Pesquisa incluiu experimentos em laboratório com células, animais e amostras de sangue de paciente, e indicou boas perspectivas para a continuidade dos estudos com medicamento que já é aprovado para outros usos
por Fabiana Mariz – Domingo, 23 de outubro de 2022
Arte: Adrielly Kilryann
Experimentos realizados com um medicamento utilizado atualmente como vermífugo (a niclosamida) mostraram que ele tem potencial – ainda a ser confirmado em novas etapas de pesquisa – para reduzir a inflamação exacerbada em pacientes que desenvolvem a forma grave da covid-19. Os resultados preliminares foram publicados recentemente na revista Science Advances.
Os estudos foram feitos no Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (Crid), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) sediado na USP em Ribeirão Preto. Para uma futura aplicação clínica, outras pesquisas precisam ser feitas. A niclosamida tem ação no intestino, onde mata os parasitas, mas tal apresentação do medicamento não serviria para uso na covid. Para aproveitar a ação anti-inflamatória, é necessário pesquisar outras formas de uso, por exemplo, “como transformá-la em spray nasal, qual seria a dosagem correta, entre outras coisas”, explica Letícia de Almeida, biotecnologista e primeira autora do artigo que descreve o estudo. Letícia é pós-doutoranda do Laboratório de Imunidade Inata e Patogênese Microbiana da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, coordenado pelo professor Dario Zamboni, que liderou a pesquisa.
“Os inflamassomas, que são proteínas presentes dentro das células de defesa do nosso organismo, estão muito ativados nos casos graves da covid-19 e a ativação excessiva dessas proteínas piora o quadro dos pacientes e pode levar a óbito”, explica Zamboni. A ativação dos inflamassomas é um dos processos que ativam a tempestade de citocinas, resposta imunológica descontrolada que pode causar prejuízos ao corpo humano.
Inflamassomas
A pesquisa então se voltou à busca por compostos que pudessem combater os inflamassomas, complexo multiproteico intracelular que reconhece patógenos e/ou outros sinais inflamatórios e induz a uma resposta que culmina na produção de citocinas inflamatórias, como IL-1B e IL-18, e pode levar a célula à morte. Eles são um importante mecanismo de combate a infecções, entretanto, quando essa ativação é exacerbada, há um risco grande do desenvolvimento de patologias como autoimunidade, doenças neurodegenerativas, transtornos psiquiátricos, entre outros.
No caso da covid-19, estudos anteriores revelaram uma correlação entre a patologia em estágio avançado e citocinas ligadas à via do inflamassoma, incluindo IL-1β e IL-18. Além disso, o grupo no qual Letícia desenvolve seu pós-doutorado já demonstrou que a infecção por sars-cov-2 desencadeia a ativação do inflamassoma NLRP3 e piora o desfecho clínico de pacientes infectados.
Segundo Zamboni, o sistema imune do paciente com a forma grave da covid-19 entra em um processo inflamatório que não é desativado após o controle da replicação viral; e a desativação da inflamação é o que se espera depois do controle da infecção. “São pacientes que procuram assistência médica e que podem até controlar a infecção pelo sars-cov-2, mas o processo inflamatório continua e pode levar o paciente a óbito”, explica.
Em um trabalho realizado por outro grupo, estudos usando Interleucina 1 (IL-1) recombinante (uma das principais citocinas mediadoras da resposta imune contra invasão bacteriana, inflamação, infecções e lesões teciduais) melhorou clinicamente a maioria dos pacientes, indicando que o inflamassoma é um potencial alvo terapêutico para a covid-19.
Novos usos para “velhos” medicamentos
Juntando esses dados, os pesquisadores decidiram investigar se drogas já existentes e aprovadas no mercado poderiam ser testadas contra essa tempestade de citocinas que ocorre em alguns casos de covid-19. Embora também exija a execução rigorosa das etapas de pesquisas previstas, o reposicionamento de fármacos, como é chamada essa técnica, é uma estratégia que pode se mostrar eficaz para responder mais rapidamente a doenças infecciosas emergentes (leia mais a respeito no box ao final do texto).
Para iniciar o estudo, Letícia avaliou mais de 2 mil moléculas, mas somente três delas tiveram bons resultados. A niclosamida, que atualmente encontra-se na fase 1 de ensaios clínicos em várias partes do mundo, mostrou-se capaz de inibir a replicação viral in vitro e prejudicar a ativação de inflamassomas em células de pacientes com covid-19. Já em experimentos com camundongos, foi observado que a niclosamida promove redução da inflamação no pulmão desses animais, mas não afeta a replicação do virus, sugerindo que os efeitos benéficos do composto estão mais ligados a sua capacidade imunomodulatória do que antiviral”, explica Letícia. “Acreditamos que seja mais por uma questão de ajustar a dosagem da formulação, pois acredito que a que utilizamos no nosso trabalho não foi a melhor para, justamente, entregar o medicamento de maneira adequada ao pulmão.”
