É possível resumir as duas primeiras décadas do século 21 em apenas uma frase? Difícil. Talvez seja mais fácil resumi-las em cinco letras: China.
Do comércio internacional ao aquecimento global, das novas tecnologias à exploração do espaço, a maior nação do planeta deixou sua marca em quase tudo que ocorreu nas últimas duas décadas.
Com 1,4 bilhão de habitantes, a China começou o novo milênio dona de um PIB (Produto Interno Bruto) de US$ 1,2 trilhão. Vinte e três anos depois, ele batia os US$ 17 trilhões, o segundo maior do planeta, com analistas projetando que na década seguinte o país superaria os Estados Unidos como a maior economia do mundo. Em 20 anos, nenhum país cresceu e se transformou tanto como a República Popular da China.
Entrada na OMC
A incrível expansão comandada pelo Partido Comunista Chinês (PCC) começou em 1980, com as reformas instituídas pelo líder nacional Deng Xiaoping. À frente do país desde 1976, quando morreu o fundador da república comunista, Mao Tse-Tung, Deng decidiu promover a adoção do capitalismo na economia, mantendo a centralização comunista na política.
Depois de apenas 20 anos, na virada do milênio, veio o reconhecimento internacional do avanço obtido pelos chineses. Em novembro de 1999, com a assinatura de um acordo com os Estados Unidos, a China eliminou barreiras à entrada de produtos e serviços estrangeiros em seu mercado – e iniciava seu caminho rumo à entrada na Organização Mundial do Comério (OMC).
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“O acordo obriga a China a cortar tarifas em 23% em média e promete maior acesso ao relativamente fechado mercado chinês para tudo, de serviços financeiros a telecomunicações e filmes de Hollywood”, escreveu o site da rede americana CNN no dia seguinte à assinatura.
O governo americano defendeu a nova relação com a China como benéfica para o mundo todo. “O acordo China-OMC é bom para os Estados Unidos, é bom para a China, é bom para a economia mundial”, afirmou o então presidente dos EUA, o democrata Bill Clinton.
Em seguida, seria apenas uma questão de formalizar a aceitação do novo papel da China pela comunidade internacional, o que aconteceu em novembro de 2001, na rodada de negociações de comércio em Doha (Qatar).
No final do primeiro ano do novo milênio, em 11 de dezembro, a China tornava-se oficialmente membro da Organização Mundial do Comércio.
A abertura do mercado doméstico chinês representava desafios para o regime em Pequim, especialmente no mercado de trabalho. Como lembrou texto da BBC News em novembro de 1999, devido ao acordo com os EUA “o desemprego poderá aumentar significativamente, com suas ineficientes indústrias estatais enfrentando uma concorrência crescente”.
Num primeiro momento, o aumento realmente aconteceria, porém numa proporção menor do que se poderia esperar.
Dos 3,3% registrados em 2000, a taxa de desemprego subiria para 4,6% em 2003, mas a variação ficaria por aí.
Nos anos seguintes, o desemprego chinês continuaria na faixa dos 4%, atingindo seu maior pico em 2009, ano da crise global, com 4,7%, e chegando a 5,2% em 2023.
Nas duas décadas após a entrada na OMC, o governo chinês conseguiria evitar grandes impactos negativos da medida, enquanto aproveitava a nova liberdade de operar comercialmente no exterior.
Em vez de o mundo dominar a China, Pequim espalharia sua marca pelos quatro cantos do planeta.
Essa expansão chinesa não incluía apenas benefícios econômicos e políticos. O comando comunista do gigante asiático estava determinado a construir uma nova imagem do país, moderna e positiva.
Uma das principais vitórias nesse sentido veio ainda em 2001. Em julho daquele ano, Pequim, a capital chinesa, ganhou a disputa para organizar os Jogos Olímpicos de verão de 2008. Assim a China reservava no calendário o momento em que, sete anos depois, o mundo se curvaria diante de sua força. Tudo conspirava em favor de um século chinês.
China e EUA
O novo papel da China no mundo, após sua abertura comercial, seria avaliado em grande medida pela sua relação com os Estados Unidos.
No primeiro semestre de 2001, Washington e Pequim envolveram-se numa disputa diplomática depois que um avião de reconhecimento americano chocou-se no ar com um caça da China, próximo à ilha chinesa de Hainan. O piloto do caça ficou desaparecido, provavelmente morto, e o avião americano foi danificado, sendo obrigado a fazer um pouso forçado na ilha. A tripulação de 24 pessoas e a aeronave foram mantidas sob custódia das autoridades chinesas.
Ao anunciar o incidente, em 1º de abril, o governo chinês culpou os Estados Unidos pela colisão, enquanto mantinha detidos os que ocupavam a aeronave considerada espiã pelos chineses. Após o tenso período, em 11 de abril a China anunciou a libertação dos tripulantes, depois de receber uma carta do embaixador americano dizendo que o presidente George W. Bush “lamentava muito” a perda do piloto.
