Para retomar uma clínica radical

saúde

Por Bárbara Belamio e Clarice Paulon

No neoliberalismo, luta antimanicomial é minada pela individualização do sofrimento e retorno do modelo ambulatorial. Voltar à radicalidade da proposta basagliana da “doença entre parênteses” será fundamental para enfrentar esse retrocesso

No Brasil há uma diferença entre Reforma Psiquiátrica – aquela que se institucionaliza por meio de uma lei e cria os serviços substitutivos ao Hospital Psiquiátrico – e a Luta Antimanicomial, essa que se inspira mais profundamente nas proposições Basaglianas, e se configura enquanto um movimento social formulado por usuários da rede de Saúde Mental, familiares destes e trabalhadores dos equipamentos das políticas públicas. A Luta Antimanicomial traz em seu bojo a disputa por um projeto de sociedade que vislumbra a transformação social e dentro dessa propõe a alegria pelo diverso, ou seja, a possibilidade da diferença ser incluída e desejada em nossa sociedade.

A realidade atual da Reforma Psiquiátrica brasileira denuncia um cenário de tempos neoliberais que a faz cada dia mais se afastar da Luta Antimanicomial. A perspectiva coletiva tem, progressivamente, sido deslocada para uma forte individualização dos sofrimentos e também, no que se refere às práticas em Saúde Mental, observamos um retorno ao modelo ambulatorial no qual a cultura, os fatores sócio-históricos e a realidade dos territórios em que os sujeitos estão inseridos são deixados de lado em favor de uma escuta que, a cada dia mais, patologiza e medicaliza vidas. Observamos nessa conjuntura que o manicômio sofisticou-se assumindo novas formulações que estão para além da materialidade de seus muros.  Nos deparamos atualmente com o manicômio enquanto uma ideologia que se estabelece nos consultórios de médicos, psicólogos, psicanalistas, terapeutas ocupacionais fora ou dentro da Rede de Atenção Psicossocial. Essa ideologia também se expressa no aumento da demanda social por diagnósticos psiquiátricos os quais são altamente difundidos nas mídias digitais, levando muitos a buscarem profissionais do campo da Saúde Mental em busca de uma suposta normalidade.

Para Franco Basaglia, a violência está na base de todas as instituições de nossa sociedade do manicômio aos hospitais e escolas, de modo que o que caracteriza essas instituições é a clara divisão entre quem tem o poder e quem não tem. Historicamente, em um país marcado pela colonização e escravidão como o nosso, aqueles que tem poder são corpos brancos, proprietários e, preferencialmente, masculinos. Desse modo, os corpos que víamos no manicômio – e que ainda vemos em maioria nas instituições públicas de Saúde Mental até hoje – são de pessoas marcadas pelas intersecções de raça, classe, gênero e sexualidade denotando que a ideologia manicomial tem a evidente função de apartar da sociedade as suas próprias contradições. A retomada dessa reflexão basagliana nos dá pistas para uma melhor compreensão da função social e histórica do diagnóstico em saúde mental, já que é por meio da redução desses corpos a um diagnóstico que os mantemos controlados, dominados e explorados.

Basaglia nos aponta que ao mesmo tempo em que os trabalhadores da Saúde Mental são colocados na função de conter e manter alienados os corpos daqueles que já estão em uma posição de exploração, dominação e expropriação, os próprios trabalhadores dialeticamente também se alienam de seu lugar nessa estrutura. Para que ambos os grupos possam retomar sua dignidade e cidadania dentro dessa sociedade de desigualdades sociais, é necessário que os trabalhadores da Saúde Mental recusem o mandato social que os reduz a posição de administradores da violência do poder e lutem por uma compreensão global da dialética dessa exclusão, evitando realizar no campo prático ações que visem à adaptação dos sujeitos a exclusão que a ideologia manicomial opera.

Essa posição de recusa do mandato social dos trabalhadores do campo (médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, psicanalistas, assistentes sociais e etc.) direciona as práticas ao horizonte de construção de emancipação humana e política daqueles que são alvo da dominação. Para que isso se consolide enquanto intervenção, é preciso retomar com radicalidade a proposta basagliana de colocar a doença entre parênteses para que assim o sujeito, em suas múltiplas determinações subjetivas e materiais, possa ser visto e consequentemente escutado em suas necessidades. A escuta que se fixa a doença reduz os sujeitos a um lugar de objeto e essa redução influencia como o próprio sujeito vê a si mesmo, podendo apenas relacionar-se consigo enquanto um corpo doente que é objeto da patologização ou medicalização.

Retomar na atualidade a radicalidade da proposta basagliana é, portanto, compreender que a nossa clínica deve ter como direcionamento a emancipação daqueles que são historicamente explorados e dominados. Nossa clínica deve estar para além das salas ambulatoriais, dos confortáveis divãs ou do provisório alívio das prescrições medicamentosas. Nossa clínica é terapêutica de fato quando feita por meio da luta pela construção de uma sociedade que pode viver dialeticamente com as contradições do real. É por meio desse posicionamento que construiremos, coletivamente, a saída para muitos sofrimentos psíquicos atuais que se encapsulam na racionalidade que os individualiza produzindo mais danos psicossociais para aqueles que já sofrem com as inerentes desigualdades dessa formação social.

Basaglia nos ensina que um dos principais passos que devemos dar é na transformação das relações interpessoais entre os trabalhadores do campo e os lidos socialmente enquanto loucos, drogados, doentes mentais, portadores de transtornos mentais. É preciso que haja uma passagem da ideologia manicomial de objetificação e custódia para a ideologia de relação humana agora mais horizontalizada.

Em termos práticos, falamos, portanto, da necessidade da construção de espaços de convivência e coletivização que sustentem a relação com a diferença e que evidenciem que essa exclusão tem caráter classista, racializado e generificado, ou seja, que a exclusão vem da constatação de uma sociedade de classes e não de um suposto diagnóstico individual que patologiza subjetividades e posições sociais. 

Para que expressemos esse caráter revolucionário que a construção basagliana demonstra, necessitamos formar profissionais de saúde capazes de resistir a normatividade que o sistema capitalista impõe. A Escola Tamuya de Formação Popular, através do desenvolvimento de cursos, oficinas e propostas que radicalizem a relação dos conceitos clínicos com a materialidade do dia a dia, visa que essa construção seja possível para que, então, aquele que Marx denominou como “novo homem”, contido também na proposta basagliana, possa advir.

Fonte: Outra Saúde / Foto: Parque de San Giovanni, antes conhecido como Hospício de Trieste. Uma instituição “desmanicomializada” por Franco Basaglia

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