Vão publicadas a seguir duas visões sobre o papa Francisco. O primeiro texto dá um panorama do pontificado de Jorge Mario Bergoglio ao longo desses 13 anos em que esteve à frente da Igreja Católica, e reflete sobre o que pode esperar o próximo pontífice. Seu autor, Renan William dos Santos, é doutor em Sociologia pela USP e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Sua tese Orientações religiosas sobre a conduta ecológica, orientada pelo professor Reginaldo Prandi, foi premiada como a melhor tese da USP na área de Ciências Humanas em 2024, além de receber Menção Honrosa no Prêmio Capes de Tese. O segundo texto, do pesquisador Guilherme Borges, faz um recorte muito interessante sobre a “postura que o papa assumiu frente à diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero”. Borges é doutor em Sociologia pela USP, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pesquisador visitante da Universidade de Ottawa, no Canadá. Organizou, em 2024, com a professora Paula Montero, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, o dossiê Religião e Escola, publicado pela Revista USP.
A transição de comando em uma igreja que precisa se transformar
Renan William dos Santos
O legado de Francisco
A morte do papa Francisco encerra um dos pontificados mais marcantes da história recente da Igreja Católica e inaugura um processo sucessório complexo, em que se entrelaçam disputas pastorais, dissensos doutrinários e dinâmicas geopolíticas que ultrapassam os muros do Vaticano. Com Jorge Mario Bergoglio, a Igreja conheceu seu primeiro papa latino-americano, seu primeiro jesuíta no trono e, talvez mais visivelmente, seu primeiro pontífice a investir deliberadamente nos lucros simbólicos da humildade como estratégia de comunicação global.
Desde o início, recusando-se a habitar os aposentos pontifícios e preferindo um apartamento na Casa Santa Marta, passando por sua escolha de vestes simples e por gestos simbólicos de aproximação com pobres e migrantes, Francisco construiu uma figura pública carismática e acessível – uma performance que culmina agora com a decisão de ser sepultado não na cripta papal da Basílica de São Pedro, mas na Basílica de Santa Maria Maior, evocando uma ruptura tumular com a pompa tradicional da Cúria.

Os afastamentos e rupturas, porém, devem ser lidos com cuidado. O simbolismo reformador que marca seu estilo não corresponde, na mesma medida, a transformações institucionais profundas. Francisco é frequentemente retratado – especialmente fora da Igreja – como um papa revolucionário, um campeão das causas progressistas. Esse retrato parece ignorar, contudo, um fato originador básico: Bergoglio chegou ao papado por eleição de um colégio cardinalício em grande parte formado por Bento XVI, conhecido por seu perfil teológico conservador e sua defesa da ortodoxia doutrinária. Em outras palavras, a eleição de Francisco, em 2013, não foi fruto de um golpe que subverteu o “aparelho” estatal vaticano, mas de uma articulação hábil entre diferentes correntes internas da hierarquia católica, marcadas por tensões crescentes diante da crise de legitimidade institucional – simbolizada, à época, pelos escândalos de abusos sexuais e pela corrosão do prestígio público do Vaticano.
O próprio Francisco parece ter compreendido essas tensões como desafios que não eram só doutrinários, mas de governo. Não à toa, seus gestos e discursos frequentemente sugeriram abertura e escuta – como na exortação apostólica Amoris Laetitia, que abordou a complexidade das famílias contemporâneas com nuances raramente vistas no magistério católico –, mas suas decisões mantiveram o núcleo dogmático praticamente intacto (nesse e outros temas). No Sínodo da Amazônia (2019), por exemplo, houve intensa expectativa quanto à possibilidade de abertura para o diaconato feminino e à ordenação de homens casados (os chamados viri probati), em resposta à escassez de sacerdotes na região amazônica. Ambos os temas foram amplamente debatidos e as proposições de flexibilização das restrições, ainda que localmente, foram aprovadas colegialmente no Sínodo. No entanto, Francisco optou por não endossar essas reformas, reafirmando, ao final, a centralidade do celibato e a exclusividade masculina do sacramento da ordem.
Esse e outros pontos evidenciam, enfim, o caráter ambíguo de seu pontificado. Francisco agiu, muitas vezes, como o príncipe de Salina no romance Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, que se guiava pelo princípio de que “tudo deve mudar para permanecer exatamente como sempre esteve”. Ou seja, Francisco promoveu mudanças de linguagem, encenou deslocamentos simbólicos, reposicionou a imagem da Igreja no cenário global – mas o edifício doutrinário e institucional permaneceu, em boa parte, imóvel.

