Vacinas com sobrepreço aos países pobres. Doses desviadas ao Norte Global. Sigilo e chantagem. Documentos desclassificados pela Suprema Corte sul-africana levantam o véu sobre as práticas predatórias adotadas pelas farmacêuticas
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No People’s Health Dispatch | Tradução: Guilherme Arruda
Em agosto deste ano, uma aliança de organizações da sociedade civil da África do Sul composta por entidades como a Health Justice Initiative (HJI) e a Public Service Accountability Monitor (PSAM), conseguiu uma notável vitória na pauta da transparência no comércio de vacinas de covid-19. A Suprema Corte de Pretória, capital do país, emitiu uma decisão que intima o Departamento de Saúde do governo sul-africano a tornar públicas as atas de reuniões e os contratos ligados à compra de doses de vacinas de empresas como Pfizer, Janssen e Serum Institute of India, assim como da parceria público-privada de saúde global Gavi.
Em uma coletiva de imprensa convocada na quinta-feira passada (5/9), Fatima Hassan, diretora da HJI, afirmou que a análise dos contratos que já foram entregues pelo Departamento de Saúde no fim de agosto revelou indícios concretos de uma das principais distorções que preocupavam os militantes da saúde desde o início da pandemia.
Para ela, a enorme influência das gigantes farmacêuticas sobre o processo de aquisição de vacinas ampliou as desigualdades globais de saúde e penalizou o orçamento público dos países pobres. Como disse Hassan na coletiva, a indústria farmacêutica tinha poder absoluto nas negociações, enquanto os governos, especialmente os de países como a África do Sul, foram humilhados ao buscar suprimentos de vacinas.
Chega a ser inacreditável o quanto empresas como a Janssen se aproveitaram de sua posição de vantagem para maximizar seus lucros. Jay Kruuse, da PSAM, destaca que, no contrato que assinou com a África do Sul, a farmacêutica simplesmente não se comprometeu com nenhum prazo de entrega para as vacinas que vendeu ao país. Kruuse percebeu que o documento oferecia total liberdade à Janssen para exportar as vacinas que produzia na própria África do Sul. A cláusula deveria seguir em vigor mesmo em momentos de grandes altas de casos.
Não menos abusivos eram os contratos assinados com a Pfizer, de acordo com Matthew Herder, do Dalhousie Health Law Institute. Eles punham todas as responsabilidade sobre o país, enquanto a a Pfizer se eximia de garantir o mais básico: a entrega das doses compradas. Caso a empresa não honrasse seus compromissos, o contrato estipulava que o governo sul-africano só receberia de volta metade dos pagamentos que havia feito! É evidente que isso seria devastador em meio à pandemia.
Como se não fosse o suficiente, a África do Sul também se viu pagando preços mais altos que os oferecidos aos países do Norte Global pelas vacinas. Por exemplo: a vacina da AstraZeneca produzida pelo Serum Institute of India foi vendida ao país por 10 dólares a dose, duas vezes e meia a mais do que o governo inglês pagou pelo imunizante. O motivo disso ainda não está claro, diz Nick Dearden, da ONG Global Justice Now, mas em setembro o Departamento de Saúde liberará novos documentos e importantes informações devem se tornar públicas. É inaceitável que países mais pobres paguem mais caro que os ricos.
Esse faturamento criminoso da Big Pharma não foi mitigado com a criação de mecanismos internacionais que prometiam garantir o acesso rápido dos países pobres às vacinas contra a covid-19. Brook Baker, analista da Health GAP, denuncia que o COVAX, mais incensado dos mecanismos do tipo, fracassou em cumprir seu papel. No caso da África do Sul, o COVAX só entregou 10% das doses que deveria suprir.
O COVAX não conseguiu frear o “nacionalismo de vacinas” e o açambarcamento dos imunizantes pelos países ricos, lamenta Baker. Em que pese a ênfase posta na equidade durante as negociações globais em meio à pandemia, nenhuma medida foi instituída para impedir as farmacêuticas de priorizarem seus clientes mais prósperos do Norte Global. O fato de que os contratos assinados permitiam que a Janssen exportasse vacinas para a Europa mesmo no pior momento da crise do covid-19 na África do Sul, frisa Fatima Hassan, devia ser “o maior dos escândalos”.
Os militantes comemoram a decisão judicial que tornou públicos todos esses documentos, mas alertam que a mobilização não pode parar por aí. A transparência é crucial para que os governos sejam cobrados por seus atos, mas o que é necessário para que haja mudanças reais no campo do acesso a medicamentos é uma ampla reforma do sistema de comércio internacional.
Com as negociações em curso para um acordo global sobre pandemias, porta-vozes da HJI alertam que as ameaças das empresas farmacêuticas podem ser bastante sutis. Alguns dos contratos com a África do Sul revelados recentemente nem mesmo possuem cláusulas de confidencialidade que impedissem formalmente o governo de torná-los públicos. Mas, como explicou Brook Braker, os negociadores foram informados que, se divulgassem informações demais, as farmacêuticas não mais trabalhariam com eles no futuro.
A lição mais importante a ser aprendida do imbróglio das vacinas da covid-19 é o que não fazer para combater as futuras pandemias, opina Baker. Ações futuras devem ser guiadas pelo compromisso com a saúde dos povos, e não com a proteção dos lucros e segredos comerciais – mas essa batalha ainda está em curso na Saúde Global.
Fonte: Outra Saúde