Os impressionantes paralelos entre a eleição nos EUA de 1968 e a disputa de 2024

cultura
  • Alessandra Corrêa
  • De Washington para a BBC News Brasil

A Convenção Nacional do Partido Democrata ocorre em agosto, em Chicago, mas o presidente surpreendeu a nação ao anunciar que não vai buscar a reeleição. A corrida eleitoral é marcada por violência, com um atentado contra um dos candidatos, em um país dividido e em meio a protestos contra a guerra.

A descrição acima poderia se referir ao momento atual nos Estados Unidos, mas é um resumo de alguns dos eventos de 1968, ano que ainda hoje é considerado um dos mais dramáticos e cruciais da história do país.

Nas últimas semanas, a sequência de reviravoltas na disputa pela Casa Branca tem reforçado as comparações entre os dois ciclos eleitorais.

O episódio mais recente a evocar memórias de 1968 foi a decisão do presidente Joe Biden de desistir de concorrer a um novo mandato, anunciada no domingo (21/7), em uma carta publicada nas redes sociais.

O último presidente a abandonar a disputa pela reeleição em pleno ano eleitoral havia sido o também democrata Lyndon Johnson (1963-1969).

Na noite de 31 de março de 1968, ao final de um pronunciamento à nação transmitido em cadeia nacional de TV, Johnson chocou o país ao declarar que não iria “buscar nem aceitar” a nomeação de seu partido para um novo mandato como presidente.

Apesar das semelhanças, historiadores observam que as circunstâncias envolvendo as duas decisões são diferentes.

“Johnson vinha refletindo sobre a possibilidade (de abandonar a disputa) havia algum tempo, enquanto Biden parece ter sido levado de forma muito relutante a essa decisão”, diz à BBC News Brasil o historiador Marc Selverstone, diretor de estudos presidenciais do Miller Center, na Universidade da Virgínia.

Selverstone, que é especialista na Presidência de Lyndon Johnson e na Guerra do Vietnã (1955-1975), lembra que já em 1964 aquele presidente tinha dúvidas sobre se deveria concorrer às eleições.

Biden tomou sua decisão somente após semanas de pressão de doadores, aliados e nomes importantes de seu partido, em meio a preocupações com sua idade e saúde, intensificadas após o fraco desempenho em um debate com o candidato republicano, Donald Trump.

No debate, no final de junho, o presidente de 81 anos muitas vezes parecia confuso ou hesitante, e vários democratas passaram a questionar publicamente sua capacidade de vencer Trump na eleição ou comandar o país por mais quatro anos.

Presidente impopular

manifestantes com cartazes em frente à Casa Branca
Library of Congress, Johnson enfrentava o descontentamento de muitos americanos com a Guerra do Vietnã. Na foto, manifestantes em frente à Casa Branca em janeiro de 1968

Apesar de Biden ter vencido as primárias com folga, sem um adversário que representasse risco a sua nomeação, pesquisas ao longo do ano indicavam que muitos democratas gostariam que ele não fosse o candidato do partido na eleição geral.

Uma pesquisa da empresa de opinião Gallup pouco antes da desistência mostrava Biden com índice de aprovação de apenas 36%.

No início 1968, Johnson também tinha índice de aprovação de 36% e enfrentava o crescente descontentamento de muitos americanos com a Guerra do Vietnã e com sua liderança.

No final de janeiro daquele ano, as forças americanas e seus aliados sul-vietnamitas haviam sofrido ataques surpresa de combatentes norte-vietnamitas e vietcongues no que ficou conhecido como a Ofensiva do Tet, em referência ao feriado que marca o Ano-Novo lunar vietnamita.

As imagens do ataque provocaram uma mudança mais profunda na opinião pública sobre a guerra, em um momento em que dezenas de soldados americanos estavam morrendo a cada dia no Sudeste Asiático.

Em aparições públicas, Johnson muitas vezes era recebido com manifestantes gritando “Ei, ei, LBJ (em referência às suas iniciais), quantos garotos você matou hoje?”.

O anúncio de Johnson também ocorreu pouco após sua vitória apertada nas primárias de New Hampshire, em 12 de março, onde seu desempenho foi mais fraco do que o esperado.

O presidente teve apenas sete pontos percentuais de vantagem sobre o senador Eugene McCarthy, que fazia campanha pela nomeação do partido com uma plataforma anti-guerra e conquistou 42% dos votos.

Robert F. Kennedy discursando com megafone, rodeado por multidão
Library of Congress, O senador democrata Robert F. Kennedy foi assassinado em meio a uma campanha que ganhava força, logo após vencer as primárias da Califórnia

Quatro dias depois da primária, outro adversário de peso, o senador Robert F. Kennedy, irmão do presidente John Kennedy, que havia sido assassinado em 1963, entrou na disputa pela nomeação democrata para concorrer à Presidência.

Além da crescente impopularidade e da concorrência de dois rivais importantes pela indicação do partido, Johnson, aos 59 anos de idade, também enfrentava problemas de saúde e havia sobrevivido a um ataque cardíaco anos antes.

