Relatório da Polícia Federal sobre suposta prática de crimes na transmissão de uma live de Jair Bolsonaro (PL), em julho do ano passado, com ataques ao sistema eleitoral brasileiro, mostra que pelo menos três ministros e, indiretamente, o presidente foram alertados sobre a falta de credibilidade dos dados que embasaram as falas, sobre supostas fraudes e falhas nas urnas eletrônicas.
Na live de Bolsonaro, de 29 de julho de 2021, o presidente aponta que houve suspeita de fraude na eleição de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) foi reeleita, e ataca o sistema de voto eletrônico. A postagem resultou na apuração, aberta pela PF a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O material foi anexado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, ao inquérito das fake news, nesta semana.
A live, segundo a PF, teve o “nítido propósito de desinformar e de levar parcelas da população a erro quanto à lisura do sistema de votação”. Segundo a PF, o conteúdo, além de promover a desinformação, “alimenta teorias que promovem fortalecimento dos laços que unem seguidores de determinada ideologia dita conservadora”.
O relatório conclusivo do inquérito tem 28 páginas e é subscrito pela delegada Denisse Ribeiro. A PF concluiu que a busca por informações para desacreditar o sistema eleitoral é mais um evento relacionado à organização criminosa investigada no inquérito das milícias digitais, conforme revelou reportagem do jornal Folha de S. Paulo, na 2ª feira (9.mai).
As apurações mostraram que antes da live, uma “reunião preparatória” foi realizada no Planalto. Estariam presentes o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, o então ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, o então diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o ex-assessor da Casa Civil coronel Eduardo Gomes e dois peritos da PF.
O SBT News teve acesso ao documento. Nele consta que o ministro da Justiça, ao ser ouvido, afirmou que foi o então ministro da Casa Civil o “responsável por solicitar a reunião preparatória” realizada no dia 23 de julho, no Planalto. O objetivo era “apresentar os dados que seriam divulgados na live presidencial e obter a opinião dos peritos criminais federais a respeito”.
O material era uma planilha com os números de votos elaborada pelo técnico em eletrônica Marcelo Abrieli. No depoimento à PF, ele afirma que foi procurado, em 2019 e 2021, pelo general Luiz Eduardo Ramos.
Na apuração, a PF ouviu oito pessoas diretamente ligadas ao caso, entre elas os ministros da Justiça e do GSI, Ramos, Ramagem, Gomes, os dois peritos da PF e um técnico de informática.
“As oitivas permitiram verificar que o processo de preparação e realização da live foi feita de maneira enviesada, isto é, procedeu-se a uma busca consciente por dados que reforçassem um discurso previamente tendente a apontar vulnerabilidades e/ou possíveis fraudes no sistema eleitoral”, concluiu a delegada.
Segundo a PF, os envolvidos ignoraram “deliberadamente a existência de dados que se contrapunham a narrativa desejada, quase todos disponíveis em fontes abertas ou de domínio de órgãos públicos”.
Peritos
Um dos ouvidos foi o perito criminal da PF Ivo Peixinho, da Divisão de Repressão de Crimes Cibernéticos. Ele foi um dos peritos levados pelo ministro da Justiça à “reunião preparatória ocorrida no dia 23 de julho de 2021, no Palácio do Planalto, com objetivo de emitir opiniões sobre a consistência e plausibilidade dos dados que seriam divulgados na live presidencial”.
O perito foi questionado se a análise do código fonte dos sistemas eleitorais e os testes de segurança indicavam a existência de fraude nas eleições passadas. “Respondeu que ‘de forma nenhuma’, não apontavam para qualquer tipo de fraude nas eleições passadas.” Afirmou ainda que os documentos não “indicam vulnerabilidades aptas a permitir manipulação de votos no processo eleitoral”.
A PF ouviu ainda um segundo perito da PF, Mateus Polastro, também levado à reunião do dia 23 com Bolsonaro no Planalto. “O depoente e o perito criminal federal Peixinho contestaram tecnicamente o resultado exposto.”
“O coronel Eduardo foi alertado pelo depoente e pelo perito Peixinho de que a coluna da planilha que apresentava comportamento atípico poderia não representar o que estava sendo interpretado, ou seja, a possibilidade da existência de uma fraude nas apurações da eleição de 2014.”
Os dois peritos sugeriram, segundo os depoimentos, que a planilha fosse encaminhada a uma perícia para entender de forma detalhada as fórmulas aplicadas.
“A preocupação do general Ramos era ‘de não expor o presidente da República em uma furada'”, afirmaram os peritos. Mesmo assim, o documento não foi enviado para perícia.
Dolo
Para a delegada da PF, “restou caracterizado pelas narrativas das pessoas envolvidas que a chamada live presidencial foi um evento previamente estruturado com o escopo de defender uma teoria conspiratória que os participantes já sabiam inconsistente”.
“Seja pelos alertas lançados pelos peritos criminais federais, seja porque a mesma fonte que forneceu o suporte (pesquisas na internet) também fornece dados que se contrapõem às conclusões alcançadas”, registra o relatório da PF.
Segundo a delegada, “mesmo com a possibilidade de realização de processos formais de verificação da confiabilidade e veracidade dos dados utilizados, o que poderia ser feito inclusive por órgãos do governo, nada foi checado”.
Para ela, “esse grupo de pessoas atua, com dolo, consciência e livre vontade, na produção e divulgação, por diversos meios, de narrativas sabidamente não verídicas ou sem qualquer lastro concreto, com o propósito de promover mais adesão de apoiadores e outros difusores aos interesses dessa organização”.
“Nesse aspecto específico, este inquérito permitiu identificar a atuação direta e relevante do presidente da República Jair Bolsonaro na promoção da ação de desinformação, aderindo a um padrão de atuação já empregado por integrantes de governos de outros países.”
No depoimento à PF, o ministro da Justiça foi questionado se “alertou o presidente ou qualquer outra pessoa do governo federal com acesso ao presidente quanto à posição dos peritos da PF externada na reunião do dia 23 de julho”. “Ele respondeu que não”.
Segundo Torres, “os peritos não apresentaram uma posição em relação ao material apresentado na reunião, uma vez que os mesmos informaram que isso só seria possível, após uma análise mais detalhada daquele material”.
O ministro disse ainda que não foi convidado “para participar da reunião, tendo apenas indicado os profissionais da Polícia Federal que iriam participar dela”. Outros ouvidos afirmam que ele participou.
Procurado, o Planalto não se manifestou até a mais recente atualização desta reportagem.
Fonte: SBT News