Pesquisador sustenta: é preciso coragem e imaginação para construir o SUS do século XXI. Para isso, resgatemos a dialética e utilizemos sua potência de transformação que permite ir além do “realismo capitalista” e da tecnoforia
Um ensaio de Leandro Modolo, autor convidado
A “saúde digital” chegou. As transformações já ocorrem e não serão poucas, nem rasas. O atual entusiasmo em torno da Inteligência Artificial (IA) na saúde não é injustificado. Já é possível observarmos mudanças – epistêmicas e políticas – e aperfeiçoamentos nas previsões de riscos, nos incrementos dos suportes clínicos; nos novos procedimentos para descobertas de drogas; no desenvolvimento de novas técnicas de interpretação de imagem, de identificação de tratamento, de melhoria na acurácia dos diagnósticos; na redução dos erros de medicação; na redução de custos; nos novos meios de comunicação entre médico-paciente etc. Em suma, toda tarefa clínica e de saúde pública em pouco tempo estará mediada, mais ou menos, por algum dispositivo digital e integrada a infosfera.
O problema, como disse a estudiosa Jessica Morley, é que o entusiasmo com tudo isso “está mascarando as limitações, os desafios, as considerações éticas, os riscos” e “despida de seu hype excessivamente lisonjeiro, ela permanece lamentavelmente subexaminada”. Não pretendemos superar esse déficit neste espaço, obviamente. Mas estou convencido que, antes de tudo, dependemos de um debate em torno da atitude com a qual a enfrentamos. Quero chamar atenção aqui para a postura de alguns e sugerir uma outra, que defendo ser necessária frente aos fatos e ao porvir.
Quem talvez tenha sido um dos primeiros, no Brasil, a nos chacoalhar foi Luiz Vianna Sobrinho. Em seu último livro, O Ocaso da Clínica: A Medicina de Dados (2021) e em suas entrevistas, o bioeticista defende que frente à “medicina de dados” a prática médica está à beira de uma “mudança copernicana” e não podemos cometer os mesmos erros do passado. Pessoalmente, contribui neste sentido com uma resenha ao seu livro e em texto que escrevi com o cardiologista.
A inestimada pesquisadora Ilara Hammerli, ao lado do professor Marcelo Fornazin, também contribuíram com uma atitude ímpar no “manual” Saúde Coletiva – Teoria e Prática (2023). Os dois ratificaram que diante da tecnoforia que atravessa o oba-oba em “saúde digital” não podemos nos perder para a tecnofobia. Na verdade, trata-se de problematizar a atual dinâmica de saberes e práticas que constituem essa transformação tecnológica a partir da uma “reflexão crítica sobre suas bases conceituais e epistemológicas e o contexto político historicamente determinado.”
Mais recentemente, o epidemiologista Naomar Almeida Filho, em palestra para o NETHIS/Fiocruz, coroou a necessidade de uma outra atitude, e nomeou a angustia que insiste em desamparar aqueles que defendem uma sociedade pós-capitalista. Disse o ex-reitor da UFBA: necessitamos de uma “teoria crítica da saúde digital”. Segundo ele, para isso é preciso um retorno aos clássicos do pensamento da Saúde Coletiva e da América Latina – lição sábia, que os modismos acadêmicos insistem em fazer troça. E dessa lição trouxe alguns gatilhos teóricos importantes para começarmos a treinar os times de novos intelectuais, ativistas, militantes etc. que terão o desafio de levar a cabo a Reforma Sanitária do século XXI. A historiadora Lilia Schwarcz disse que o século XXI começou com a pandemia. O SUS do século XXI também, e ele vem e virá cada vez mais digitalizado. A Reforma Sanitária deste século também terá que ser digital.
A bola lançada no ar pelo decano, ao meu entender, contudo, demorará anos para ser cortada como o ponto de match point. Isso sevier a acontecer, já que a crise do capitalismo global, as mudanças climáticas, o renascimento do fascismo e a atrofia perspectivista da esquerda, todos juntos, configuram uma tempestade perfeita em prol do que o sociólogo Rafael Afonso chama de “gestão da extinção”. Mas nenhuma toalha será jogada e é preciso (re)começar o jogo o quanto antes, senão será tarde para recuperarmos os pontos perdidos. Afinal, só ganha quem joga!
