Poder Judiciário precisa se aperfeiçoar para combater violência contra as mulheres

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Por Eduardo Reina – Domingo, 28 de agosto de 2022

Mesmo com a consolidação do conjunto normativo e da jurisprudência no combate à violência contra as mulheres, o Poder Judiciário ainda carece de aperfeiçoamento para agir adequadamente diante de cada caso que surge diariamente, desde a investigação dos fatos até as audiências de instrução e os julgamentos nos tribunais, passando pela capacitação e pelo aprimoramento dos profissionais que lidam com esse tipo de ação criminal. Esse aperfeiçoamento deve nortear o combate à violência de gênero daqui para frente, de acordo com estudiosas do assunto ouvidas pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Violência contra as mulheres é problema ainda longe de uma solução no Brasil
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Há vigente no Brasil um conjunto normativo potente de combate à violência contra a mulher, em suas diversas formas, que tem como principal marco a Lei Maria da Penha (11.340/06), mas não só ela. Outras normas foram editadas posteriormente, como a Lei Lei Joanna Maranhão (12.650/12), a Lei do Minuto Seguinte (12.845/13) e a Lei Carolina Dieckman (12/737/12), entre outras, mas elas não são suficientes, tanto que há um aumento considerável da violência contra as mulheres.

Pesquisa de jurisprudência feita pela Conjur no Superior Tribunal de Justiça aponta a existência de 202 acórdãos e 3.140 decisões monocráticas para o crime de feminicídio. Já ações por violência doméstica geraram 1.595 acórdãos e 30.855 decisões monocráticas na corte superior. Quando o tema é estupro, os números crescem: há 6.189 acórdãos e 58.146 decisões monocráticas. A agressão contra mulheres registra somente 15 acórdãos e 1.509 decisões monocráticas, dados que chegam a 742 acórdãos e 13.648 decisões monocráticas quando o crime é de violência sexual.

A quantidade de casos de violência contra as mulheres apresenta tamanho gigantesco no Brasil. Em 29 meses — entre janeiro de 2020 e maio de 2022 — foi registrada a expedição a cada minuto de duas medidas protetivas de urgência para meninas e mulheres em situação de violência doméstica. De acordo com o estudo “Avaliação sobre a aplicação das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha”, uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça, o Instituto Avon e o Consórcio Lei Maria da Penha, nesse período foram registradas 572.159 medidas dessa natureza em todo território nacional. Os resultados foram divulgados nesta semana.

“De acordo com os números do Monitor da Violência, somente no primeiro semestre de 2021, quando o Brasil passava pela segunda onda da pandemia da Covid-19, foram deferidas aproximadamente 152 mil medidas protetivas de urgência em 24 estados da federação, o que dá cerca de uma MPU a cada dois minutos e significou um aumento de 15% em relação ao mesmo período do ano anterior. Então, se as mulheres estão cada vez mais procurando o sistema de Justiça em busca de medidas protetivas, é porque esse é um instrumento que tem eficácia”, afirma Reijjane de Oliveira, juíza auxiliar da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica (Cevid) no Tribunal de Justiça do Pará.

Muito o que mudar
Há muito o que transformar ou aperfeiçoar no combate à violência contra as mulheres feito pelo Judiciário. “Num país que em pleno século XXI ainda ostenta o vergonhoso e lamentável quinto lugar no mundo em violência contra as mulheres, quando temos uma lei de proteção às mulheres no âmbito doméstico e familiar que é considerada pela ONU a terceira melhor do mundo, resta evidente que há muito a caminhar para que se alcance a igualdade de gênero e o fim das violências contra as mulheres”, observa Reijjane de Oliveira.

Especificamente quanto à maior efetividade da Lei Maria da Penha, e em especial das medidas protetivas de urgência, faz-se necessário implementar mecanismos de fiscalização dessas ferramentas, e isso não pode ficar restrito ao Poder Judiciário, segundo as especialistas.

