- Mariana Sanches
A greve em Hollywood é a faceta mais evidente (e glamourosa) de um movimento sindical que vem ganhando força e produziu em 2023 o verão com maior número de trabalhadores dispostos a cruzar os braços nos últimos 50 anos nos Estados Unidos.
Entre roteiristas, atores e trabalhadores sindicalizados de Hollywood, cerca de 175 mil pessoas aderiram à greve desde meados de julho e deixaram de promover dois blockbusters, Barbie e Oppenheimer.
Por sua vez, os 340 mil funcionários do serviço postal americano, o UPS, aprovaram uma paralisação total com início marcado para 1º de agosto.
Sozinho, o movimento representaria a maior greve no país em 63 anos. Dez dias de interrupção nos serviços de entrega de correspondências custariam cerca de US$ 7 bilhões (R$ 34 milhões) à empresa.
Mas uma semana antes de os trabalhadores abandonarem seus postos, os patrões voltaram à mesa de negociações e ofereceram um aumento que suspendeu, ao menos temporariamente, o início da paralisação.
Em julho, o sindicato dos metalúrgicos, o United Auto Workers, anunciou que está pronto para iniciar uma greve dos seus 150 mil associados caso as chamadas Big Three de Detroit (as montadoras Ford, Stellantis e General Motors) não concordem com os termos pleiteados para as renovações de contratos em setembro. As negociações estão em curso.
Em todo o país, conforme o mapeamento da Escola de Relações Laborais e Industriais da Universidade Cornell, estavam em curso, no início de agosto, quase 900 greves — mais de 300 delas na Califórnia, o Estado responsável por quase 15% do Produto Interno Bruto (PIB) americano.
Segundo especialistas em mercado de trabalho dos Estados Unidos ouvidos pela BBC News Brasil, 2023 representa um ápice no histórico recente de reavivamento do sindicalismo no país.
A tendência já havia sido notada em 2022. Um relatório de fevereiro do centro de estudos Economic Policy Institute notou aumento de quase 50% no número de trabalhadores envolvidos em grandes greves entre 2021 e o ano passado.
O ano de 2023 deve ser marcado por um novo salto. Enquanto o país contabilizou 23 grandes mobilizações (com adesão ao menos alguns milhares de empregados) em 2021, houve até agora, em 2023, 44 paralisações com esse mesmo perfil.
O vigor dos movimentos — e o temor de seus efeitos — levaram o presidente americano, Joe Biden, que se autodeclara “orgulhosamente pró-trabalhadores”, a apelar ao Congresso em dezembro passado para desarmar um movimento que ameaçava paralisar 115 mil ferroviários do país.
Nos Estados Unidos, o Parlamento tem o poder de impor acordos laborais e impedir greves de alguns serviços essenciais. Biden argumentou que a greve de trabalhadores das estradas de ferro poderia devastar a economia do país.
Auge nos anos 1970 e queda a partir dos 1980
“O nível de atividades grevistas que estamos vendo agora se equiparam ao que tínhamos nos anos 1970”, diz à BBC News Brasil Nelson Lichtenstein, diretor do Centro de Estudos do Trabalho, Emprego e Democracia da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara.
“Nos anos 1980 e 1990, os sindicatos viam as greves como atividades muito perigosas, que poderiam resultar em sua dissolução e que seria melhor fazer concessões, uma posição mais passiva. Agora, sindicatos entraram no modo ofensivo, o que não víamos há muito, muito tempo.”
Segundo Lichtenstein, fenômenos como a globalização, que transferiu empregos fabris dos Estados Unidos para países como México ou China, o aumento de empregos em serviços, historicamente menos organizados em termos sindicais, e condições econômicas desfavoráveis explicam o enfraquecimento dos sindicatos naquele período.
Um episódio em 1981, durante o governo de Ronald Reagan, exemplifica — e, para alguns, determina — a fragilidade do movimento sindical, que se manteria nas décadas seguintes.
Na ocasião, Reagan demitiu 11 mil controladores de tráfego aéreo que entraram em greve por melhores condições de trabalho.
“Eles perderam o emprego, o sindicato foi destruído. Foi um desastre, e muitos outros empregadores, vendo o modelo Reagan, se deram conta de que podiam fazer o mesmo, o que levou a uma espiral de perda de direitos”, diz Lichtenstein.
