Paulo Amarante reflete sobre a “grande falta social”

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Paulo Amarante em entrevista a Andréa Vilhena, no CEE/Fiocruz

Um dos pioneiros da luta antimanicominal no Brasil, o pesquisador da Fiocruz Paulo Amarante, em entrevista ao blog do CEE, fala sobre o crescimento de ataques violentos às escolas brasileiras, analisando alguns aspectos de nossa sociedade que podem contribuir para o sofrimento psíquico da população. ” É preciso mudar a forma de lidar com os jovens e as crianças”, defende, ressaltando que “as escolas são modelos superados de organização disciplinar que precisam ser atualizados”. Essa modernização implica, em sua visão, a incorporação inevitável das novas tecnologias digitais, assim como reflexões sobre a ética na qual deve orientar seu uso, para o estabelecimento de novos princípios e padrões de convívio social.

O individualismo exacerbado e a busca exagerada por reconhecimento, também, são questões que o preocupam. “Vivemos uma grande falta social que é esse lugar inalcançável de uma felicidade que ninguém está encontrando”, constata, ao refletir a respeito da construção da subjetividade e da concepção ocidental sobre saúde mental.

Crítico da forma como a Psiquiatria vem patologizando experiências de vida e medicalizando sofrimentos psíquicos, muitas vezes causados pelo “apagamento e a invisibilidade social” no contexto de hiperliberalismo, Amarante vê nas experiências coletivas de práticas culturais e esportivas uma alternativa para estimular o bem-estar social. A promoção à saúde, em sua avaliação, não pode se resumir às idas do paciente ao Centro de Saúde. “É preciso saber identificar os recursos da comunidade e do território”, diz, ressaltando a importância de se reforçarem estratégias de saúde que estimulem a interação das pessoas. “Quantas doenças realmente psíquicas, transtornos mentais ou outras físicas poderiam ser minimizadas, evitadas e tratadas com práticas culturais ou ajudando as pessoas a criar outros objetivos na vida?”, questiona.

Ao falar do emprego da Inteligência Artificial na Atenção Primária, Amarante afirma que, embora não seja contrário ao avanço da incorporação das novas tecnologias na Saúde, considera insubstituível o verdadeiro contato humano. “As máquinas podem reproduzir as emoções, os entendimentos, as compreensões humanas, mas nunca serão a própria experiência humana”, diz. 

Por fim, ele aborda o debate relacionado à edição, em 2023, da Resolução 487, pelo Conselho Nacional de Justiça, instituindo a Política Antimanicomial do Poder Judiciário.  Após mais de vinte anos da criação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216), a Resolução busca sua aplicação quanto ao procedimento judicial ou investigatório de pessoas com transtorno mental, que implicará no fechamento dos antigos manicômios judiciais e na substituição do tratamento realizado nesses locais por outros não asilares.

Presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz), Amarante iniciou em maio mais uma edição do curso sobre de especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, que coordena com a pesquisadora Leandra Brasil da Cruz. Entre outros objetivos, o curso busca oferecer uma reflexão da saúde mental a partir dos paradigmas propostos pela Reforma Psiquiátrica e Saúde Coletiva.

Leia a entrevista a seguir.

Que aspectos estruturais da nossa sociedade têm repercutido negativamente na saúde mental da população brasileira? Concorda com a análise de que estamos em uma sociedade adoecida?

O termo saúde mental vem sendo naturalizado e generalizado de uma maneira perigosa, e isso me preocupa. A saúde mental pode ser pensada como mais um campo da área da saúde, assim como a saúde oral, a saúde da criança, a da mulher e a física. Mas nenhum desses outros campos tem uma aproximação e possibilita uma analogia à saúde mental, na medida em que não existe um órgão humano exclusivo responsável pela mente, embora o cérebro seja a base de todo o pensamento. Sabemos que há algo que transcende a base material. Essa é a grande questão da Psiquiatria, da Psicologia, da Psicanálise, que se amplia para as outras áreas do conhecimento sobre a experiência humana: Sociologia, Antropologia e a cultura. A construção da subjetividade não depende exclusivamente do cérebro. Isso tem sido um dos desafios das ciências, das neurociências, das ciências biomédicas: até onde vai a possibilidade de pensar o subjetivo a partir do cérebro? Tenho uma visão crítica em relação a isso. Muitos materiais de divulgação sobre eventos de Psicologia, por exemplo, fazem referência à mente, ao cérebro, induzindo a pensar que o problema da saúde mental é o cérebro. Se pensarmos a Biologia a partir dos novos biólogos, os biólogos da complexidade –­ Humberto Maturana, Francisco Varela –, vemos que a Biologia não é isso, não é esse aspecto orgânico exclusivamente. A Biologia é uma das ciências que funda o chamado campo epistemológico da complexidade dentro da simultaneidade das inter-relações, da multifatorialidade.