“O Poder Executivo precisa executar políticas públicas que garantam a assistência às mulheres conforme prevê a Lei Maria da Penha. A política de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres precisa descentralizar os serviços de atendimento às mulheres para o maior número de municípios, pois, atualmente, ficam restritos às capitais e aos municípios de maior porte. Inclusive é preciso que o Estado assegure o direito das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a assistência judiciária gratuita, conforme preveem os artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha. Além disso, é fundamental investir na formação de pessoal para o atendimento com perspectiva de gênero, uma vez que, para garantir um serviço que não revitimize as vítimas, é necessário que haja pessoas qualificadas”, analisa a juíza do Pará.

A desembargadora aposentada do TJ-SP Kenarik Boujikian também afirma ser necessária uma atuação adequada dos três poderes, criando condições para a aplicação da legislação vigente.

“A existência da normativa é, à toda evidência, um avanço, fruto das lutas das mulheres, mas é preciso que sejam integralmente e radicalmente executadas. No que diz respeito ao Judiciário, é fato que ainda há muito para caminhar. Creio que é indispensável a realização de capacitação de todos os juízes, não só os que tratam diretamente da aplicação das leis específicas, em atividades multidisciplinares, para que todos os magistrados possam compreender a sociedade patriarcal, machista e misógina que temos. Sem essa primeira compreensão, não vejo a possibilidade de avanço dentro do sistema de Justiça”, explica Kenarik.

Uma necessidade urgente no sistema judiciário nacional, de acordo com a advogada criminalista Maira Pinheiro, é a criação de concurso para contratação de mais profissionais, incluindo o uso de psicólogos na fase de produção de provas.

“Não adianta nada você criminalizar a violência psicológica, como aconteceu no ano passado, e foi um avanço legislativo importante, se você não tem instrumentos para auferir a dimensão do trauma psicológico. Então, se você não tem uma avaliação psicológica, não tem uma relação entre o sofrimento psíquico daquela mulher e as condutas perpetradas pelo agressor, então a criação de um novo crime se torna uma letra morta”, diz ela.

Isso, segundo a advogada, significa haver interdisciplinaridade: “O sistema de Justiça sozinho, sem se valer de outras áreas do conhecimento, sem se valer de outras estruturas da administração pública, não vai dar conta de erradicar a violência contra a mulher, porque ele trabalha basicamente com a punição. Uma punição que não torna a vida daquela mulher mais segura. É preciso existir a transdisciplinaridade. Trazer outros instrumentos da organização pública, das outras áreas do conhecimento. Senão, as mulheres não vão deixar de morrer. Não é a existência de um processo criminal que vai dissuadir um agressor de agredir de novo”.

A repressão penal “desacompanhada de políticas públicas aptas a promover a urgente mudança cultural acerca de temas como desigualdade de gênero não é capaz de resolver o problema”, afirma a advogada Ana Maria Colombo.

Para ela, é preciso investir em educação para formar novas gerações conscientes desse crescente problema e, assim, evitar sua ampliação. “Nesse sentido, vale destacar medidas como a Lei nº 14.164/21, que incluiu nos currículos da educação básica nacional o tema da prevenção da violência contra a mulher. Medidas como essa são essenciais para a formação de novas gerações de mulheres mais esclarecidas e com maior consciência de seus direitos, bem como de homens mais conscientes do seu papel na luta contra a violência de gênero.”

Em que pese não ser possível assegurar a sua plena eficácia (assim como ocorre com qualquer outro instrumento de repressão ou de prevenção), não se pode retirar a importância das medidas protetivas de urgência como ferramentas de proteção de vítimas de violência de gênero. Além disso, tem-se visto a atuação relevante das instituições na luta contra a violência doméstica, estruturando-se importante rede de apoio àquelas mulheres que conseguem romper o ciclo da violência e denunciar os abusos sofridos.

“Não se pode, contudo, atribuir ao Judiciário e à polícia a exclusividade na árdua tarefa de combater esse tipo de violência. É indispensável a promoção de políticas públicas diversas, especialmente dirigidas à raiz do problema, promovendo a necessária mudança cultural a respeito dos papeis de gênero na nossa sociedade”, diz Ana Maria.

Entre os mecanismos que estão sendo criados em várias partes do Brasil para dar efetividade às medidas de prevenção à violência, destacam as especialistas ouvidas pela ConJur, está a Patrulha Maria da Penha, do município de Diadema (SP), onde a Guarda Civil faz uma classificação de risco das mulheres que têm alguma medida protetiva e fazem um acompanhamento com visitas domiciliares com periodicidade de acordo com a gradação de risco do caso. A medida protetiva de urgência é um instrumento que, se implementado junto com o Poder Executivo e as forças de segurança, pode ser muito eficiente. E, muitas vezes, é do que as mulheres precisam em um momento em que a violência está em um estágio mais agudo.