Foto: Bewahrerderwerte / CC BY-SA 4.0
A vacância e a sucessão
Com a morte do papa Francisco, instaura-se oficialmente a sede vacante, período de interregno que suspende a autoridade do pontífice e coloca a Igreja Católica em estado de expectativa institucional e espiritual. Mais do que um vazio de comando, trata-se de um tempo ritualizado, em que símbolos e gestos tradicionais são cuidadosamente acionados para preservar a continuidade e o prestígio da instituição.
Durante os nove dias de missas fúnebres – a chamada novendiali –, a Igreja vive um duplo movimento: enquanto os fiéis se despedem, os cardeais se preparam. O conclave, que sucederá os ritos fúnebres, está longe de ser a mais espiritual das tarefas sacerdotais. Na verdade, trata-se de uma operação político-eclesiástica de alta complexidade, com regras que moldam, restringem e ao mesmo tempo orientam os rumos possíveis da sucessão. Dele só participarão os cardeais com menos de 80 anos, um critério que, embora apresentado como respeito aos limites físicos dos anciões, funciona também como filtro político ao reforçar a influência de cardeais que foram nomeados mais recentemente (e que, portanto, estão mais distantes da influência de papados anteriores). Desta vez, 135 cardeais estão aptos a votar, sendo cerca de 80% deles escolhidos por Francisco, o que, em tese, favorece a continuidade de suas agendas.
No plano externo, as especulações sobre possíveis sucessores pululam, e até mesmo apostas em dinheiro são feitas sobre esse tema (sim, a onipresença das casas de apostas também alcançou a Santa Sé!). Entre os favoritos, destacam-se Pietro Parolin, atual secretário de Estado, discreto e diplomático, e Peter Turkson, de Gana, frequentemente citado como símbolo da ascensão africana no catolicismo global. Outros nomes, como o filipino Luis Antonio Tagle, também entram no radar, representando uma Igreja em busca de novos polos de autoridade fora da Europa. No entanto, historicamente, os papáveis favoritos quase nunca são eleitos – o que reforça o caráter estratégico e imprevisível das negociações internas, atravessadas por clivagens regionais, rivalidades entre ordens religiosas e divergências quanto ao papel da Igreja no mundo contemporâneo.
De toda forma, como sempre ocorre, o conclave se realizará sob rigoroso isolamento, com os cardeais eleitores impedidos de se comunicar com o exterior, em uma tentativa de blindar o processo contra interferências midiáticas ou geopolíticas. Ainda assim, nenhuma escolha é isenta de tais influências. As articulações que antecedem a votação envolvem tanto discernimento espiritual quanto cálculo institucional. Em tais debates “murmurados”, equacionam-se projetos de continuidade e ruptura, com o objetivo de formar uma maioria qualificada de dois terços dos votos. Quando esse consenso é alcançado, a fumaça branca sobe da Capela Sistina, sinalizando ao mundo que a Igreja já tem um novo pastor.
À sua frente, o novo pontífice encontrará um dos cenários mais desafiadores. Apesar da popularidade de Francisco, a Igreja continua a enfrentar (e a perder) uma série de disputas no mercado religioso, com destaque para o crescimento do secularismo na Europa e para a expansão das igrejas evangélicas, especialmente pentecostais e neopentecostais, que têm conseguido, com mais eficácia, oferecer uma religiosidade atraente às classes populares em toda a América Latina.
Ao sintonizar a Igreja com pautas caras a grupos mobilizados fora da estrutura eclesial, a encíclica ecológica Laudato Si’ (2015) teve o mérito de abrir uma nova frente de diálogo que, inegavelmente, deu novo fôlego para o catolicismo na esfera pública global. Contudo, as tão celebradas críticas ao “paradigma tecno-econômico” – que, vale lembrar, não chegaram ao ponto de dar nome aos bois (tente encontrar a palavra “capitalismo” na encíclica, caro leitor) – apenas retomaram, em grande medida, a já conhecida terceira via católica, historicamente proposta pelo Vaticano como alternativa às disputas entre os defensores do livre mercado e do socialismo.