De que forma podemos pensar, então, a saúde mental?

Uma outra forma de se pensar à saúde mental está associada à noção do bem-estar, com base em um conceito ampliado de saúde mental, como estado psíquico – que a OMS diz não ser somente psíquico, mas biopsicossocial também, e não ser só ausência de doença, de enfermidade, mas o equilíbrio. É o equilíbrio biopsicossocial e espiritual, como um estado ontológico do bem-estar, do estar em comunhão consigo mesmo. A concepção ocidental sobre a saúde mental está sempre muito relacionada à própria pessoa. Fala-se: ‘a minha saúde mental’. Nas populações originárias, indígenas, se fala na relação com o coletivo, com a Pachamama, com a natureza. Por isso essa minha crítica ao termo saúde mental sendo utilizado como sinônimo, no cotidiano, de determinado bem-estar psicológico, um estado psíquico, espiritual, de falta de sofrimento. Temos que pensar o quanto dessas questões, relacionadas ao bem-estar, à condição de uma experiência de vida que não seja de sofrimento, estão associadas, também, a outras condições sociais, culturais e de vida.

O individualismo exacerbado e a busca exagerada por reconhecimento em nossa sociedade são questões que me causam grande preocupação. Até mesmo o bem-estar da coletividade é pensado como se fosse o conjunto de pessoas em bem-estar e não de construção de objetivos coletivos que sejam compartilhados e construídos coletivamente.

Vivemos uma grande falta social que é esse lugar inalcançável de uma felicidade que ninguém está encontrando. Não basta ter muito dinheiro. Vemos artistas famosos se matando, sofrendo, se entregando de maneira abusiva e inadequada ao uso de medicamentos, drogas lícitas e lícitas. Então, onde está esse lugar de perfeição, de bem-estar? Teríamos que pensar nisso. Qual seria o caminho? Pensar mais no coletivo de maneira menos individualista para construirmos uma sociedade menos adoecida, quando se coloca esse termo entre aspas.

[Sociedade adoecida] não no sentido de ter mais doença, mas por ser mais sofrida pela falta de solidariedade, construção coletiva, cooperativismo, empatia e compaixão, como dizem determinados pensamentos teológicos. E pela dificuldade em pensar mais no outro, não somente o outro que está ali, mas pensar nesse grande outro, no sujeito da sociedade.

Acho que essa é uma questão a ser problematizada tanto pelo campo profissional da área de saúde como por outras áreas. Quando falamos em pensar na saúde da comunidade, não nos referimos ao conjunto de pessoas bem tratadas medicamente, mas pensar no bem-estar coletivo. [Precisamos] pensar isso na Filosofia, na Educação, na arte, na cultura, na comunicação e nas políticas de estado.

Em sua avaliação, a miséria tem um peso no adoecimento mental?

Sim, principalmente, como se diz na Filosofia, a miséria humana, que é a falta de objetivo e de reconhecimento.

E a miséria da pessoa desvalida, que está passando fome?

Claro, essa também. Porque a fome é desnutrição, carência vitamínica, carência proteica, dor. Mas essa miséria não leva necessariamente ao adoecimento mental, a não ser que se tenha, aí sim, uma explicação biológica, pela falta de proteína.

E quando a pessoa perde tudo: casa, suas referências, documentos e sua identidade propriamente dita,  transformando-se em um ‘outsider’ na sociedade?

É essa a ideia da desfiliação da qual o sociólogo Robert Castel e a psiquiatra inglesa  Joanna Moncrieff, do movimento da Psiquiatria Crítica, falam, ao se referirem à miséria humana, à pessoa que perde a visibilidade e não é mais vista inclusive fisicamente. Cada vez mais as pessoas se habituam a só olhar para si próprias, para os seus interesses e seus objetivos, e deixam de ver o outro.  Isso implica sofrimentos variados

A pior miséria é não ser visto como sujeito, como pessoa. É a falta de ser visto. Muitas pessoas passam na rua e não veem a miséria. É como se miserável não tivesse visibilidade.

É claro que a miséria econômica, da falta de direito, de formação, de trabalho etc. pode contribuir para esse adoecimento, mas existem outros fatores também. Vemos, por exemplo, a importância da liberdade para os prisioneiros de regimes políticos autoritários. Para eles, a falta de liberdade está menos relacionada ao espaço físico a que estão confinados, e mais à liberdade espiritual de continuar pensando o que se pensava e acreditando no que se acreditava.