Nesse sentido, para construirmos uma teoria crítica da saúde digital talvez seja o caso de darmos um passo atrás – ou melhor, voltarmos aos treinos dos fundamentos e recolocarmos questões como: o que é uma teoria crítica? Ou mesmo, de nos perguntarmos: cabe apenas uma teoria crítica?
A resposta a está última questão já sinalizamos lá no começo: não, uma teoria é pouco, ela é secundária a uma postura, a uma atitude. Mas, há tempos, sabemos que atitudes sem orientações teóricas são meros atos reflexos. Então já é preciso uma autocorreção: trata-se na verdade de reorientarmos uma práxis, a práxis crítica.
Para contribuir nesse sentido quero trazer apenas uma sugestão e, quem sabe, outros críticos se somem a ela para aumentarmos e treinarmos os nossos times. A sugestão é recuperar a dialética como um modelo crítico. Acreditamos que ela fornece coordenadas para uma atitude que sustente as possibilidades de transformação radical do atual estado de coisas – mesmo que os realistas do que podemos fazer insistam em silenciar, cinicamente, o realismo do que devemos fazer.
Durante os últimos cinquenta anos a dialética foi atacada de diversas formas, pela direita e pela esquerda; por aqueles que não se importam com a crítica do estado de coisas, e por aqueles que se reivindicam críticos. A posição a ser defendida aqui é de que, no substancial, ambos erraram. Ao encontro do projeto filosófico de Vladimir Safatle, entendemos que “foi necessário que a dialética fosse objeto implacável de crítica para que ela pudesse se realizar como modelo crítico”. E, assim, que ela retornasse, rejuvenescida.
O filósofo Theodor Adorno certa vez disse que a dialética “É o esforço destemido de combinar a consciência crítica da razão sobre si mesma com a experiência crítica dos objetos”. Safatle, em sala de aula, nos ajudou a entender o frankfurtiano:
A dialética é uma estratégia de pensamento e ação que parte da necessidade de compreender julgamentos como processos reflexivos de auto-retificação, como um movimento complexo de integração de negações. Ou seja, ela não apenas reconhece operar em um mundo em crise, no qual faz-se necessário explicitar crises e seus sistemas de contradições. De certa forma, ela é um pensamento que parte da crise do próprio pensamento, de suas próprias aspirações normativas, e que está disposto a ir até o ponto mais dramático da crise antes de fornecer qualquer solução possível.
Isso porque a dialética se dá apenas, e tão somente, quando mantemos a observância de que a experiência ultrapassa necessariamente os limites do que pensamos sobre a própria experiência, e forçamos então tanto a consciência quanto a experiência dos objetos a uma metamorfose contínua. A dialética como modelo crítico é o pensar que se pensa constantemente contra o que está sendo pensado. Por isso ela é uma crítica imanente, porque se coloca na exaustão da recursividade reflexiva, ou tal como falára o Fausto de Goethe, “o espírito que sempre nega”.
E o que isso tem a ver com a “saúde digital”? A disposição, a atitude dos efetivos defensores do SUS – universal, integral, equânime e popular – em negá-la dialeticamente. Ou melhor, de pouco ou quase nada vermos de negação dialética sobre ela. Alguns tecnofóricos, de dentro de departamentos da Saúde Pública e Coletiva, pasmem, dizem que não devemos criticar as novas tecnologias porque isso entrava a inovação e o desenvolvimento nacional. Frente a isso é preciso registrar: para dialética, a crítica deve ser um momento da realização do objeto – da “saúde digital” –, mesmo que esta realização seja a desmistificação da representação que fazemos dele, neste caso a representação publicitária do Vale de Silício que hegemoniza as salas de aula, as redes sociais, muitas das secretarias de governos e dos ministérios.
A dialética é afirmar que a realização do “digital” não consiste simplesmente na inovação dessa ou daquela tecnologia tal como está sendo orientada pelas atuais forças políticas e econômicas transnacionais – e dominantes. Consiste na crítica capaz de produzir uma transformação do que entendemos como “saúde digital”, para que essa ideia se realize como veículo de transformação da realidade nacional, quiçá latino-americana e mundial. Esta transformação, realizada em nome da crítica ao digital, será a própria realização da “saúde digital”, não mais como uma mercadoria embalada e importada ao gosto do consumidor, mas como um novo conceito – dito de outro modo, sob um novo projeto técnico, político, econômico, social, cultural e ético. Essa é uma atitude crítica dialética.
