Em entrevista ao Cebes, a ministra discorre sobre o que foi feito e os projetos para 2024. A integralidade será o norte da pasta, conta ela. Mas há enormes desafios, em especial na relação com o Congresso e na grave ameaça de descumprimento do piso constitucional
A ministra da Saúde Nísia Trindade concedeu uma breve entrevista ao programa semanal de entrevistas do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), o Cebes Debate. No diálogo, Nísia comentou temas como os projetos para a saúde global que o Brasil pretende impulsionar na presidência do G20 – entre eles, a preparação conjunta para as próximas emergências sanitárias e ações de transformação digital da saúde. E também contou sobre os planos do Ministério da Saúde (MS) para 2024.
No ano que se inicia, a prioridade do MS será o impulsionamento da “integralidade do cuidado à população”, afirmou a socióloga, reforçando o trabalho de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) que sua gestão já sinalizou ter como norte. A ministra também apresentou algumas novidades ainda não anunciadas oficialmente – entre elas, novidades na política de atenção à saúde materna e um novo programa de promoção de saúde em parceria com o Ministério do Esporte.
O orçamento da Saúde – assunto incontornável – também foi pauta da conversa. Se por um lado a ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ressalta que “nenhuma outra edição do PAC teve um volume de recursos para a Saúde tão considerável”, ela também reconhece que há desafios na relação com o Congresso Nacional, principalmente em torno dos recursos das emendas parlamentares.
Questionada sobre a concretude da ameaça de flexibilização do piso constitucional de financiamento da Saúde, Nísia foi concisa: “ela é real”, apesar da posição contrária do MS. Infelizmente, o assunto se encerrou de forma algo abrupta – mas está claro que a batalha pelos recursos da Saúde não deve ser superada tranquilamente. O desenrolar do embate será decisivo para o país, para o SUS e para o povo: Como reiterou a própria ministra, “a Saúde é um direito que só é assegurado com políticas econômicas e sociais” adequadas.
O que se fez em 2023…
Na abertura da conversa, a ministra foi convidada a comentar a atuação de sua pasta em 2023, período que avaliou ter sido focado em “um processo de reconstrução, que continua”. Nessa lida, ela aponta, ações como a retomada do diálogo com atores como Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems) e com a comunidade científica – cruciais para reverter o “conjunto de ações levando à desconfiança” tomadas pelo governo anterior. Não menos relevante, continuou Nísia, foi a recriação de iniciativas como o Mais Médicos e a reposição de recursos para programas que Bolsonaro não teve coragem de encerrar mas buscou asfixiar, como os de saúde mental e HIV/aids.
Contudo, a ministra alerta que “muitas questões vão permanecer”, já que a reconstrução do país (e do SUS) não pode se resumir a um ano de gestão. O essencial, considera a socióloga, é a retomada do paradigma de um “Estado [que] vai induzir desenvolvimento, introduzir políticas sociais, combater a fome e reduzir desigualdades”.
Em comparação com outros mandatos de Lula, Nísia também lembrou que novos desafios, como o negacionismo, e novos horizontes, como maiores avanços na política de saúde reprodutiva, estão em jogo – e que a discussão não pode ficar restrita à retomada de programas introduzidos de 2003 a 2010, apesar de sua importância.
… e as prioridades do MS para 2024
Seguindo para os planos de 2024, Nísia afirmou que pretende “colocar na linha de frente o cuidado integral da saúde da população”, elegendo o tema da integralidade como uma prioridade do ano – princípio que considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades, e que “pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, para assegurar uma atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos”, segundo o próprio MS.
Citando o exemplo do Programa Nacional de Redução de Filas, Nísia ressaltou a importância do planejamento para a Saúde e explicou que pretende avançar na integralidade lançando outros planos nacionais, propondo “metas a serem atingidas em um período claro”. Entre as políticas que serão lançadas no ano que se inicia, a ministra citou um programa de promoção de saúde em parceria com o Ministério do Esporte, que estaria sendo desenvolvido desde a gestão de Ana Moser.
