- David Robson
- BBC WorkLife
O noticiário está repleto de pessoas que viveram uma mentira.
Domingo, 26 de junho de 2022
Elizabeth Holmes é uma delas. Empresária bilionária do setor de biotecnologia, ela foi considerada em 2015 a mais jovem e mais rica empreendedora mulher do mundo. E cumpre agora uma pena de 20 anos de prisão por fraude.
Anna Sorokin, ou Anna Delvey (a mesma da série da Netflix Inventando Anna), fingiu ser uma herdeira alemã e extorquiu a alta sociedade nova-iorquina em centenas de milhares de dólares.
Há também Shimon Hayut, ou Simon Leviev — o chamado Golpista do Tinder.
O que distingue todas estas pessoas não são apenas as mentiras que elas contaram aos outros — mas as mentiras que devem ter contado a si mesmas.
Todas elas acreditavam que suas ações eram, de alguma forma, justificáveis e, contra todos os prognósticos, nunca seriam descobertas. Por diversas vezes, pareciam negar a realidade — e arrastaram outras pessoas para seus golpes.
Você pode acreditar que este tipo de comportamento é um fenômeno relativamente raro e restrito a algumas situações extremas. Mas enganar a si próprio é algo incrivelmente comum e pode ter evoluído para oferecer alguns benefícios pessoais.
Nós mentimos para nós mesmos para proteger a nossa autoimagem, o que nos permite agir de forma imoral, mantendo a consciência limpa. Segundo as últimas pesquisas, enganar a si próprio pode ter evoluído para nos ajudar a convencer os outros. Afinal, se começarmos a acreditar nas nossas próprias mentiras, fica muito mais fácil fazer com que outras pessoas também acreditem.
Estas pesquisas podem explicar comportamentos questionáveis em muitos setores da vida — muito além dos golpes que chegaram às manchetes nos últimos anos.
Compreendendo as diferentes razões que fazem com que as pessoas enganem a si mesmas, podemos tentar identificar quando isso está influenciando nossas decisões e evitar que essas ilusões nos desorientem.
Proteção do ego
Qualquer psicólogo dirá que o estudo científico do ato de enganar a si próprio é uma dor de cabeça.
Você não pode simplesmente perguntar a alguém se está enganando a si mesmo, uma vez que isso acontece abaixo do nível de consciência. Por isso, os experimentos muitas vezes são bastante complicados.
Vamos começar com a pesquisa de Zoë Chance, professora de marketing da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Em um experimento realizado em 2011, ela demonstrou que muitas pessoas enganam a si próprias inconscientemente para alimentar seus egos.
Um grupo de participantes foi orientado a fazer um teste de QI, com uma lista das respostas impressas no final da página. Como se poderia esperar, essas pessoas tiveram resultados consideravelmente melhores que um grupo de controle que não teve acesso ao gabarito.
Mas, aparentemente, eles não reconheceram o quanto haviam dependido da “cola” — já que previram que se sairiam igualmente bem em um segundo teste com outras cem questões, sem o gabarito.
De alguma forma, eles haviam enganado a si próprios, pensando que sabiam as soluções dos problemas sem precisar de ajuda.
Para confirmar esta conclusão, Chance repetiu o experimento com um novo grupo de participantes. Mas, desta vez, eles receberiam uma recompensa financeira por prever com precisão seus resultados no segundo teste.
O excesso de confiança sofreria então uma penalidade. E, se os participantes estivessem conscientes do seu comportamento, poderia se esperar que este incentivo reduzisse sua autoconfiança.
Mas, na verdade, o incentivo financeiro teve pouca influência para reduzir a autoconfiança exagerada dos participantes.
Mas ainda assim eles enganaram a si próprios, achando que eram mais inteligentes do que na realidade, mesmo sabendo que perderiam dinheiro.
Isso indica que as crenças eram verdadeiras, profundamente enraizadas e surpreendentemente fortes.
Não é difícil observar como isso pode ser aplicado na vida real. Um cientista pode acreditar que seus resultados são reais, apesar de usar dados fraudulentos; um aluno pode acreditar que fez jus à sua vaga em uma universidade de prestígio, mesmo fraudando um exame.
Sinceridade moral
Enganar a si mesmo para melhorar a autoimagem vem sendo observado agora em muitos outros contextos.
Uri Gneezy, professor de economia da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, demonstrou recentemente que enganar a si próprio pode ajudar a justificar possíveis conflitos de interesse no trabalho.