Mas, se os tecnofóbicos – por sorte – ainda são poucos, não são apenas os tecnofóricos que erram redondamente. Retornando a síntese de Safatle, devemos nos perguntar qual a crise do pensamento em que estamos inseridos e que é preciso empurrar ao seu ponto dramático antes da fazer valer a solução? Infelizmente, um campo importante dos que se reivindicam críticos, hoje são apenas bons gestores da ordem. Parte importante dos que se colocam como críticos tem suas aspirações normativas no aperfeiçoamento de políticas públicas, na captação de recursos e bom gerenciamento dos mesmos. Minha solidariedade sincera neste manejo árduo e imprescindível. Mas em que horas pensamos a “grande saúde” da qual falava nietzscheanamente Canguilhem? Em que horas refletimos sobre o “projeto civilizatório” do SUS com base nas aberturas inauditas da atual revolução tecnológica?
Mark Fisher chamou de “realismo capitalista” essa atrofia da nossa imaginação política e ética, lembrando que a consigna “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que fim do capitalismo” hegemoniza, sobretudo, os militantes, intelectuais, políticos e gestores de esquerda – em tese os “críticos” da ordem dominante. Pois, a leitura que faço é que esse déficit se sintonizou organicamente com a “razão cínica” da qual falara Sloterdijk e Zizek tão bem sintetizou: não acreditamos no capitalismo, mas no nível prático de nossas vidas, continuamos agindo como se acreditássemos… A impressão é que nós estamos tão confinados à realidade do aqui e agora, dos cálculos neoliberais e jogos institucionais, que o futuro se tornou ausente, ou melhor, tornou-se uma reprodução ampliada do presente; daí, para sobrevivermos, nos escondemos em um cinismo de quem sabe que o que faz é o insuficiente dos marcos do possível. Se assim continuar, penso que quem fica(rá) com o saldo político e cultual a seu favor serão os nossos inimigos, e nós seremos a contragosto o alimento dos corações e mentes neofascistas, que aos seus modos prometem diariamente um “mundo novo”.
A dialética não é apenas uma atitude crítica que visa identificar injustiças e organizá-las em condições institucionais para gerirmos demandas de modo mais eficiente e humanizado. É uma práxis de transformação com vistas à realização das exigências das emancipações que ainda não puderam se realizar historicamente. Logo, a atitude crítica frente a “saúde digital” não é um simples: como implementar essa ou aquela solução com responsabilidade pública e social? Isso é o mínimo que podemos fazer. E se a atitude crítica se contenta com o mínimo é ela mesmo sua morte, a interrupção da sua reflexividade transformadora.
A crítica dialética, portanto, não é uma atitude que visa identificar os déficits do processo para geri-los adequadamente. A dialética é, sobretudo, a disposição de procurar saídas perdidas no fetiche das novidades, a atitude de abrir novos horizontes, horizontes que até então não estavam aqui antes da novidade surgir. Vale insistir neste aspecto: horizontes que ainda não estão escritos no aqui e agora, e que temos a responsabilidade de plasmá-los – para reconquistarmos corações e mentes. Parafraseando de modo chulo o diplomata-literato, a vida… o que ela quer da gente é coragem; o SUS digital o que quer da gente é coragem e criatividade.
Dito isso, talvez a atitude crítica mais profícua frente a novidade da “saúde digital” é nos perguntarmos: o que um dos maiores arroubos que humanidade já criou na sua história, como a “inteligência artificial” e a “hiperconectividade”, recoloca como horizonte sociossanitário para o povo brasileiro, para humanidade e para “Gaia”? O que está inscrito como potência nas novas tecnologias que nos permite recolocar a Reforma Sanitária como “projeto civilizatório”? Recolocá-la como uma Reforma Sanitária Digital que seja capaz de realizar o que até então não conseguimos?
Parece os que os tecnofóricos não estão dispostos e os “bons gestores” não têm tempo para se colocarem essas perguntas. Talvez o lema do movimento negro anticapitalista resuma bem um atitude necessária: “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista!”; e se o racismo é “estrutural”, há muito mais a transformarmos e criarmos do que nos resumirmos a gestão humanizada da ordem.
(Voltaremos com antirrealismos capitalista para contribuir na construção de novos horizontes rumo a Reforma Sanitária Digita)
Fonte: Outra saúde