Pode haver pessoas pobres no sentido econômico e mais felizes. Isso não é romantismo, não é imagem de retórica, é real, porque elas estão muito menos preocupadas com a capacidade de ter. Estão mais preocupadas com a alimentação, com o imediato, e não tem essa gana do acúmulo inalcançável.

Há pessoas que sofrem demais com isso, a falta do ter, do ter mais, do acúmulo. Uma vez me sugeriram que essa ganância econômica seria também um transtorno. Penso que não, acho que ganância é ganância. Avareza é avareza. Existem até outras formas de nomear isso na cultura, na religião, na Filosofia, mas nós não devemos patologizar os comportamentos.

Em sua avaliação, os ataques violentos às escolas que aconteceram, de forma intensa no mês de abril em vários locais e nesse mês de junho novamente, numa escola no Paraná, são reflexo dessa estrutura adoecida da sociedade? Digo adoecida no sentido de uma sociedade sem esse pensamento voltado para o bem-estar coletivo?

Acho que sim. Eu me lembro daquele ataque que aconteceu numa escola em Realengo, (bairro localizado na Zona Oeste do Rio, em 2021). Na época, dei entrevista ao jornal O Globo falando de o quanto nossa sociedade está desvalorizando a vida humana, a formação humana, no sentido da Filosofia, inclusive. Emir Sader utilizava muito esse conceito da construção do humano, da humanitude, da hominitude. Tem várias expressões. Albert Jacquard falava em homitude, essa possibilidade do ser humano de tomar consciência de si, da existência, das questões da vida, do futuro, de um projeto social coletivo. Nós estamos perdendo isso. Então, cada vez mais, vemos essa violência estrutural do não reconhecimento do outro, do chegar primeiro, da farinha pouca, meu pirão primeiro. Tudo o que está presente nas instituições, na ausência das políticas públicas protetivas, nas comunidades carentes; na violência; nas operações de extermínio e invasão de territórios. Essas práticas acabam passando uma visão ambígua para as crianças e os jovens, que aprendem desde cedo que a vida não vale nada.

Tanto nos Estados Unidos como aqui, é curioso que os ataques sejam em escolas, que são locais de formação, onde deveriam reverberar as práticas de solidariedade, reconhecimento, reciprocidade, coletividade e coletivismo.

Acho simbólico que locais de cultura, como teatros e cinemas, e locais de formação pedagógica sejam os escolhidos para essas práticas de violência, embora haja outros lugares onde talvez o número de vítimas fosse maior pela concentração de pessoas. Há um certo efeito nisso, mostrando a contradição da sociedade; sociedade que está formando cada vez mais gente, com uma escola construída e mantida em um modelo de educação absolutamente arcaico, enquanto está sendo transmitida como mensagem a disputa, o individualismo, do grupo do vencedor versus o perdedor.  

Em sua avaliação, que políticas públicas no campo da saúde podem ser pensadas para o enfrentamento dessa situação e como a Atenção Primária poderia contribuir?

Com políticas públicas que pensem a saúde não como tratamento de doença, mas como qualidade, defesa e promoção da vida. Poderíamos ter ações, algumas vezes, pontuais, direcionadas a uma ou outra enfermidade, mas fundamentalmente temos que ter ações de proteção da vida. Isso implica educação, instituições qualificadas de formação da cidadania, formação de sujeitos, de direitos, de políticas de segurança, de seguridade e de cultura. Fizemos um trabalho aqui na comunidade de Manguinhos tentando saber como os moradores passaram o período da pandemia, as dificuldades que tiveram e como encontraram soluções para lidar com elas, mas não sugerimos a expressão saúde mental, embora eu seja psiquiatra e a pesquisa estivesse sendo feita pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Labs/Fiocruz), em cooperação com a FGV e a Queen Mary University of London. Ficamos surpresos com as experiências de organização coletiva que davam estrutura às pessoas, praticando o autocuidado, a solidariedade e ajuda mútua. Os resultados dessa pesquisa com o mapeamento dessas iniciativas, voltadas para arte e cultura, foram depois reunidos no catálogo Estratégias culturais em Manguinhos: Olhares sobre o cuidado em saúde mental e o protagonismo de moradores de favelas, publicado em outubro de 2022. Esse trabalho mostrou que é possível falar de sofrimento, dor, ausência, falta, de outra forma que não seja por essa antinomia doença e saúde.