Bancos de medicamentos
A primeira etapa da pesquisa de Letícia foi selecionar, em um banco de medicamentos, moléculas capazes de inibir a ativação de inflamassomas. Depois, foi utilizado um modelo de infecção de células de defesa, os macrófagos, com a bactéria Legionella pneumophila, que, segundo a pesquisadora, “ativa os inflamassomas de maneira forte e bem evidente.”
Os macrófagos foram tratados previamente com as três drogas e posteriormente infectados para induzir à ativação de inflamassomas NLRP3, AIM2, NAIP/NLRC4 e caspase-1. A droga que mais mostrou resultados, ou seja, a que conseguiu inibir a ativação desses múltiplos inflamassomas, foi a niclosamida e, por isso, os cientistas decidiram seguir os estudos somente com essa molécula.
“Decidimos usar a Legionella porque, para trabalhar com o sars-cov-2, precisaríamos realizar os experimentos em um laboratório de biossegurança nível 3 (NB3/BSL3)”, conta Letícia.
Para José Luiz Proença Módena, virologista, professor do Instituto de Biologia da Universidade de Campinas (Unicamp) e coordenador do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes da mesma universidade, por ser uma bactéria intracelular e muito estudada, a infecção com Legionella propiciou um bom modelo para buscar inibidores da ativação do inflamassoma. “Não necessariamente esses inibidores serão bons antivirais ou anti-inflamatórios. Mas possuem potencial de identificar drogas que podem interferir na replicação de um vírus ou na inflamação induzida por ele, quando ele depende ou induz à ativação dessa via”, explica.
Em uma etapa posterior, os pesquisadores utilizaram células originadas de rim de macaco que não expressavam inflamassomas, mas produziam a enzima ACE2 (a proteína que facilita a entrada do sars-cov-2 na célula). Para testar a atividade antiviral da niclosamida, os pesquisadores infectaram culturas dessas células com o sars-cov-2 e as trataram com o composto por 24 horas, com diferentes dosagens. As análises mostraram que as células tratadas com a niclosamida tinham menos carga viral do que as não tratadas (grupo controle).
Os efeitos antivirais foram validados em análises de imunofluorescência. Foi detectada uma forte replicação viral em células controles (não tratadas), enquanto nas tratadas com niclosamida a replicação viral foi reduzida substancialmente.
“Vimos também que o medicamento reduz os inflamassomas por meio de um mecanismo chamado de autofagia”, explica Letícia. A autofagia celular é um processo natural em que as células “comem” partes de si mesmas, eliminando toxinas e reciclando nutrientes.
Para finalizar os ensaios in vitro, foram coletadas amostras de sangue de 11 pacientes infectados pelo sars-cov-2 contendo inflamassomas, posteriormente tratadas com a niclosamida e outro veículo. Foi observada uma alta eficiência da niclosamida na inibição de uma citocina chamada caspase-1 no sangue dos pacientes infectados. No mesmo experimento, houve redução de marcadores de inflamassomas nas células dos pacientes com covid-19 tratadas com niclosamida.
Ensaios em animais
Por último, os cientistas decidiram testar os efeitos da niclosamida em camundongos que expressavam a ACE2. Primeiramente, os animais foram infectados com a bactéria Legionella pneumophila por via intranasal e tratados com niclosamida (também com medicamento administrado por essa via) a cada 24 horas, por três dias após a infecção. Passado este período, os pulmões dos camundongos foram analisados e mostraram que o tratamento, apesar de não afetar a replicação viral nos pulmões, melhorou significativamente a infiltração inflamatória nos órgãos dos animais.
Quando avaliada, a niclosamida intranasal não afetou significativamente a produção de citocinas inflamatórias. Juntos, esses dados confirmaram os benefícios de todo o tratamento com a droga em modelos animais para a redução do processo inflamatório, apesar de não interferir na produção de citocinas e na replicação viral.
“O estudo forneceu informações relevantes a respeito das funções imunomodulatórias dessa droga para o tratamento da covid-19”, escrevem os autores no artigo.
Para Módena, apesar de ainda não ser suficiente para uma aplicação clínica da droga, o estudo é muito robusto, pois ele parte de uma biblioteca de compostos químicos conhecidos, identifica alguns com atividade inibitória da ativação do inflamassoma, descreve quais vias estão sendo inibidas, qual o provável mecanismo de ação (e que depende da indução de autofagia) e que esse fármaco possui potencial de inibir a ativação do inflamassoma e a replicação e parte da inflamação induzida por sars-cov-2. “É um estudo translacional, que utiliza dados de ciência básica e clínica para alcançar dados que podem impactar na reutilização de um determinado fármaco.”