Curiosamente, o mesmo Reagan que produziu o que os especialistas consideram o maior golpe contra o movimento sindical da história recente do país foi o líder dos sindicatos dos atores de Hollywood que, na década de 1960, fizeram a última grande paralisação da indústria antes da greve atual.
O modelo Reagan não só desarmou as táticas dos sindicatos, mas os tornou instituições impopulares nos Estados Unidos.
A taxa de aprovação popular à atividade foi diminuindo até que, em 2009, menos da metade dos americanos a apoiavam.
Uma tendência que foi revertida na mesma velocidade em que as greves ressurgiram na economia americana nos últimos anos.
Uma pesquisa de opinião feita pelo Instituto Gallup, em agosto de 2022, apontou que os sindicatos eram aprovados por 71% da população, o maior patamar desde 1965.
O que explica o retorno do sindicalismo à cena?
Os próprios sindicalistas creditam à pandemia — e seus efeitos sobre os trabalhadores — o ressurgimento das greves.
“Durante a covid, os trabalhadores na linha de frente fizeram um trabalho incrível. Mas, quando eles foram pedir aumento, folga e licença maternidade remuneradas, a resposta dos presidentes de empresas é de que não há recursos para isso”, diz Catherine Feingold, diretora internacional do AFL-CIO, maior federação sindical dos Estados Unidos, que representa 10 milhões de trabalhadores.
“Mas todos sabemos que há dinheiro, porque os presidentes de empresas nos Estados Unidos ganham 360% do salário médio de um trabalhador do país. Os trabalhadores estão cheios, as coisas precisam mudar, e fazer greve é uma ferramenta poderosa que garante que eles tenham um lugar à mesa.”
Para os economistas, porém, a explicação está menos nos sentimentos dos trabalhadores e mais nas condições do mercado de trabalho.
“O aperto no mercado de trabalho explica o tipo de poder de barganha que os trabalhadores estão experimentando agora. Uma das maneiras de medir isso é verificar quantas vagas anunciadas há e quantas pessoas estão desempregadas no momento”, afirma Jagadeesh Sivadasan, professor da Escola de Negócios da Universidade de Michigan.
“Durante a Grande Recessão de 2008, eram seis trabalhadores e meio para cada vaga disponível. De lá pra cá, isso vem caindo e agora há 1,5 vagas disponíveis para cada desempregado.”
A consequência lógica disso é que, se há mais demanda por trabalho do que oferta de trabalhadores, empregados estão em situação melhor para negociar salários e condições de trabalho.
Não à toa, os salários no país têm crescido em níveis eventualmente superiores ao da inflação.
Segundo Sivadasan, o pleno emprego também o que explica um fenômeno batizado pelos economistas como “A Grande Demissão”.
Entre 2021 e 2022, mais de 90 milhões de pessoas se demitiram nos Estados Unidos.
Para o economista da Universidade de Michigan, isso se explica pelo fato de que os trabalhadores trocaram de emprego por outro que consideravam melhor, quando a demanda por profissionais estava em alta, e não por um abandono em massa do mercado de trabalho.
“Durante a pandemia, muitos trabalhadores descobriram novas habilidades, mudaram de setores, se adaptaram”, diz Sivadasan.
Por fim, fatores demográficos também parecem ter seu peso. Desde a pandemia, restrições do governo americano reduziram drasticamente a migração ao país, o que reduziu também o número de trabalhadores disponíveis.
“Além disso, os babyboomers [pessoas nascidas entre 1946 e 1964] estão deixando [o mercado de trabalho], se aposentando, e vemos que o perfil dos trabalhadores mudou, com menos americanos jovens dispostos a desempenhar funções como a de motorista de caminhão, por exemplo”, diz Sivadasan.
Do mesmo modo, a força de trabalho de remuneração mais baixa tem se tornando crescentemente latina.
Economistas e sindicalistas sugerem que esses trabalhadores trazem referências culturais de seus países, que, frequentemente, têm um forte histórico sindical.
Isso pode estar contribuindo, em alguma medida, para o ressurgimento do sindicalismo nos Estados Unidos, segundo os especialistas.
Há ainda a articulação direta entre federações americanas e movimentos latinos, como o brasileiro.
Durante o período em que o presidente Luis Inácio Lula da Silva (PT) ficou preso em Curitiba, no Paraná, lideranças da AFL-CIO o visitaram.
Lula teve um novo encontro com os sindicalistas em Washington D.C. em fevereiro durante uma visita oficial ao país.