Muito interessante ver iniciativas como o Balé de Manguinhos, criado e dirigido pela bailarina e coreógrafa Daiana Ferreira, que absurdamente faleceu aos 32 anos de Covid no quintal da Fiocruz, local de produção de vacinas, porque havia uma visão do governo (da época) contrária, que negava a pandemia, negava a vacina, negava as pessoas. Aquelas crianças, que, na maior parte das vezes, não eram vistas como sujeitos pela sociedade, puderam ser cuidadas de outra maneira. O Balé de Manguinhos ofereceu a elas outra vivência, radicalmente diferente da violência experimentada no dia a dia. Temos que pensar, também, em oferecer práticas esportivas. Em São Paulo, há um projeto chamado Copa da Inclusão, realizado no campo da saúde mental, no contexto da reforma psiquiátrica, que mudou a vida de pessoas.

Há, também, a experiência com blocos de Carnaval que mudaram vidas. Conheci pessoas que eram loucas de hospício e que estão aí nos blocos cantando, dançando, fazendo fantasias. Tem uma indústria cultural criativa que funciona o ano inteiro. As oficinas dos Caps, em vez de continuar naquela linha antiga do trabalho terapêutico, produzindo, por exemplo, cinzeiros, poderiam fazer as fantasias que são definidas a cada ano de acordo com o tema do bloco, que, por sua vez, é definido a partir de todo um movimento social. É uma oportunidade para se pensar como essa produção tem a ver com a vida, a história e os problemas da comunidade e as questões que vão surgindo, como a pandemia. Tudo se transforma em objeto de discussão. Uma música sobre a própria reforma psiquiátrica dizia: “Doutor, eu estou em obras. A obra é a Reforma Psiquiátrica”.

O Brasil já chegou a ter políticas com esse olhar, não?

O Gilberto Gil, quando foi ministro da Cultura, vislumbrou o futuro com os Pontos de Cultura e o programa Cultura Viva. Com a ideia de que a cultura não precisa acontecer só no Theatro Municipal, por exemplo, aquele teatro modelo europeu. Está na comunidade, onde as pessoas se encontram para dançar, cantar, bordar, cozinhar. Esses Pontos de Cultura se autoinventaram e resistem até hoje, mesmo com a pandemia e os desastres políticos que tivemos nos governos posteriores.

Então, resumindo, podemos pensar em políticas de cultura e educação de uma maneira em geral, não apenas na educação formal – de matemática e português –, mas de produção de direito, cidadania, reconhecimento, pensamento crítico, e esportes. É preciso mudar a forma de lidar com os jovens e as crianças e transformar as escolas. Infelizmente o projeto dos Cieps, de Darcy Ribeiro, um visionário da Educação, foi abandonado.

A promoção à saúde não pode se resumir ao Centro de Saúde, por melhor que este seja, com o melhor médico, a melhor equipe de Atenção Primária. É preciso saber identificar os recursos da comunidade, do território. Reforçar, reinventar com a comunidade as estratégias de saúde no sentido geral: com capoeira, maracatu, samba, dança circular, por exemplo. Quantas coisas têm numa comunidade que não são vistas, pois não estão no projeto de saúde focado em tratar doenças e não em estimular a saúde nesse sentido mais amplo? Quantas doenças realmente psíquicas, transtornos mentais ou outras físicas poderiam ser minimizadas, evitadas e tratadas com práticas culturais ou ajudando as pessoas a criar outros objetivos na vida?

De que forma essas iniciativas incidem sobre a saúde mental?

Eu me lembro do caso de um médico de um centro de saúde em Atenção Primária de Campinas, que resolveu mudar sua forma de atendimento porque estava insatisfeito com o fato de não conseguir controlar a hipertensão e a diabete dos pacientes. Embora renovasse a medicação, assim como a prescrição de dieta de gordura e açúcar e a recomendação para caminhada, a situação deles não apontava para uma melhora do quadro. Então, ele propôs passar a fazer consultas peripatéticas, andando e conversando com esses pacientes. A partir daí, os resultados mudaram! Essa e outras experiências na Atenção Primária nos fazem refletir sobre o que faltava para aquelas pessoas. O problema delas estaria na comida, nos determinantes sociais, como a OMS mesmo pensa, ou estaria numa determinação social mais ampla?

Assim como essa, temos outras experiências importantes no Brasil, como a de promover oficinas coletivas. A pessoa para de se apresentar como alguém com transtorno, “eu sou isso, sou aquilo”, e começa a criar outros objetivos. Acho que é um caminho. Se não, vamos ficar prescrevendo remédio antidepressivo e enxugando gelo. Não só enxugando gelo, mas, talvez, provocando sérias consequências. A dependência química a essas substâncias, hoje, é um dos problemas mais graves na saúde pública.