Capacitação
De acordo com as advogadas ouvidas pela ConJur, os tribunais ainda precisam investir na criação de varas especializadas e dotá-las de equipes multidisciplinares, bem como fazer a capacitação permanente de todos os membros do Judiciário, independentemente da competência da matéria e do grau de jurisdição, inclusive de servidores e servidoras, para que possam atuar com perspectiva de gênero. O objetivo é não possibilitar a revitimização das mulheres dentro dos fóruns, sendo julgadas com viés moral por não cumprirem o papel que lhes foi atribuído pelo patriarcado.

“É importante frisar que a política de enfrentamento à violência contra as mulheres não é de responsabilidade apenas do Judiciário. A Lei Maria da Penha é um microssistema e prevê uma política integrada por meio de ações articuladas da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e de ações não governamentais, estabelecendo no seu artigo 8º as diretrizes para essa política”, diz Reijjane.

Uma das principais questões que precisam ser aprimoradas, sugerem as especialistas, é a articulação entre o Executivo e o Judiciário. Porque sem as políticas públicas de acolhimento, sem os equipamentos que oferecem abrigo, assistência psicológica e mecanismos de desenvolvimento de autonomia financeira, as vítimas se tornam reféns da resposta que o sistema judiciário tem a oferecer a elas.

“O sistema de Justiça Criminal, através da punição, não resolve o problema da mulher vítima de violência, porque a mulher precisa estar empoderada para sair dessa situação. E isso passa pela demanda da autonomia, que não é só autonomia financeira, mas também autonomia emocional. Então, sem um local de acolhimento, que deve ser provido pelo Executivo, as medidas que o Judiciário adota ficam sem efetividade”, explica Maira Pinheiro, que é membro do Coletivo Bem Viver.

No âmbito dos tribunais, e numa intersecção com as polícias, diz Maira Pinheiro, “a gente precisa qualificar muito a produção de provas nos processos que envolvem violência de gênero”.

Também é sugerida mudança nas oitivas das vítimas dentro das delegacias, momento que inúmeras vezes gera constrangimento às mulheres.

“Uma das questões que atrapalham muito a apuração desse tipo de crime aqui em São Paulo é o fato de os depoimentos em delegacia serem colhidos por redução a termo. Ou seja, a mulher relata e o policial escreve fazendo um relato com suas próprias palavras. Com isso, muito se perde com relação ao conteúdo do depoimento. E na violência de gênero, na violência que acontece num espaço privado, os detalhes têm muito significado. Então, uma mudança urgente, que tem de acontecer para ontem, é que o depoimento das vítimas e das testemunhas, principalmente nos casos que envolvem violência contra a mulher, deveria ser colhido com registro áudiovisual. O que inibe condutas autoritárias, vitimizantes, por parte das forças policiais e permite que o Judiciário tenha contato com a história de forma mais qualificada”, explica Maira.

De acordo com as advogadas, nas varas de violência doméstica é comum que as ações penais que envolvem lesão corporal de natureza leve sejam tratadas como processos de menor complexidade. Também há reclamação sobre a pauta dos juízes nos tribunais serem quase sempre sobrecarregadas.

“Isso significa que a audiência de instrução desses casos vai ser muito atropelada, muito apressada. Isso acaba sendo extremamente violento para as mulheres que estão ali depondo, porque aquele fato violento dificilmente é o único que ela viveu. Para resolver isso seria preciso criar mais varas de violência doméstica”, pede Maira.

Falta de compreensão
Outra medida necessária é uma mudança na cultura do Judiciário, para que se compreenda que a violência doméstica é um fenômeno complexo. Ao questionar uma mulher sobre o abuso que ela sofreu, não se pode deixar de levar em consideração que existe um ciclo da violência. E que outros episódios relacionados àquele relacionamento têm relevância probatória também. Não se deve restringir a violência ao único fato registrado no boletim de ocorrência, explicam as especialistas.