“A constelação de forças era mais complexa na situação de Johnson em 1968 do que com Biden”, avalia Selverstone.

Apesar de considerar a possibilidade de desistir da reeleição havia tempo, Johnson tomou sua decisão final no último minuto. Ele havia preparado duas versões de seu pronunciamento, e apenas uma delas incluía o anúncio de que desistiria da disputa.

No entanto, enquanto Johnson abandonou a campanha no início do ano eleitoral, Biden tomou sua decisão já na metade do ano, após ter vencido a temporada de primárias e poucas semanas antes da convenção que vai oficializar o candidato democrata.

Logo após sua desistência, Biden endossou a vice-presidente, Kamala Harris, para substituí-lo como candidata democrata. Pouco depois, ela conquistou o apoio de importantes líderes do partido e um número significativo de delegados que participarão da escolha na convenção.

Johnson não endossou ninguém como possível substituto. Seu vice, Hubert Humphrey, acabou conquistando a nomeação democrata, mas diante de protestos de várias facções do partido.

Atentados e protestos

Antes mesmo da desistência de Biden, menções a 1968 já proliferavam em análises sobre a atual disputa eleitoral, especialmente após Donald Trump sofrer uma tentativa de assassinato em 13 de julho, durante comício na Pensilvânia.

O ex-presidente e candidato republicano foi atingido por um tiro na orelha disparado por um atirador de 20 anos de idade, que matou uma pessoa e deixou duas gravemente feridas antes de ser morto por um agente do Serviço Secreto.

A violência remete a duas mortes trágicas ocorridas em 1968. Em 4 de abril, Martin Luther King Jr., líder do movimento de luta por direitos civis, foi assassinado por um atirador em Memphis.

Dois meses depois, em meio a uma campanha com uma mensagem anti-guerra e que vinha ganhando força, o político democrata Robert F. Kennedy foi assassinado a tiros em um hotel em Los Angeles, poucas horas após vencer as primárias da Califórnia.

Kennedy era pré-candidato e ainda não havia ganhado a nomeação de seu partido, mas contava com crescente popularidade e vitórias importantes nas primárias.

Em contraste, Trump já havia consolidado o apoio republicano nas primárias e não tinha mais concorrentes no partido quando sofreu a tentativa de assassinato. Ele foi oficializado como candidato na Convenção Nacional Republicana, dois dias após o atentado.

Os assassinatos de Martin Luther King Jr. e Robert F. Kennedy aprofundaram o clima de turbulência nos Estados Unidos, com protestos, confrontos e violência explodindo nas ruas de dezenas de cidades.

Esse era um período de divisão na sociedade americana e de intenso ativismo político, especialmente entre os jovens. Manifestações por direitos civis e contra a Guerra do Vietnã se espalhavam pelo país.

“Havia o temor de que a sociedade estivesse se desintegrando, profundas divisões”, diz à BBC News Brasil o historiador Michael Kazin, professor da Universidade de Georgetown, em Washington, e autor do livro “What It Took to Win: A History of the Democratic Party” (“O que foi necessário para vencer: uma história do Partido Democrata”, em tradução livre).

Agora, diversas cidades americanas também são palco de manifestações contra uma guerra. Desta vez, o alvo dos protestos é a guerra de Israel em Gaza, iniciada após um ataque do Hamas em território israelense em 7 de outubro do ano passado.

Segundo o governo de Israel, o ataque deixou mais de 1,2 mil israelenses mortos, e cerca de 250 foram levados como reféns. A retaliação israelense já deixou mais de 39 mil palestinos mortos, e mais de 2 milhões foram obrigados a deixar suas casas, segundo as autoridades de Gaza.

A devastação em Gaza e o apoio do governo americano à ofensiva israelense geraram protestos em várias partes dos Estados Unidos, incluindo em algumas das principais universidades do país, muitas vezes com resposta da polícia e prisão de manifestantes.

Mas há muitas diferenças entre o contexto atual e a situação em 1968. “A mais óbvia é que havia mais de meio milhão de soldados americanos lutando no Vietnã, e não há um único soldado americano em Gaza”, ressalta Kazin.

Em 1968, mudanças no processo de recrutamento militar obrigavam cada vez mais jovens a servir nas Forças Armadas dos Estados Unidos. Calcula-se que, somente naquele ano, quase 17 mil americanos tenham morrido na Guerra do Vietnã.

Outra diferença importante é o fato de que, em 1968, a Guerra do Vietnã era o assunto dominante e provocava divisões importantes dentro do Partido Democrata, que ocupava a Casa Branca.

Neste ano, o partido, que novamente ocupa a Presidência, está unido, e a magnitude e peso dos protestos contra a guerra são bem menores. Os democratas chegarão à sua Convenção Nacional, realizada em Chicago no mês que vem, com a expectativa de união em torno de Kamala Harris.

“Há alguns democratas que provavelmente gostariam de ter outros candidatos, mas basicamente estão muito unidos e há muito entusiasmo em torno de Harris”, ressalta Kazin.