Como avalia, atualmente, a rede de atenção psicossocial no SUS? Você considera adequada a qualificação do pessoal? De que forma isso poderia ser melhorado para atender às novas demandas que se impõem no cenário atual da saúde mental?

Não sou a melhor pessoa para falar disso, porque sou crítico a esse respeito há muitos anos. No dia 18 de maio deste ano, Dia da Luta de Antimanicomial, tivemos a aula inaugural do 41º ano do curso de especialização em saúde mental. Esse curso da Fiocruz foi pioneiro no Brasil na formação voltada à Reforma Psiquiátrica. Além dos 41cursos no Rio de Janeiro, fizemos edições simultaneamente em outros locais que têm unidades da Fiocruz, como Manaus e Campo Grande, ou em que tínhamos convênio firmado com as secretarias de Saúde. Já passamos de 70 cursos e curiosamente tivemos pouco apoio do Ministério da Saúde durante esse período, porque tínhamos que formar um profissional crítico que entendesse os elementos e debates envolvidos no campo da saúde mental.

Não era uma questão de formação em tratamento de enfermidade e doença, nem de forma e de organização de serviço de maneira burocrática e tecnocrática. Tínhamos que ter uma formação comunicativa, colocar as pessoas como protagonistas de um processo de transformação. Vejo o reconhecimento de ex-alunos que montaram cursos no Brasil a fora e em outros países. Hoje são autores, pesquisadores e, também, formadores.

Sempre fui contra essa ideia de manual do Caps. O que a atenção psicossocial pretende, em oposição à atenção manicomial tradicional, medicalizante, assistencialista, curativista? O que se vai curar, se não se sabe o que está sendo curado? O que se pretende tratar, se não se sabe o que está se tratando? Se o profissional tem mais consciência das suas limitações, de suas reflexões críticas, torna-se menos intervencionista.  No lugar do penso logo existo, de Descartes, fica o penso logo hesito, de Foucault. Se se hesitasse mais, não teriam sido colocadas tantas pessoas nos manicômios durante trinta, quarenta, cinquenta, sessenta anos. No ano passado, saiu um interno da Colônia Juliano Moreira que passou sessenta anos internado. Que instituição é essa que trata alguém dessa forma? Quantas pessoas sofreram lobotomia, malarioterapia, eletroconvulsoterapias e outras terapias violentas invasivas?

Outras foram abandonadas como no manicômio em Barbacena…

Sim, abandonadas. Barbacena e Juquery, que chegou a ter cerca de 20 mil pessoas. Houve uma época em Juquery, em que todas as pessoas, quando entravam, tinham a cabeça raspada e os dentes arrancados. Isso está registrado no filme Juquery, lugar fora do mundo, lançado pela Globo News e premiado em Nova Iorque. Tudo isso aconteceu em nome da normalidade. O que propomos é escutar mais a pessoa, incorporar mais a sua experiência. Se ela ouve vozes, é preciso entender que vozes são essas e que significado tem essas vozes na vida dela. Essa foi a nossa formação.

Nós sempre tivemos uma formação crítica na Fundação Oswaldo Cruz, lugar de pioneirismo e de protagonismo na formação em saúde mental. Por outro lado, sempre estivemos meio à margem, mesmo dentro da Fiocruz. Assim, eu me considero um sobrevivente dessa política institucional. Nesse sentido, também, tenho uma visão crítica.

O que teria sido necessário fazer?

Deveríamos ter investido mais no SUS, mais na rede de atenção psicossocial, criando mais Caps; investido mais nas redes de cultura, saúde e economia solidária. Deveria haver mais espaços para a convivência e cultura nos parques públicos e bairros, seguindo o modelo inovador paulista, implementado no governo Erundina a partir de 1989 – os Centros de Convivência e Cooperativa da Secretaria de Saúde do Município de São Paulo (CECCO). Ter mais iniciativas como o Coral Cênico Cidadãos Cantantes, um projeto lindo, que foi um desdobramento desses Centros, e que já tem trinta anos. Enfim, fechar mais manicômio e abrir mais Caps.

O modelo que está aí é insuficiente. Temos que considerar as estratégias culturais, laborativas e outras estratégias tão fundamentais quanto ou algumas vezes até mais, deslocarmos o olhar. Sabemos que esse chamado sofrimento humano não tem uma explicação exclusivamente psiquiátrica ou psicológica no sentido restrito e sim uma explicação mais ampla. O psicossocial também não dá conta, é uma questão filosófica essa perda de lugar, essa falta, questões às vezes relacionadas à cultura, à forma de estar no mundo. Antonin Artaud falava sobre isso: os inumeráveis estados do ser. Falar da experiência humana é como falar do universo, nós não sabemos o tamanho, a dimensão. Como calculamos o número de estrelas, de galáxias, se o universo é infinito? O mesmo acontece com a mente humana, as experiências humanas.