Não bastasse isso, o texto também acabou por revestir, com a linguagem ecológica, alguns pilares do pensamento conservador católico. É o caso da ideia de que uma verdadeira ecologia “integral” exigiria o reconhecimento da masculinidade e da feminilidade dos corpos – uma formulação que se encontra de forma bastante clara no parágrafo 155 (novamente, convido o leitor a procurar na mídia ou mesmo em trabalhos acadêmicos alguma análise que explicite o que está, de fato, em jogo nesse trecho).
Tudo isso reforça, em suma, que o próximo papa terá de ser tão – ou ainda mais – habilidoso que Francisco para seguir administrando as contradições que atravessam uma instituição milenar em busca de relevância num mundo em transformação. Seja como for, a Igreja que emergirá do próximo conclave será inevitavelmente moldada pelas ambivalências do legado que agora se encerra.
A Igreja e o mundo que virá
O saldo do que foi aqui discutido mostra que a sucessão de Francisco será atravessada por equações institucionais que há décadas se acumulam sem solução. Para além dos fatores externos – como a crescente competição no mercado religioso global e o avanço de modelos mais carismáticos, acessíveis e flexíveis de espiritualidade –, permanecem equações internas não resolvidas, muitas das quais carregam alto potencial de conflito.
Uma delas, central e cada vez mais constrangedora, diz respeito à exclusão das mulheres das instâncias decisórias da Igreja. Em pleno século 21, é notável que uma instituição com tamanha influência ainda mantenha uma estrutura de poder absolutamente masculina e clericalizada, onde não há espaço para mulheres sequer nos níveis médios de liderança hierárquica. Mesmo iniciativas simbólicas, como a nomeação de mulheres para cargos consultivos em dicastérios vaticanos, são mais exceção do que norma, e estão longe de alterar a assimetria fundamental que veda o acesso feminino ao sacerdócio e ao poder deliberativo.
Outro desafio incontornável para o novo papa será lidar com a proliferação de debates internos cada vez mais acirrados e impulsionados por redes digitais de desinformação. Prova disso é que, em diversas partes do globo, bispos e sacerdotes se dividem abertamente não só em torno da veracidade das mudanças climáticas, mas até mesmo em torno de questões como as vacinas. Os efeitos são visíveis: resistências abertas à autoridade papal (como ocorreu com bispos norte-americanos durante a pandemia), movimentos de desobediência doutrinária e até ameaças veladas de cisma. O episódio do dubia enviado por cardeais conservadores a Francisco – questionando sua ortodoxia doutrinal – ilustra bem a quantas anda o cenário de fragmentação institucional e erosão do princípio de unidade católica.
A escolha do próximo pontífice projetará, portanto, sob os ombros da Igreja, as tensões de um mundo em ebulição. Quem quer que seja eleito, herdará mais do que a batina branca: encontrará um terreno instável, marcado por expectativas conflitantes. Espera-se que conserve a tradição, mas também que promova reformas; que apazigue divisões internas e guerras externas, mas, ao mesmo tempo, que se posicione com coragem diante dos grandes dilemas do presente. A partir do equacionamento desses vetores, veremos se a Igreja terá a coragem de enfrentar seus próprios limites e atender aos anseios de um mundo que já não a espera.

Foto: Edgar Jiménez from Porto, Portugal / CC BY-SA 2.0
Papa Francisco e seu legado secularista
Guilherme Borges
Nos últimos dias, muito se tem falado e escrito a respeito de como o papa Francisco abriu as portas da Igreja Católica para que novos ares pudessem adentrar a instituição. Seu pontificado é celebrado por ter retomado os passos em direção àquele aggiornamento prometido no Concílio Vaticano II e tão pouco concretizado posteriormente. Em especial, são relembradas as manifestações pontifícias em pautas relativas a políticas migratórias, diálogo inter-religioso e questões ambientais. Outro ponto bastante ressaltado é a postura que o papa assumiu frente à diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero. Esse último destaque, entretanto, vem sendo atenuado pela constatação de que, quando questões relativas à homossexualidade entravam em jogo, os posicionamentos do chefe da Igreja mostravam-se cambiantes, para não dizer pendulares, alternando-se entre dois extremos. A despeito desses descolamentos discursivos, há um ponto que não parece ter mudado para Francisco: as uniões homoafetivas deveriam ser protegidas juridicamente.
