Um Café com Muriçoca sobre tretas, enchentes e luta de classes
“Por isso que eu só dou risada e concordo bastante, quando alguém me diz que quer ir chorar em Paris, porque isso realizaria o sonho de toda pessoa colonizada que, segundo Franz Fanon disse, não exatamente com essas palavras, é: “comer a mulher – e o homem – do colonizador, dormir na sua cama, tomar sua cerveja cara e chorar na sua Paris”. E quando se diz isso, no fundo, estamos dizendo que nos cansamos.”
Há alguns anos, a literatura levou uma amiga à Europa e ela, como sempre muito sorridente, postou uma foto com a Torre Eiffel ao fundo e a seguinte legenda: “Paris fede, mas é linda”.
Aquilo me deu um estalo: São Paulo também fede e, a depender do point, também pode ser muito linda! Por exemplo, às margens do Rio Pinheiros fede e, não sei vocês, mas eu acho bem bonito.
O centro da cidade, com seus rios soterrados, fede. Mas ainda é bem bonito.
O Parque Ibirapuera não fede. Mas é lindo.
A minha quebrada fede, mas a gente é tudo linda.
A causa do mal cheiro, aqui em Savério City, é o Córrego São Francisco que, cercado de palafitas urbanas, corre sujo, esgotado. Quando eu era criança, conseguíamos prever a iminência da chuva pelo cheiro da tromba d’água (cheiro de terra vermelha) que tomava o ar minutos antes da enchente.
Hoje já não percebo mais essa sutileza – não sei se é porque moro a alguns metros a mais de distância, ou se perdi, com a idade, o olfato fino, e dependo agora de acessar serviços de metereologia e da Defesa Civil pra saber se a favela vai estar transitável ou se há riscos de desabamento.
Diz que, em 1910, uma grande enchente inundou Paris, paralisando, por meses, serviços essenciais, como o metrô, a distribuição de água, gás e energia elétrica. Livros também entraram na conta: dizem que na Rua Jacob, famosa pelas suas livrarias, milhares de títulos se afogaram e eram vistos boiando, como boiam os automóveis hoje, só que às centenas.
Assim, também neste ponto, Paris é como meu bairro, que é como o resto da São Paulo: inunda e fede.
Outro dia precisei ir a São Bernardo do Campo, cidade que está a duas ruas distância do meu endereço, mas, dependendo do destino, fica muito complicado de chegar, porque é longe demais pra ir a pé e não tem transporte coletivo nos interligando, então chamei um carro de aplicativo.
Depois de esperar quase meia hora, até que um coração valente (sem medo do meu bairro) me aceitasse, fui olhar o perfil do motô, na expectativa de me inspirar a escrever uma mensagem que diminuísse as chances de que também ele me cancelasse a corrida. Daí uma coisa me chamou a atenção: embaixo da foto e do nome no perfil do moço, estava escrito que seu “grande sonho é sustentar a família”.
Tenho visto que essa frase, com variações, aparece por baixo do nome, por baixo da pele – como tatuagens internas – de muitas pessoas trabalhadoras em seus perfis profissionais e faz pensar no longo caminho que ainda temos que percorrer para que nossos sonhos ultrapassem o nível da sobrevivência física.
Por isso que eu só dou risada e concordo bastante, quando alguém me diz que quer ir chorar em Paris, porque isso realizaria o sonho de toda pessoa colonizada que, segundo Franz Fanon disse, não exatamente com essas palavras, é: “comer a mulher – e o homem – do colonizador, dormir na sua cama, tomar sua cerveja cara e chorar na sua Paris”. E quando se diz isso, no fundo, estamos dizendo que nos cansamos.
Porque, sim, gente, faz diferença a geografia do nosso sofrimento. Uma coisa é ficar de luto em Paris, bebendo champanhe e sentindo o fedor do Sena. Outra coisa é ficar de luto no Savério, bebendo corote, com os vermes no encalço, sem grana pra um velório decente e, muitas vezes, sem comida pra botar no barraco.
Uma coisa é tretar em Paris, como fez Djamila Ribeiro contra Andrezza Delgado, militante do Capão Redondo, quando deu a entender que a luta anti-cárcere era “coisa de branco” e mandou “beijos, de Paris” pra nossa vizinha de quebrada, em 2019… Ou, como fez Ciro Gomes depois de perder as eleições de 2018, que pegou o primeiro vôo pra lá e ir foi chorar suas pitangas.
Quando dizemos essas coisas, não estamos só reproduzindo um pensamento capitalista colonialista, estamos dizendo que, apesar de ricos e pobres sofrerem, pois esta é uma condição da nossa humanidade, reconhecemos que nem na dor estamos quites. Estamos dizendo que os privilégios da classe, ou sua ausência, modulam o sonho e o sofrimento humano.
Se não fosse pobre, o motorista que me atendeu poderia sonhar com ser médico, astronauta, escritor, biólogo marinho, dançarino, ator, viajante, malabarista, mas não… seu grande sonho é sobreviver pra sustentar a família – seu sonho é ter o que comer, vestir, calçar e morar – coisas que as enchentes têm o dom de destruir, mas a grana tem o poder de renovar.
Meu amigo motô não sonha com revolução nem com políticas públicas. Não. Quando tá feliz, ele sonha em trabalhar e sustentar sua família. Quando triste, sonha em ter grana para chorar e tratar em Paris.
Fonte: Jornalistas Livres