Há a possibilidade de protestos contra a guerra em Gaza e o apoio americano a Israel, mas a expectativa é a de que, caso ocorram, sejam em escala bem menor do que a das manifestações de 1968.

“O movimento nos Estados Unidos contra a guerra em Gaza recebe muita atenção, mas é impopular. Há pouca chance de que essa questão seja abordada de forma importante na Convenção Democrata no mês que vem”, salienta Kazin.

Convenção Democrata em Chicago

Manifestantes em frente a soldados

Library of Congress ,A foto mostra manifestantes contra a guerra e soldados da Guarda Nacional em frente ao Hotel Hilton, em Chicago, durante a Convenção Democrata de 1968

Em 1968, a violência explodiu durante a Convenção Nacional Democrata, que também foi realizada no final de agosto em Chicago.

Milhares chegaram à cidade para protestar contra a guerra e foram duramente reprimidos pela polícia e por soldados da Guarda Nacional, convocados pelo prefeito da cidade, o democrata Richard Daley.

Kazin, que na época era membro da organização nacional Students for a Democratic Society (Estudantes por uma Sociedade Democrática), um dos grupos de esquerda que participaram dos protestos, chegou a ser preso durante as manifestações.

Um dos principais confrontos ficou conhecido como a Batalha da Avenida Michigan e ocorreu em frente ao hotel Conrad Hilton, onde estavam hospedados os líderes democratas que participavam da convenção.

Centenas de manifestantes, policiais e civis ficaram feridos e cerca de 600 pessoas foram presas. As cenas de caos foram transmitidas pela TV.

“Em pesquisas, a maioria das pessoas apoiou a polícia que estava espancando os manifestantes”, lembra Kazin.

“O movimento anti-guerra era percebido como antiamericano, como uma forma de torcer pelo outro lado. E (mesmo) os americanos descontentes com a guerra não necessariamente queriam apoiar pessoas como eu, que eram (considerados) radicais”, observa.

Dentro do anfiteatro onde se realizava a convenção, o clima também era tenso, com desavenças e troca de insultos.

Na época, as primárias não tinham o mesmo peso de hoje na seleção do candidato do partido, e muitos dos delegados eram conquistados em negociações entre líderes e decididos na convenção.

O senador McCarthy, com sua plataforma anti-guerra, recebeu mais votos nas primárias, mas perdeu a nomeação para o vice-presidente, Hubert Humphrey, que conquistou o maior número de delegados durante a convenção.

A Guerra do Vietnã havia aprofundado as divisões no Partido Democrata, com discordância entre diferentes facções, e a escolha de Humphrey gerou descontentamento e protestos em várias alas e entre manifestantes anti-guerra.

Eleição geral em novembro

Assim como neste ano, a eleição presidencial de 1968 estava marcada para 5 de novembro. Em um sistema em que as eleições são dominadas por apenas dois partidos, o Democrata e o Republicano, a disputa daquele ano teve outro fator significativo: um terceiro candidato importante de um terceiro partido.

Além de Humphrey e de seu rival republicano, o ex-vice-presidente Richard Nixon, a disputa incluiu George Wallace, ex-governador do Estado do Alabama que concorreu pelo Partido Independente Americano e defendia a segregação entre negros e brancos.

Wallace acabou recebendo o voto de muitos democratas do Sul do país, e conquistou 13,5% do voto popular nacional e 46 delegados no Colégio Eleitoral.

Nixon, que havia sido derrotado oito anos antes por John F. Kennedy, venceu a eleição de 1968 com uma plataforma de lei e ordem, ajudado pela rejeição do público aos tumultos na Convenção Democrata em Chicago.

O republicano conquistou 43% do voto popular, pouco mais do que os 42% de Humphrey, mas teve grande vantagem no Colégio Eleitoral, com 301 votos, bem acima dos 191 do democrata.

O caos em 1968 levou a mudanças na maneira como o Partido Democrata escolhe seus candidatos à Presidência, com maior importância para os resultados das primárias.

A eleição deste ano também tem um terceiro candidato que chama a atenção: Robert F. Kennedy Jr., filho de Robert F. Kennedy, concorre como independente e, segundo as pesquisas mais recentes, tem cerca de 5% das intenções de voto.

Mais de meio século depois, muitas das questões e conflitos da década de 1960 ainda estão presentes na sociedade americana.

“A guerra era a (questão) mais importante no final dos anos 1960, mas (a década) começou com o movimento de direitos civis e a oposição a ele”, lembra Kazin.

Também os movimentos feminista, LGBT+, ambiental estão entre os que emergiram ou ganharam mais força durante aquela década.

“É quase como se tudo o que é importante na sociedade americana estivesse em jogo nos anos 60”, diz Kazin. “Não surpreende que, mesmo mais de 50 anos depois, muitas dessas questões ainda não tenham sido resolvidas.”

Fonte: BBC Brasil / Foto: Library of Congress

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