do atual território da Alemanha, onde Bach atuava como músico na época de composição de O Cravo Bem Temperado – Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Falando em prelúdio, está aí outro esclarecimento necessário. A obra, dividida em dois volumes ou livros, tem tanto no Livro 1, de 1722, quanto no Livro 2, publicado em 1744, 24 pares de prelúdios e fugas. O prelúdio é uma peça introdutória. Já a fuga é uma peça de caráter contrapontístico. O que isso quer dizer? Pense numa pessoa que vá recitando versos e, simultaneamente, outras vozes vão se entrelaçando à voz principal, com outros versos que produzem variações do primeiro. Na música, isso pode ser chamado de tema e contratemas. Está aí o contraponto.

O pesquisador Karl Geiringer, no livro Bach – O Apogeu de Uma Era, chama a atenção para a diversidade presente nas peças de O Cravo Bem Temperado. “Não há dois prelúdios ou duas fugas que se assemelhem mutuamente em sua atmosfera; cada um desses números representa uma disposição de espírito muito particular, e uma variedade análoga pode ser observada na construção formal e nos recursos técnicos usados nas várias peças.”

No caso das fugas, há algumas com duas vozes, três vozes e até mesmo cinco vozes simultâneas. Geiringer define com graça as atmosferas de cada uma das fugas: jocosa (a nº 3), firme (nº 1), popular (nº 2), vigorosa (nº 12), jovial (nº 15), despreocupada (nº 21) e assim por diante.

Criando o futuro da música

Apesar da sua importância fundamental, as fugas de O Cravo Bem Temperado preparam o terreno para algo ainda mais grandioso, a obra  A Arte da Fuga, com sua primeira versão datada de 1742. Para Sérgio de Carvalho, as peças de O Cravo Bem Temperado não foram compostas para esgotar o assunto “fuga”, mas sim para esgotar o assunto “técnicas de teclado”. “O Cravo Bem Temperado serviu de trilha para chegar à A Arte da Fuga”, afirma Carvalho, que considera esta última a obra mais complexa já feita.

Nascido em 1685, com criações produzidas, sobretudo, na primeira metade do século 18, Bach influenciou a música de modo definitivo. Mozart, Beethoven e Mendelssohn foram só alguns dos grandes nomes que estudaram Bach com admiração e minúcia. Como lembra a pianista e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Zuleika Rosa Guedes, em seu livro Considerações sobre O Cravo Bem Temperado, Bach é também muito admirado pelos jovens, sendo bastante divulgado por meio do jazz, que encontrou no compositor uma série de afinidades e fontes de inspiração. Ela completa: “O velho Bach, olhado bem de perto, é um modelo de liberalidade e de atitude antiesquemática”.

Em relação a O Cravo Bem Temperado, especificamente, ela frisa a importância de se enxergar seu valor artístico e humano. Para Guedes, trata-se de uma obra que transcende toda a teoria.

Sérgio de Carvalho acrescenta: “Bach é um caso à parte na história da música. Ele escreveu uma obra tão perfeita, em tudo o que ele fez, que fica até difícil achar que ele era humano”.

Ouça no link abaixo o Prelúdio e Fuga Número 3 em Dó Sustenido Maior (BWV 848), do livro 1 de O Cravo Bem Temperado (interpretação de Gustav Leonhardt).

Fonte : Jornal USP

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