Ainda no âmbito das novidades, Nísia adiantou que também será apresentada uma nova política para a atenção à saúde materna e infantil – incluindo a construção de mais maternidades e centros de parto. O Brasil, vale lembrar, registra índices bastante ruins nas taxas de mortalidade materna, muito agravados após a pandemia. A nova política se concentrará em aproximar o país das metas da Organização Mundial da Saúde (OMS), quase três vezes abaixo dos registros atuais.
Em outro anúncio, a ministra revelou que, no ano que entra, o país deve dedicar mais esforços para a preparação para emergências de saúde em geral, não se restringindo às pandemias. Para isso, “um SUS resiliente é fundamental”, e as ações nesse sentido deverão alcançar frentes como a vigilância, o fortalecimento da rede integrada, a produção de vacinas, o fomento à Ciência e Tecnologia e avanços na área da Saúde Digital, segundo a titular da pasta da Saúde.
A nível global, a preparação para as emergências sanitárias também será uma das três prioridades do Brasil na presidência do G20 neste ano, adiantou a ministra. E o trabalho conjunto de vigilância não será a única forma de preparação: o país defenderá também a “desconcentração da produção de ciência e tecnologia”, em alinhamento com uma agenda geral de redução da “desigualdade entre os países” e de defesa de que o “Norte Global cumpra seus compromissos”.
Junto do tema, também estarão na agenda a continuidade de projetos de transformação digital da saúde, iniciados na presidência da Índia no bloco, e de reflexões conjuntas sobre formas mais integradas de pensar os sistemas de Saúde.
Para onde vão os recursos da Saúde?
Em três momentos, a entrevista também alcançou o tema da destinação dos recursos da Saúde, hoje continuamente disputados – nem sempre de forma sutil – entre o SUS e os mais variados interesses privados, dos empresariais aos religiosos e parlamentares-paroquiais.
Versando sobre o imbróglio das emendas parlamentares, Nísia se ateve ao caminho seguro das boas relações institucionais. Disse que o diálogo com os congressistas é uma tarefa a avançar em 2024, mas reiterou a “importância de seguir critérios objetivos, que já existem” em relação à destinação das emendas – e que a ponte com o Tribunal de Contas da União (TCU) é constante para manter tudo nas balizas. Adotou uma linha pragmática: afirmou que esse tipo de pressão faz parte do jogo da política e que é preciso “dentro dessas regras, fazer o melhor jogo em benefício do SUS”. A ver se os deputados e senadores adotarão o mesmo republicanismo.
Já no momento em que se discutiu o Novo PAC, a ministra sublinhou o ineditismo do volume de verbas destinadas à Saúde. Uma série de projetos estratégicos devem se viabilizar com esses recursos, em especial os que remetem ao desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde – a ampliação de Bio-Manguinhos, novas plantas da Hemobrás e novas Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP), são alguns dos exemplos listados por Nísia.
Desafortunadamente, porém, o terceiro tema abordado, aquele que especialistas em Economia da Saúde apontam como o embate decisivo de 2024, ficou restrito a um momento fugaz da entrevista. Nísia confirmou que “é real” o perigo de que o piso da Saúde, que obriga o Governo Federal a dedicar 15% da receita corrente líquida à pasta, seja flexibilizado – isto é, em bom português, não cumprido. As consequências podem ser devastadoras para o SUS público, estatal e de qualidade.
Em mais de um momento da conversa, a ministra reafirmou seu compromisso com duas bandeiras históricas do movimento sanitarista: a concepção de que a “Saúde é base para um projeto democrático de cidadania” e, consequentemente, a necessidade de “fortalecer a Saúde na política econômica”. Além disso, frisou-se que o MS se posiciona de forma contrária à possível redução do orçamento. Quem são os responsáveis, então, por essa ameaça tão grave de flexibilização do piso? E quem os permite avançar com essa ideia tão estapafúrdia? Lamentavelmente, a entrevista conduziu Nísia para outros assuntos – e uma discussão em profundidade em torno do Piso da Saúde ficará para outro dia.
Fonte: Outra saúde