Acho que a rede é insuficiente em termos de quantidade, é insuficiente em termos de qualidade, pois se restringiu muito a serviços de saúde mental, atenção psicossocial e terapêutica e investiu muito pouco na estratégia de arte, cultura, trabalho e transformação social. Por outro lado, também investiu pouco na formação crítica dos profissionais. O nosso curso, que existe desde 1982, ficou como uma certa referência de resistência a isso. Lembro que, em 2004, o Ministério convocou todos os cursos do Brasil, menos o nosso, para um seminário sobre formação em saúde mental. Isso foi bastante simbólico. Nós fomos excluídos porque éramos considerados influência ruim. Isso aconteceu na época que lançaram a publicação Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial, voltada a gestores, trabalhadores de saúde usuários do SUS.

Que críticas tinha ao manual?

Penso que esse manual tem que ter bases e princípios sobre o que seja a atenção psicossocial e o que ela quer romper e criar, para que as pessoas possam, a partir daí, inventar o novo. Fui contrário quando saíram as portarias CAPS 1, 2 e 3, e obrigou-se a definir um diagnóstico para ser atendido no Caps. Um diagnóstico psiquiátrico é uma marca na vida de uma pessoa. Por que alguém, com sofrimento em uma situação de desconforto mental, de mal-estar, passando por uma experiência ruim na vida, precisa de um diagnóstico? Ela não pode chegar no local e falar? Você precisa de diagnóstico para ser atendido por um psicanalista, por um psicólogo? Não. Nem por um psiquiatra.

O termo transtorno foi tão apropriado pela Psiquiatria tradicional que, quando se fala nele, se pensa logo em distúrbio psiquiátrico. Aconteceu a mesma coisa com a palavra depressão. Ninguém fala mais em depressão que não automática e inconscientemente se pense em doença.

O que está acontecendo é que a Psiquiatria com base no financiamento, laboratórios, formação de profissionais, propaganda da mídia, está alargando esse conceito de depressão, patologizando experiências de vida. Há pouco tempo saiu uma notícia falando do aumento dos casos de depressão no mundo. Escrevi uma notinha dizendo que aumentaram os diagnósticos de depressão. Pessoas sem identificação, sem reconhecimento social, reconhecimento eu uso muito no sentido filosófico de Axel Honneth [filósofo e sociólogo alemão que estudou a importância das relações intersubjetivas de reconhecimento para o entendimento das relações sociais]de ser visto pelo outro como um sujeito. O apagamento e a invisibilidade social causam muito sofrimento.

A pessoa perde o emprego e se sente deslocado na sociedade

Perde o emprego e começa a achar que perdeu o emprego porque tem algo errado com ela. Não consegue perceber que o aumento do desemprego faz parte de um contexto de hiperliberalismo e diminuição do Estado, do número de postos de trabalho e do próprio emprego de mão de obra numa economia cada vez mais mecanizada e digitalizada.

Estão dizendo que a inteligência artificial vai acabar até com o próprio emprego dos programadores. Claro que não totalmente, mas vai reduzir cada vez mais. Dizem, também, que o Uber será conduzido por carro sem motorista, que as cirurgias serão cada vez mais operadas por robôs. Isso tudo implica diminuição de pessoal.

Diante de todo esse contexto, penso que a rede psicossocial do SUS deveria receber mais investimento. No caso da Atenção Primária, não sou contrário à digitalização no atendimento, à telessaúde e tudo mais que envolve o avanço das novas tecnologias, mas tenho uma visão crítica sobre tudo isso. Acho que nada substitui o verdadeiro contato humano, o olhar. As máquinas podem reproduzir as emoções, os entendimentos, as compreensões humanas, mas nunca serão a própria experiência humana.

A internet possibilita, por meio de suas redes, ampliar a conexão entre as pessoas, mas por outro lado tem provocado, também, um aumento do isolamento social dos jovens. A falta de interação presencial nas relações pode ser considerado um fator de risco para o desenvolvimento emocional desses jovens? O que deve ser observado e enfatizado no cuidado à saúde mental dos jovens hoje?