Em um estudo de 2020, Gneezy pediu aos participantes que desempenhassem o papel de consultores de investimentos ou de clientes. Os consultores receberam duas oportunidades diferentes para que fossem analisadas — cada uma delas com diferentes riscos e benefícios. Eles também foram informados que receberiam uma comissão se o cliente optasse por um dos dois investimentos.
Em um conjunto de testes, os consultores foram informados desta possível recompensa logo no começo do experimento, antes que começassem a estudar as diferentes opções. Embora aparentemente estivessem escolhendo a melhor opção para o cliente, eles ficaram muito mais dispostos a fazer a escolha mais favorável para eles próprios.
Mas, nos demais testes, os consultores só foram informados sobre esta possível recompensa depois de terem tido algum tempo para ponderar os prós e os contras de cada opção. Desta vez, poucos decidiram deixar que a recompensa influenciasse sua decisão. Eles permaneceram fiéis ao seu objetivo de oferecer o melhor conselho para o cliente.
Para Gneezy, o fato de que o conhecimento dos benefícios pessoais influenciou apenas a decisão dos participantes no primeiro cenário indica que eles enganaram a si próprios de forma inconsciente, alterando a forma como calculavam os riscos e benefícios sem que tivessem consciência da orientação. Eles acreditavam que ainda estavam agindo no interesse do cliente.
No segundo cenário, seria necessária uma total mudança de raciocínio, o que teria sido mais difícil de justificar para eles próprios.
“Eles simplesmente não conseguiriam se convencer de que estavam agindo de forma ética”, afirma Gneezy.
Portanto, enganar a si próprio é uma forma de proteger o senso de moralidade, segundo ele.
“Significa que podemos continuar nos considerando uma boa pessoa” — mesmo se nossas ações indicarem o contrário.
Esta forma de enganar a si próprio pode ser obviamente mais relevante para os consultores financeiros, mas Gneezy acredita que pode também ser importante para o setor de assistência médica privada.
Apesar de ter boas intenções, o médico pode decidir inconscientemente que o tratamento mais caro seria melhor para o paciente — sem ao menos reconhecer que está enganando a si próprio.
Convencer a nós mesmos e aos demais
Talvez a consequência mais surpreendente de enganar a si próprio esteja relacionada com as conversas com os demais.
Segundo esta teoria, quando enganamos a nós mesmos, ficamos mais confiantes no que estamos dizendo, o que nos torna mais convincentes.
Se você estiver tentando vender um produto duvidoso, por exemplo, o defenderá melhor se realmente acreditar que é uma barganha de alta qualidade — mesmo se as evidências indicarem o contrário.
Esta hipótese foi proposta pela primeira vez décadas atrás, e um estudo recente de Peter Schwardmann, professor de economia comportamental da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, oferece fortes evidências a favor da ideia.
Como no estudo de Chance, os primeiros experimentos de Schwardmann começaram com um teste de QI. Os participantes não receberam os resultados, mas, depois do término do primeiro teste, precisaram avaliar de forma privada como achavam que haviam se saído.
Depois, fizeram um teste de persuasão: tiveram que ficar perante um júri de empregadores fictícios e convencê-los de sua destreza intelectual — com uma possível recompensa de 15 euros (cerca de R$ 78) se os juízes acreditassem que eles estavam entre os mais inteligentes do grupo.
Algumas pessoas foram informadas sobre a tarefa de persuasão antes de avaliar a confiança no seu desempenho, enquanto outras foram informadas posteriormente. E, conforme a hipótese, Schwardmann concluiu que isso alterou a avaliação das suas capacidades.
O conhecimento anterior de que eles teriam que convencer os demais resultou em um excesso maior de confiança nas suas capacidades, em comparação com os que não haviam sido informados. A necessidade de persuadir outras pessoas os levou a pensar que eram mais inteligentes do que na realidade.
Schwardmann descreve isso como um tipo de “reflexo”.
E é importante ressaltar que os experimentos demonstraram que mentir para si próprio valeu a pena. A confiança excessiva sem fundamento realmente aumentou a capacidade das pessoas convencerem os empregadores fictícios.
Escolher lados
Schwardmann observou agora um processo similar em torneios de debate.
Nestes eventos, os participantes recebem um tema e um ponto de vista aleatório para argumentar. Antes, eles têm 15 minutos para preparar seus argumentos. E, durante o debate, são julgados pela forma de apresentação da sua defesa.
Schwardmann analisou as crenças pessoais dos participantes sobre os temas antes de receberem qual seria seu posicionamento, depois que começaram a formular seus argumentos e depois do debate propriamente dito.
Em conformidade com a ideia de que enganar a si próprio evoluiu para nos ajudar a convencer os demais, ele concluiu que as opiniões pessoais das pessoas foram substancialmente alteradas depois que elas souberam qual lado do debate precisariam defender.