Continuidade
O virologista José Módena é cauteloso ao falar sobre uma futura aplicação da niclosamida em pacientes com formas graves de covid-19. Para ele, é um fármaco interessante pelo seu efeito inibitório de inflamassoma, que vale a pena ser testado em modelos em modelos mais próximos do ser humano, como primatas não humanos, ou mesmo em testes com pacientes. “Agora, a chance dessa droga evoluir como um potente antiviral é pequena, pelo menos na minha visão. O sucesso farmacológico vai depender provavelmente da dose e da janela durante a doença que ela possa agir. Ou seja, será que ela terá efeito naqueles pacientes que já possuem sinal de alarde e que estão evoluindo clinicamente mal? Só o tempo vai dizer”, diz o pesquisador.
Após a finalização do trabalho, Letícia de Almeida pretende seguir com seu projeto inicial de pós-doutorado, voltado para o desenvolvimento de fármacos contra a leishmaniose. “Quando veio a pandemia, decidimos adaptar o conhecimento à biblioteca de fármacos que estávamos estudando”, explica a pesquisadora. “A ideia é saber se esse efeito de inibição de inflamassoma da niclosamida funcionaria também para a leishmaniose e, depois finalizar e disponibilizar esse conhecimento,” conclui.
Reposicionamento de medicamentos
Desde que a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia de covid-19, em 11 de março de 2020, a comunidade científica tem se esforçado para encontrar, de forma rápida, soluções que previnam, minimizem os efeitos – e até previnam – a doença.
O desenvolvimento de um novo medicamento é um processo lento e oneroso, e nem sempre o que é observado em ensaios em células e em animais é confirmado em testes com humanos. Dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca) indicam que, de cada 10 mil moléculas testadas, apenas uma se torna um medicamento que será comercializado.
Além da produção de vacinas, uma estratégia adotada pela comunidade científica consiste no que é chamado de reposicionamento de fármacos, cujo objetivo é utilizar medicamentos já comercializados para tratamento de outras doenças.
Apesar de pular algumas etapas, a pesquisa deve ter o mesmo rigor científico que se tem ao desenvolver um medicamento do zero. “Se já existe uma medicação com larga experiência, ou que já tem estudos de fase 1 e 2 e que mostraram alguma eficácia e segurança mesmo para outras condições, poderia ir direto para estudos de fase 3 [ensaios clínicos randomizados], que via de regra contam com centenas a milhares de participantes”, relata Ana Carolina Peçanha Antonio, médica intensivista no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e Hospital Independência e doutora em Ciências Pneumológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A médica cita o exemplo da dexametasona, um anti-inflamatório utilizado para outras doenças infectocontagiosas similares, que foi submetida a um estudo multicêntrico no Reino Unido, na metade de 2020, e que ratificou seu uso no tratamento da covid grave. “Na bula, a Anvisa vai incluir então o tratamento da covid grave como dentro do rol das doenças possíveis da dexametasona.”
No caso da niclosamida, a pesquisadora faz um alerta sobre alguns cuidados a serem tomados. “O primeiro ponto é que, para ela atuar nas nossas células, ela precisaria ter uma modificação na apresentação que permitisse que ela fosse absorvida pelo organismo, entrasse na corrente sanguínea e chegasse até as células pulmonares em uma concentração suficiente para que ela funcione”, diz. “E isso a gente não consegue analisar nesses estudos pré-clínicos, sejam eles em culturas de células ou em animais. Então, toda a rota metabólica de fármacos, farmacocinética que conta com o tempo em que aquela medicação é metabolizada, que ela é eliminada do organismo, isso a gente não consegue abordar em estudos pré-clínicos.”
Como exemplo, a médica cita a ivermectina, que parecia ser promissora em estudos in vitro, não só contra o sars-cov-2, mas contra o HIV, zikavírus e uma série de outros patógenos. “Temos uma série de estudos clínicos de fase 3, bem conduzidos, mas que descartam um efeito clínico minimamente significativo da ivermectina no tratamento da covid-19.”
“Temos as várias etapas que são pré-requisitos essenciais para garantir a robustez dos resultados das pesquisas clínicas e, sobretudo, para a gente proteger os seres humanos e não repetir eventos tão nefastos da pesquisa clínica como no caso da talidomida”, ressalta. “Mesmo este estudo, que parece ter sido muito bem feito, ainda não me diz absolutamente nada sobre o funcionamento desse medicamento na prática ”, conclui.
Mais informações: e-mails [email protected], com Letícia Almeida, e [email protected], com o professor Dario Simões Zamboni
Fonte: Jornal USP