Em 2018, foram veiculadas as seguintes palavras ditas pelo papa a um homem gay abusado por sacerdotes católicos quando criança: “Deus o fez assim. Deus o ama dessa maneira. Para mim não importa. O papa o ama dessa maneira, e você deve ser feliz do jeito que é”. Antes disso, em 2016, ele já havia dito que a Igreja deveria pedir perdão a homossexuais pela marginalização que lhes infligiu ao longo da história. Logo em sua primeira viagem internacional como pontífice, quando deixava o Brasil após participar da Jornada Mundial da Juventude de 2013, Francisco assim o disse, em uma entrevista que se tornou célebre: “Se uma pessoa é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”.
Em contraste com isso, o Dicastério para a Doutrina da Fé – com aprovação do papa – publicou em 2021 um documento afirmando que a Igreja não poderia abençoar uniões homoafetivas porque “Deus não pode abençoar o pecado”. Não custa lembrar também que, no decorrer de seu pontificado, Francisco passou longe de fazer uso das prerrogativas que lhe possibilitariam alterar a redação do catecismo da Igreja Católica, que assim classifica as relações homossexuais: “São contrárias à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afetiva sexual e não podem, em caso algum, ser aprovadas”.
Porém, mesmo quando partia do pressuposto de que práticas homoafetivas seriam pecaminosas, Francisco dizia: “Ser homossexual não é crime. Não é crime, mas é um pecado. Tudo bem, mas primeiro vamos distinguir um pecado de um crime. Também é pecado não ter caridade com o próximo”. Nas palavras do papa, “as pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma família. O que devemos criar é uma lei de união civil. Dessa forma, elas estarão legalmente resguardadas”. Não se tratava de conferir a relacionamentos homoafetivos a dignidade do sacramento do matrimônio, que convinha continuar restrito a laços heterossexuais. O que ele advogava era simplesmente pelo reconhecimento de que, mesmo sem o respaldo religioso, as uniões homoafetivas poderiam contar com o devido suporte legal. Pode parecer pouca coisa, mas foi a primeira vez que uma voz pontifícia defendeu publicamente esse tipo de proteção jurídica.
A distinção entre pecado e crime, advogada por Francisco, configura uma mudança drástica nas formas adotadas pela institucionalidade católica para lidar com a normatividade jurídica secular, particularmente quando o que está em jogo são questões de ordem sexual e reprodutiva. No decorrer da segunda metade do século 20, a hierarquia da Igreja se colocou em um movimento de moderação gradativa de sua intransigência inicial à configuração laica do Estado. Já não se vê hoje em dia declarações pontifícias como as de Pio X, que afirmava que “a separação entre a Igreja e o Estado é uma ideia absolutamente falsa e muito perniciosa”. Pelo contrário, o que se tornou comum são declarações de feitio semelhante àquela de Bento XVI, que ponderava que “a laicidade não é hostilidade à religião”. Os antecessores imediatos de Francisco passaram a vocalizar uma aceitação do secularismo enquanto ideário que deveria pautar as relações entre poder público e poder eclesiástico. Aparentemente, não cabe mais enxergar esse ideário como se ele constituísse uma ameaça à influência e autoridade da Igreja. Salvo, porém, quando estão na agenda temas relacionados e correlatos à autonomia sexual.
No campo dos afetos, seria urgente que a Igreja continuasse a ter sua expertise ouvida e acatada pelo Estado, principalmente quando esses afetos se impõem sobre o aspecto reprodutivo da sexualidade. Nesse âmbito, cumpriria rejeitar quaisquer cisões entre os ditames que se apresentam como católicos e os que se configuram positivados na legislação. Por isso mesmo, a defesa que Francisco fez da proteção legal para relacionamentos homoafetivos representou uma abertura pastoral sem precedentes no interior da Igreja. Embora tenha preservado a doutrina católica tradicional sobre o matrimônio, ele estabeleceu, ao mesmo tempo, uma separação inédita entre o código canônico, de um lado, e o código civil, de outro.
Em tempos como os de hoje, em que se vê pulularem tantos questionamentos ao princípio da laicidade estatal – princípio este que há poucas décadas parecia ser uma unanimidade e cláusula pétrea de democracias liberais –, chama a atenção o fato de justamente um papa ter saído em defesa da neutralidade religiosa por parte do poder público. A surpresa é ainda maior quando se constata que a defesa de Francisco se deu em contextos em que a discussão circunscrevia temas de moralidade sexual. Agora é aguardar o desfecho do conclave que se aproxima, para ver o que será feito com esse legado secularista por parte do próximo ocupante da Cátedra de São Pedro.
Fonte: Jornal da USP / Arte sobre foto Jeffrey Bruno from New York City, United States/Wikipedia / CC BY-SA 2.0