“Suas crenças particulares migraram para o lado que eles haviam recebido apenas 15 minutos antes, para se alinhar com seus objetivos de persuasão”, afirma Schwardmann.
Depois do debate, os participantes também tiveram a oportunidade de destinar pequenas quantias em dinheiro para caridade, selecionando a partir de uma longa lista de possíveis organizações.
Schwardmann concluiu que eles ficaram muito mais dispostos a escolher organizações alinhadas com o posicionamento dos seus argumentos, mesmo tendo sido escolhido inicialmente de forma aleatória.
Muitas das nossas opiniões podem ter sido formadas desta maneira. Na política, pode acontecer de um apoiador a quem se solicita que defenda um ponto específico realmente chegue a se convencer de que esta é a única forma de abordar aquele ponto — não porque tenha apurado cuidadosamente os fatos, mas simplesmente porque foi pedido a ele que preparasse o argumento.
Na verdade, Schwardmann suspeita que este processo pode estar por trás de grande parte da polarização política que vemos hoje em dia.
Delírios de grandeza
De todas essas formas, o nosso cérebro pode nos levar a acreditar em coisas que não são verdadeiras. Enganar a nós mesmos nos permite inflar nossa opinião sobre nossas próprias capacidades, de forma que acreditemos que somos mais inteligentes do que todos à nossa volta.
Isso significa que nós desprezamos as repercussões das nossas ações para outras pessoas, de forma que acreditamos estar geralmente agindo de acordo com a moral.
E, ao nos enganarmos sobre a veracidade das nossas crenças, demonstramos maior convicção nas nossas opiniões — o que, por sua vez, nos ajuda a convencer os demais.
Nós nunca saberemos o que realmente passou pela mente de Holmes, Sorokin ou Hayut e de outros autores de fraudes, mas é fácil especular como alguns destes mecanismos podem ter operado.
Estes golpistas pelo menos parecem ter tido opiniões anormalmente positivas sobre suas próprias capacidades e seu direito de conseguir o que quisessem — e se eximiram com todo prazer das possíveis implicações éticas do que estavam fazendo.
Holmes, em particular, parece ter acreditado no seu produto e tentou justificar o uso de dados enganosos. Apesar de todas as evidências indicarem o contrário, ela ainda declarou durante o julgamento que “as grandes companhias de dispositivos médicos, como a Siemens, poderiam facilmente reproduzir o que nós fizemos”.
Hayut, por sua vez, ainda afirma que é “o maior dos cavalheiros” e que não fez nada de errado.
Schwardmann concorda que talvez seja possível que alguns golpistas vivam em mentiras incrivelmente elaboradas. Ele indica que alguns até demonstram uma espécie de raiva justificada quando são questionados, o que pode ser difícil de fingir.
“Talvez seja um sinal de que eles realmente compraram suas próprias mentiras”, afirma.
Especificamente, o desejo de status social parece aumentar a tendência das pessoas de enganarem a si próprias. Quando elas se sentem ameaçadas pelos demais, por exemplo, elas ficam mais propensas a inflar sua percepção das próprias capacidades. Talvez, quanto maiores os riscos, maiores sejam as mentiras que conseguimos dizer a nós mesmos.
Na maior parte das vezes, a autoilusão pode ser benéfica, pois permite que nos sintamos um pouco mais confiantes em nós mesmos que o justificável. Mas sempre vale a pena conhecer estas tendências, especialmente se estivermos tomando decisões que podem mudar a nossa vida.
Você não quer se enganar sobre os riscos de fazer economias no seu trabalho atual, nem sobre a possibilidade de sucesso em uma mudança arriscada de carreira, por exemplo.
Uma boa forma de cortar todos os tipos de vieses é “analisar o oposto” das suas conclusões. Esta técnica é exatamente o que parece: você tenta encontrar todas as razões pelas quais a sua crença pode estar errada, como se estivesse interrogando a si próprio.
Diversos estudos mostraram que isso nos leva a pensar de forma mais analítica sobre uma situação. Em testes de laboratório, este raciocínio sistemático é comprovadamente muito mais eficaz que simplesmente dizer às pessoas que “pensem racionalmente”.
É claro que isso só é possível se você conseguir aceitar as suas falhas. O primeiro passo é reconhecer o problema. Mas talvez você ache que não precisa deste conselho — enganar a si próprio é algo que só aflige os demais, pois você é totalmente honesto consigo mesmo. Neste caso, esta pode ser a sua maior ilusão de todas.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Worklife.
Fonte: BBC Brasil