“A gente teve um avanço importantíssimo no protocolo de julgamento com perspectiva de gênero que o CNJ lançou no ano passado. Mas aquele documento está a anos-luz de ser implementado pelo Judiciário de maneira geral. O conteúdo dele é extremamente avançado, mas a prática está muito longe disso”, observa Maira.

“Importa destacar o necessário desenvolvimento de mais ambientes de acolhimento da mulher vítima de violência, seja no Judiciário, na polícia, na Defensoria Pública, na advocacia ou no Ministério Público. Por suas características, a violência doméstica depende muito da postura da própria vítima para que seja devidamente identificada e repreendida pelo Estado. Assim, é indispensável a existência de espaços devidamente estruturados para receber, ouvir e acolher essa vítima, evitando que ela seja submetida a nova violência quando enfim se encoraja a buscar apoio. Mais do que isso, é preciso que as instituições sejam ambientes que exprimam confiança a essa mulher, para que ela se sinta segura de que está agindo da forma correta”, reivindica Ana Maria Colombo.

Postura de agentes públicos
Também é destacada pelas estudiosas do assunto a urgente necessidade de mudança de postura dos agentes públicos no tratamento, na avaliação e no julgamento de casos de violência contra as mulheres. Há agentes responsáveis pela aplicação ou pela fiscalização da lei que colocam suas crenças pessoais à frente dos direitos que são assegurados às vítimas.

“Para além dos efeitos disso nos casos concretos, a repercussão de tais fatos traz também uma descrença generalizada no sistema, minando a necessária confiança que as instituições demandam para que funcionem adequadamente. Essas situações são de extrema gravidade e devem ser devidamente apuradas pelas respectivas corregedorias, mas tais casos não refletem a realidade do sistema judiciário brasileiro, que é importante força atuante no combate à violência doméstica”, analisa Ana Maria.

Um caso que ganhou repercussão, conta a juíza Reijjane de Oliveira, foi o da audiência de um processo em que se apurava uma acusação de crime contra a dignidade sexual (estupro), e a única mulher na audiência era a suposta ofendida. Portanto, era nessa condição que ela estava na audiência — de vítima. “Mas ela foi tratada como se fosse a responsável pelos fatos que eram imputados ao então acusado. Falo desse caso porque foi emblemático, tendo gerado inclusive a Lei nº 14.245/21, que ganhou o nome de Lei Mariana Ferrer. E essa lei visa exatamente a coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e estabelece causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo”, detalha a juíza.

O Direito Penal, ainda que seja relevante instrumento de coibição de condutas, e, por consequência, de mudança de comportamentos, não pode ser a única e principal ferramenta utilizada para a solução de um problema social e comportamental que tem forte raiz cultural. A sociedade brasileira vive uma realidade em que o gênero ainda demarca de forma expressiva a construção e a socialização de uma pessoa, segundo as advogadas.

Outro problema é que o Judiciário tende a entender que a vigência da medida protetiva deve estar atrelada à vigência de um inquérito policial e de uma ação penal. Isso significa que se a mulher quiser só uma proteção, ela não consegue.

“Ela precisa também reportar o crime e providenciar que o agressor seja punido e responsabilizado criminalmente para ela poder manter a medida. Na verdade, a punição ao agressor através de uma pena não traz nenhum tipo de melhora para a vida da mulher. Atrelar é um limitador da eficácia desses instrumentos porque muitas vezes pode dissuadir a mulher de buscar alguma ajuda”, conclui Maira Pinheiro.

Para as especialistas, ainda se fazem necessárias ações como a do CNJ ao expedir recomendação aos órgãos do Poder Judiciário para que apliquem o Protocolo de Perspectiva de Gênero e a do Congresso Nacional ao editar a Lei Mariana Ferrer.

“É crucial os Tribunais de Justiça priorizarem sua execução e que o CNJ envolva nos debates os demais atores dos sistemas de Justiça e segurança pública, responsáveis pela implementação das medidas protetivas, e organismos da sociedade civil que atuam pelos direitos das mulheres”, afirmou Wânia Pasinato, integrante do Consórcio Lei Maria da Penha e coordenadora da pesquisa divulgada pelo CNJ.

Fonte: Conjur

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