Texto: Alícia Matsuda*
Arte: Beatriz Haddad**
Obra atribuída ao médico brasileiro Francisco de Melo Franco é tema de palestra que será dada no dia 11, às 14 horas, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP
Datado de 1785, O Reino da Estupidez é um poema que circulou por anos em manuscritos anônimos. Ainda hoje, não se sabe ao certo quem escreveu a obra, sendo o médico mineiro Francisco de Melo Franco (1757-1822), ainda quando estudava na Universidade de Coimbra, em Portugal, o principal suspeito da autoria. Escrito ou não por um brasileiro, o poema faz parte da tradição literária portuguesa, usando da sátira para criticar o cenário político da época. Edições do poema publicadas em 1818, 1821 e 1868 fazem parte do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP. Elas serão abordadas pela professora Marcia Arruda Franco, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, na palestra Impressos e Manuscritos da Sátira Estudantil Setecentista O Reino da Estupidez, que será realizada no dia 11, segunda-feira, às 14 horas, na BBM. A biblioteca disponibiliza a obra em versão digital (acesse neste link).
Em quatro cantos, o poema tem um tom que se enquadra como heroísmo-cômico ou épico-burlesco. “Ele imita uma épica, um poema heroico, mas sob o ponto de vista cômico, subvertendo aquela atmosfera elevada de modo baixo e satírico”, afirma a professora Marcia Arruda Franco, em entrevista ao Jornal da USP. “Esse gênero se organiza como uma desconstrução do paradigma épico ou heroico, que provoca uma crítica e pretende denunciar vícios.” Esse humor visa separar o leitor do objeto da sátira, como ela exemplifica: “Eu olho um poema e digo: ‘eu não sou estúpido, porque não concordo com a entrada da estupidez na Universidade de Coimbra’. Por meio da ironia absurda, ele provoca o riso e esse tipo de reflexão no leitor”.
Os cantos foram escritos no contexto da Viradeira, isto é, com a regressão do Iluminismo em Portugal. O ministro Marquês de Pombal havia modificado a administração e a educação no país com ações como a expulsão dos jesuítas. Em 1777, com a posse da rainha D. Maria I, muito religiosa, Pombal foi destituído e suas ações administrativas, anuladas.
Esse contexto se reflete na obra atribuída a Francisco de Melo Franco. O poema acompanha a estupidez e suas cinco fúrias: a raiva, a inveja, o fanatismo, a superstição e a hipocrisia. “A estupidez foi expulsa da Europa por Minerva, e o poema mostra a estupidez querendo recobrar o seu reino. Ela vai à França, mas os franceses estão muito iluminados, ela também não consegue nada na Inglaterra e nos países do norte. Ela passeia por Lisboa e todo o povo a aceita.”
Professora prepara nova edição do poema
Docente do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, Marcia Franco estuda O Reino da Estupidez desde 2017, quando fez pesquisas sobre o poema na Universidade de Salamanca, na Espanha. Até 2021, ela se dedicou às indagações a respeito da autoria e da classificação da obra como brasileira. De 2022 em diante, investiga as publicações do poema a partir das edições impressas do acervo da BBM.
Atualmente, Marcia Franco prepara uma nova edição do poema, com base nas edições de 1818, 1821 e 1868 e em três manuscritos inéditos, também disponíveis na BBM. “Vou escolher como base um desses seis textos do acervo da BBM, mostrar no aparato crítico as diferenças entre elas e elencar a série de paratextos, que é o que mais diferencia cada um deles”, explica. Ao redor do mundo, acervos de literatura portuguesa conservam suas versões do manuscrito, diferentes das outras em assinaturas, ilustrações e posfácios. “Conforme o projeto foi crescendo, eu pesquisei em outras instituições, sobretudo na Biblioteca Nacional de Portugal. Por exemplo, eu achei todos os sonetos que são mencionados na advertência do manuscrito ilustrado da BBM. Vou incluí-los também.”
Autoria do poema é controversa
Nascido no interior de Minas Gerais, Francisco de Melo Franco veio de família portuguesa e só viveu no Brasil durante poucos anos da vida. “Foi atribuída a ele uma série de obras anônimas, mas ele é um escritor de matéria médica”, explica a professora, citando Medicina Theologica, de 1794, em que Franco refuta os “remédios morais” sugeridos por teólogos na época. “Ele busca ensinar aos padres confessores que não lidem com aqueles que têm o pecado da lascívia ou da bebedeira apenas com um remédio espiritual e orações, mas também com remédios para o corpo.”
“Uma parte do meu projeto é comparar o estilo de escrita da Medicina Theologica e de outros livros atribuídos ou assinados por ele com o estilo de escrita e as ideias políticas iluministas de O Reino da Estupidez”, acrescenta Marcia Franco. A professora explica a ideologia do autor com sua complexidade: ele critica a nobreza, mas não a monarquia; critica o clero, mas prega um catolicismo moral; era contra o matrimônio, mas acabou se casando. Por isso, enquanto a autoria de Francisco de Melo Franco é, em geral, aceita pelos pesquisadores da área de letras, os da área de história questionam essa autoria, pois não há comprovação concreta dela.
No século 18, um dos acusados de ter escrito o poema foi o professor Antonio Ribeiro dos Santos (1745-1818), que perdeu o direito à docência devido a essa denúncia. Independentemente de a autoria ser ou não confirmada, a professora explora a classificação do poema como uma obra brasileira. “Mesmo que Francisco de Melo Franco seja brasileiro e seja o autor do poema, como a tradição já o consagra, a obra não é considerada necessariamente brasileira. É uma obra do século 18 que se volta totalmente para Portugal. O Brasil não é sequer mencionado.”
A palestra Impressos e Manuscritos da Sátira Estudantil Setecentista O Reino da Estupidez acontece no dia 11, segunda-feira, às 14 horas, na Biblioteca Guita e José Mindlin (BBM) da USP (Rua da Biblioteca, 21, Cidade Universitária, em São Paulo). Entrada grátis. Não é preciso fazer inscrição. O poema O Reino da Estupidez está disponível gratuitamente na BBM Digital.
*Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado
Fonte: Jornal da USP / Imagem: BBM/O Reino da Estupidez