Veio a público uma nova etapa da pesquisa do sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que identifica os destinatários das primeiras dedicatórias poéticas de Machado de Assis. O estudo tem como foco a Quinta do Livramento, também conhecida como Morro do Livramento, onde o escritor viveu sua infância, no centro do Rio de Janeiro.

A pesquisa faz parte de um conjunto de investigações conduzidas pelo Núcleo de Estudos Paranaenses (NEP) da UFPR, coordenado por Oliveira. Com base em metodologias genealógicas e prosopográficas, o levantamento busca compreender o ambiente social e familiar que influenciou a formação intelectual e literária de Machado, destacando conexões com grupos escravizados, agregados e senhoriais.
Relações sociais no Morro do Livramento influenciaram formação do autor
Segundo os estudos, Machado de Assis nasceu em 1839 em um contexto marcado por grandes contrastes sociais, sendo filho de um pintor de paredes descendente de negros alforriados e de uma imigrante açoriana. O menino Machado cresceu num ambiente de fronteira social, convivendo com a elite e com famílias pobres agregadas aos grandes proprietários.
Essas relações teriam proporcionado padrinhos influentes e acesso precoce à alfabetização, permitindo sua inserção em círculos letrados. O levantamento revela que as primeiras dedicatórias de Machado de Assis, publicadas no jornal Marmota Fluminense entre 1854 e 1855, homenageavam figuras ligadas a esse universo local, até então não identificadas pela historiografia literária.
Genealogia como ferramenta de interpretação literária
Utilizando fontes como a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e registros da Family Search, Oliveira identificou dezenas de nomes relacionados à trajetória de Machado de Assis, cujas conexões ampliam a compreensão de sua obra. Os dados compõem capítulos da obra Família, Política e Etnicidade (Editora Liber Ars), escrita em coautoria com a pesquisadora Mônica Goulart, além de artigos acadêmicos complementares.
Em entrevista, o pesquisador defende que a posição social intermediária de Machado permitiu-lhe desenvolver uma literatura que desnaturalizava as relações sociais. Para ele, a Quinta do Livramento era um microcosmo das contradições brasileiras do século XIX.
“Essa especificidade de ser um filho de agregados, alguém na fronteira social entre dois mundos, faria emergir um pensamento crítico a partir das relações sociais do Livramento”, afirma Oliveira.
Machado de Assis e as críticas sociais na literatura
O professor Luis Goncales Bueno de Camargo, do Departamento de Literatura da UFPR, corrobora a análise sociológica. Segundo ele, mesmo na fase romântica, a literatura machadiana já expunha tensões sociais.
Nas obras como Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), o autor retrata mulheres pobres inseridas em contextos de desigualdade, antecipando os elementos de crítica social que seriam consolidados na fase realista, com destaque para Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899).
“Machado não foi romântico nem realista no sentido estrito. Ele sempre tensionou as formas e os estilos literários vigentes, abordando temas como classe, escravidão e mobilidade social com profundidade singular”, observa Camargo.
Obra poética inicial revela amadurecimento do pensamento crítico
A pesquisa de Oliveira também revela aspectos do início da produção poética de Machado, que mais tarde o autor reuniria em livro. Esses poemas, ainda em fase amadora, já indicam a preocupação do escritor com os afetos e hierarquias sociais, o que aponta para uma consciência literária precoce sobre as estruturas sociais do Brasil oitocentista.
Apesar de a crítica tradicional ter relegado a poesia machadiana a um papel secundário, estudiosos contemporâneos reconhecem a importância desse acervo inicial para a formação do pensamento estético do autor.
Machado de Assis permanece como objeto de estudo transdisciplinar
Mesmo 186 anos após o nascimento de Machado de Assis, sua obra continua a gerar novas interpretações. A pesquisa conduzida por Ricardo Costa de Oliveira reforça a importância do estudo genealógico para a análise literária, ao iluminar a teia de relações que compôs o universo social do autor.
Toda a produção de Machado de Assis encontra-se em domínio público desde 2008, por meio de plataforma digital organizada pelo Ministério da Educação. A nova biografia em produção por Cláudio Soares, com base nas descobertas de Oliveira, promete ampliar ainda mais o conhecimento sobre o autor.
Fonte: Jornal Grande Bahia / Foto: JGB