“Temos uma forte relação histórica e atual com o movimento sindical brasileiro”, afirma Catherine Feingold, da AFL-CIO, que esteve com Lula em fevereiro.
“Precisamos ter relações fortes com os movimentos trabalhistas no Brasil e em toda a América Latina. Fazemos parte da Confederação Sindical das Américas, que é como coordenamos as políticas do Canadá até o Chile. Isso é muito importante para nós.”
Ela menciona ainda uma agenda trabalhista comum entre Lula e Biden, cuja candidatura à reeleição tem o apoio da AFL-CIO.
Em setembro, às margens da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, os dois presidentes devem conversar sobre regulações trabalhistas para serviços por aplicativos.
A ascensão dos sindicatos deve inclusive acirrar a disputa pelo voto dos trabalhadores nas eleições presidenciais de 2024 nos Estados Unidos.
Biden tem uma relação histórica com movimentos trabalhistas e defende a reindustrialização do país, com a repatriação de cadeias produtivas.
Seu principal rival, o republicano e ex-presidente Donald Trump, tem se esforçado em demonstrar que defende os trabalhadores americanos e suas demandas, privilegiando a produção nacional e impondo barreiras protecionistas na política econômica exercida em seu mandato, entre 2017 e 2021, e que ele tenta reeditar.
“Acredito muito nos trabalhadores. E parte do nosso trabalho tem sido atrair democratas e sindicalistas para a nossa causa. Então, tem coisas que Lula defende nas quais nós acreditamos”, disse à BBC News Brasil Steve Bannon, principal ideólogo do trumpismo.
Lichtenstein nota que existe uma disputa entre direita e esquerda pela arena sindical.
“Há uma revolta moral da classe trabalhadoras contra promessas que se mostraram vãs, como as grandes melhorias de vida que deveriam vir a partir das inovações do Vale do Silício, e que não aconteceram, e um senso comum de que as elites são corruptas ou falidas”, afirma o professor.
“Por vezes, esse sentimento é encampado por movimentos de direita, movimentos de cunho fascista, que se apoiam precisamente no apelo às classes trabalhadoras.”
Os limites do movimento sindical
Apesar desse evidente ressurgimento do sindicalismo, especialistas alertam para o fato de que alguns indicadores seguem baixos e apontam limites para a onda de greves.
“Só 6% dos trabalhadores do setor privado são sindicalizados e só tem havido greves entre trabalhadores sindicalizados”, diz Lichtenstein.
Sivadasan vai na mesma direção ao apontar que o aumento da aprovação aos sindicatos e do número de greves não foi acompanhado de um salto no número de uniões trabalhistas ou de trabalhadores sindicalizados.
“Em 1979, havia 21 milhões de trabalhadores em sindicatos e, hoje, há 14,3 milhões. Verificamos um leve aumento no número entre 2021 e 2022, e temos ouvido sobre o primeiro galpão de estocagem da Amazon com trabalhadores sindicalizados, ou a primeira loja da Starbucks com sindicato, mas ainda é pouco em relação à força de trabalho”, diz o economista.
“Se os sindicatos tiverem sucesso nessas grandes empresas, acho que aí sim poderá ter uma chance de vermos um efeito dominó, com sindicalização em massa.”
Ao contrário do que acontece no Brasil, onde sindicatos são estabelecidos por categorias profissionais nos Estados, nos Estados Unidos, cada fábrica ou loja precisa aprovar uma instituição própria.
Segundo Feingold, isso facilita constrangimentos dos empregadores para impedir a organização dos trabalhadores e limita as possibilidades de acordos coletivos, enfraquecendo o poder de barganha de funcionários frente a patrões.
Um projeto de lei para permitir sindicatos setoriais tramita no Congresso americano, mas não há qualquer perspectiva de que seja aprovado até o momento.
Por fim, o aprofundamento ou estancamento da tendência sindical nos Estados Unidos deve depender de outros dois fatores, segundo especialistas.
O fluxo de imigrantes é um deles. Se aumentar, a pressão sobre o mercado de trabalho tende a diminuir, porque haveria mais gente para assumir postos de trabalho, fragilizando a condição de barganha dos trabalhadores.
Enquanto isso, a continuidade da escalada de juros do banco central americano, o FED, que vem tentando assim conter a inflação do país ao esfriar a atividade econômica, pode ter influência direta na força dos trabalhadores para negociar melhores salários e condições de trabalho.
Fonte: BBC Brasil