Essa é uma realidade muito complexa. Não temos como deixar de reconhecer que as novas tecnologias digitais vieram para ficar e sua utilização vai crescer. Então é necessário que a sociedade como um todo, Estado, entidades, formadores de opinião e formadores do próprio tecido social, reflita sobre seus limites da mesma forma que para o uso de armas, substâncias químicas e medicamentos.

As escolas são modelos superados de organização disciplinar, instituições normalizadoras que surgiram há mais de duzentos anos. Elas precisam ser atualizadas. É um absurdo que uma criança, que fica no celular desde os dois anos, chegue à escola com uma precariedade enorme e se espere que ela fique prestando atenção na professora. As escolas têm que incorporar as novas tecnologias, assim como reflexões sobre a ética de seu uso. O jovem, desde sua formação, tem que entender esse novo contexto social das mídias e seus limites, se conscientizando das consequências que pode haver, por exemplo, para uma postagem de assédio, de desrespeito ou de violência. Da mesma forma que uma carta em papel, a publicação na internet vale como um documento, mas sua divulgação é muito mais ampliada. Esse aprendizado é importante para se construírem outros princípios e padrões de convívio social.

Já está se falando de numa nova declaração dos direitos humanos do homem digital, em outro princípio ético da relação com a sociedade. A ética muda de acordo com a cultura, com as épocas.

Esse convívio em rede pode substituir o convívio presencial?

Acho que não substitui, mas o convívio em rede é inevitável. Então, nós vamos ter que criar outras formas de convívio. Não se trata de uma questão de saudosismo, de negação, mas de como regular e como incorporar esses novos paradigmas. Por exemplo, eu tenho muita dificuldade com o menu por QR Code nos restaurantes. Acho que é um direito de acessibilidade que os restaurantes ofereçam a seus clientes um cardápio em papel com letras grandes. Se estou em um restaurante, querendo almoçar com uma pessoa e abro o celular, acabo vendo que recebi mensagens e estabeleço um apego à rede. Então o ideal é desligar o aparelho ou virá-lo de cabeça para baixo, se quero interagir com a pessoa ao lado.

Mas o emprego dessas novas tecnologias digitais é inevitável. Estamos construindo uma nova experiência humana com a era digital, que mudam as relações humanas. Não é o caso de negar, de resistir, mas de construir essa nova forma de se relacionar com todas essas inovações. Nós não podemos ser apenas reféns do mercado e do avanço tecnológico. Essa uma das questões que está sendo pensada pelos filósofos. O pessoal da inteligência artificial está recuando, sinalizando que seu uso não pode ficar somente entregue ao mercado. É o caso do Twitter e de redes como o Telegram. É preciso pensar na ética social. Não dá para postar, por exemplo, cenas de violência sexual.

Você é a favor que haja um controle do Estado sobre as plataformas digitais, em prol da saúde mental de qualidade?

Eu sou a favor do controle social em prol do bem-estar da sociedade. Por isso sempre falo que a saúde mental é o bem-estar social, o interesse comum, o que interessa ao coletivo, à sociedade, para que ela se preserve. Se não houver esse controle, viveremos a barbárie, as crianças sendo estimuladas ao suicídio e a autoflagelação, pela internet.

O filósofo coreano Byung-Chul Han, em seu livro ‘Burnout Society’, diz que vivemos em uma sociedade do cansaço, na qual as doenças neuronais, como a Síndrome de Burnout, “determinam a paisagem patológica do começo do século XXI”. Ele relaciona essa síndrome a uma busca incessante pelo alto desempenho no mundo do trabalho. Em sua avaliação, é possível traçar um paralelo entre essa busca pelo alto desempenho e as métricas competitivas que regem atualmente nossas práticas educacionais? Essa forma de pensar a educação, mais baseada no desempenho do jovem do que em seu acolhimento, pode estar contribuindo para a violência nas escolas?

É uma característica social preocupante essa busca pelo aumento da produtividade, essa busca do individualismo, da superação do outro. A sociedade americana usa muito a figura do vencedor versus o perdedor.

Essa ideia da farinha pouca, meu pirão primeiro, de sempre o interesse pessoal estar acima dos demais, leva a pessoa a acabar vendo o outro como inimigo. As pessoas hoje se matam por vaga de carro, por time de futebol, por religião. Antes também, mas agora isso está aumentando. É uma deterioração da qualidade da vida humana, no sentido mais amplo. Acho que teríamos que voltar a discutir a ideia de ética, de sociabilidade.

É por isso que defendo as várias práticas de cultura, principalmente as coletivas, os esportes que envolvem equipe, a formação de orquestra, banda de música. No começo dos anos 80, logo no início do curso, levei para trabalhar comigo, no Engenho de Dentro, um professor de Educação Física chamado Odir e tive problema com o Conselho de Medicina, porque ele não era médico. Considerava seu trabalho muito importante, pois ele não só criava práticas coletivas – organizar partida de vôlei e de futebol –, como criava, também, brincadeiras que incentivavam a comunicação e a interação. O nome da quadra era o nome do compositor Torquato Neto, que tinha sido internado lá.

Em 2023, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 487, que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelece procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com deficiência e a Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei10.216). Com isso a lei deverá ser aplicada inclusive nos hospitais de tratamento e custódia, os HCTP, que são os antigos manicômios judiciais, implicando dessa forma no fechamento desses locais, com a substituição por outros meios de tratamento não asilares. Como podemos olhar para essa iniciativa?

É claro que isso exige todo um procedimento e regulamentação que permita as pessoas serem desospitalizadas e atendidas fora dos hospitais. Já existem experiências antigas no Brasil, como em Goiás, Minas, Curitiba, Distrito Federal e Recife, pois foi visto que a maior parte das pessoas internadas tinham delitos pequenos e acabavam em prisão perpétua dentro desses manicômios. A esse respeito indico o filme a Casa dos Mortos, da Debora Diniz, um documentário muito bonito, embora muito pesado.

Existem meios de tratamento externos, em Caps, residências assistidas. Há também situações em que a pessoa pode e ser encaminhada para uma instituição penitenciária que tenha assistência médica e hospitalar. Neste caso é diferente de uma instituição hospital psiquiátrico de tratamento e custódia, seria uma instituição penitenciária. São situações muito específicas que devem ser vistas uma a uma.

A questão é que o Conselho Federal de Medicina, puxado pela Associação Brasileira de Psiquiatria, instituição muito conservadora, ideologicamente, tecnicamente e politicamente, além de muito envolvida nos interesses privados nessa área, defende a internação por interesse ideológico e de mercado. Então o CNM está fazendo alarde, com outras entidades médicas, chamando, paradoxalmente, essas pessoas de criminosas e avisando à sociedade que, em breve – como se fosse acontecer de um dia para o outro –, fecharão os hospitais, as unidades de tratamento e custódia e todos os internos sairão. Cerca de 4 mil pessoas irão invadir a sociedade: bandidos, criminosos e estupradores.

Acho muito curioso como os médicos se referem aos pacientes supostamente delituosos, pelo fato de terem tido na ocasião do delito, uma enfermidade mental, quando são pacientes inimputáveis e, por isso, não deveriam ser considerados criminosos naquele sentido pejorativo, e sim pessoas com quadros graves psiquiátricos.

A sociedade psiquiátrica tradicional e algumas entidades médicas, as mesmas que defenderam o kit Covid e a cloroquina, estão contrárias a essa decisão. Já a Associação Brasileira de Saúde Mental e outras associações e profissionais da luta antimanicomial estão defendendo. É a mesma reação de pânico que aconteceu quando a lei da Reforma Psiquiátrica ou lei antimanicomial (lei 10.216/2001) foi aprovada, movida pela ideia de que seria um caos. No entanto, nada disso aconteceu, não aumentou a criminalidade nem a população de rua, por causa dos hospitais psiquiátricos fechados. Ao contrário, as pessoas saem dessas instituições passam a ser cuidadas efetivamente em centros de atenção psicossocial , centros de convivência, ambulatórios e Atenção Primária na saúde. Há vários projetos de inclusão social de arte e cultura. Nosso trabalho com a Associação Nacional de População de Rua é muito bonito e potente, oferecendo atendimento em consultórios na rua, por exemplo.

Estamos assistindo a um debate enviesado por questões ideológicas e por questões de mercado, de visão e de hegemonia do campo da saúde mental. A nossa posição é de defesa. Há alguns anos convidamos, pela Fiocruz, a professora Maria Grazzia Giannichedda para falar na Emerj (Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro) sobre como se deu a desinstitucionalização dos hospitais de tratamento e custódia na Itália, onde a legislação foi tardiamente implantada. Ela falou das dificuldades enfrentadas nesse processo, pois a implantação de qualquer sistema de saúde, independentemente de ser de Psiquiatria ou não, é difícil. devido a questões locais, políticas, culturais e de recursos, e mostrou muitos dos caminhos possíveis.

Quando começamos o processo da Reforma Psiquiátrica, os psiquiatras questionavam como tratar alguém psicótico, que não fosse por internação integral compulsória, em que a pessoa fique totalmente à mercê do tratamento médico. Mas nós mostramos na prática como se faz tratamento territorial com cuidado e liberdade.

Fonte: Outra saúde

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