O retorno do avião só foi confirmado no fim de maio, o que levou a grande especulação sobre quais informações secretas os chineses poderiam ter obtido ao vasculhar a aeronave americana.
Os Estados Unidos continuariam com seu trabalho de reconhecimento e espionagem do litoral chinês, próximo do Japão, Coreia do Sul e Taiwan – ilha que o regime comunista sempre considerou pertencente à China.
Da parte de Pequim, essa espionagem seria constante fonte de incômodo e suspeita.
Nada disso, porém, impediu que em fevereiro de 2002 o presidente Bush fizesse uma importante visita à China, marcando os 30 anos desde a ida de Richard Nixon ao país, em 1972, a primeira de um presidente americano desde a fundação do regime comunista, em 1949.
O encontro entre Bush e o então presidente chinês, Jiang Zemin, foi cordial e repleto de promessas de cooperação mútua.
Apesar da cordialidade na política, um dos mais claros resultados da entrada da China na OMC foi a penetração de seus produtos em outros mercados. Com custos mais baixos de produção, os fabricantes chineses de roupas, brinquedos e equipamentos eletrônicos tornaram-se extremamente competitivos.
No caso dos EUA, o que se viu foi uma avalanche. Em 2000, os Estados Unidos já tinham com a China um significativo déficit comercial – importações em valores maiores que suas exportações – de US$ 83,8 bilhões, segundo o órgão americano Census. Em apenas sete anos, esse déficit triplicaria, chegando a US$ 259 bilhões.
Quando Bush recebeu na Casa Branca o sucessor de Jiang Zemin na Presidência da China, Hu Jintao, em abril de 2006, o clima era bem diferente.
Nos Estados Unidos, o que muitos repetiam era que a China roubava empregos americanos. “Os americanos gastaram US$ 200 bilhões a mais em importações chinesas do que os chineses gastaram em bens dos EUA”, escreveu a rede CNN em sua reportagem sobre o encontro.
Hu disse que a China estava se esforçando para reduzir essa diferença, mas reclamou que Washington restringia a venda de produtos de alta tecnologia que poderiam também ter uso militar. O fato é que, a partir de meados da década de 2000, a economia passou a pautar a interação entre Washington e Pequim.
Êxodo rural
A história da explosão econômica da China na primeira década do século pode ser contada em números, todos impressionantes. Em 2000, o Produto Interno Bruto (PIB) do país era de US$ 1,2 trilhão. Com taxas anuais de crescimento entre 8% e 14% de 2001 a 2010, o PIB chinês disparou no período. Chegou aos US$ 5 trilhões em 2009 e atingiu US$ 6 trilhões no ano seguinte.
Em apenas uma década, a economia chinesa foi multiplicada por cinco. Com crescimento populacional relativamente controlado, o PIB per capita acompanhou a trajetória: foi de US$ 1.053, em 2001, para US$ 4.550 em 2010.
O sucesso chinês também pode ser descrito por meio de suas grandes cidades. Desde que a opção pelo capitalismo de Estado foi feita pelo regime chinês, nos tempos de Deng Xiaoping, o governo promoveu a criação de grande centros urbanos e industriais.
O gigantesco êxodo rural fez com que a população urbana do país passasse, segundo o Banco Mundial, de 191 milhões em 1980 – em torno de 20% do total nacional – para cerca de 600 milhões em 2007 – cerca de metade da população do país.
Entre os mais importantes centros, estava Shenzhen, na província de Guangdong, na costa sul do país, diante de Hong Kong. Em 1979, Shenzhen era uma pequena cidade rural, de 50 mil habitantes. Um ano depois, o governo fez de Shenzhen uma das Zonas Econômicas Especiais (ZEE) do país, onde o capitalismo chinês seria testado, com leis e práticas econômicas atraentes ao investimento estrangeiro.
Após 20 anos de crescimento ininterrupto, no novo milênio Shenzhen consolidou-se como uma das estrelas da revolução econômica da China. Seu tamanho acompanhou sua crescente importância: a população de Shenzhen, que em 2001 já era de mais de 7 milhões de habitantes, chegaria a mais de 12 milhões em 2020.
Shenzhen tornou-se um centro industrial de onde saíam produtos dos mais variados. A fabricante de sofás DeCoro foi um exemplo do caminho escolhido por muitos empresários estrangeiros: fabricar produtos a custo bastante reduzido e, com isso, aumentar sua competitividade internacional.
Com sede em Shenzhen, a DeCoro havia aumentado seu faturamento 20 vezes desde sua abertura, em 1998, até 2002. “O que a China oferece à DeCoro é muita mão-de-obra barata”, disse à BBC News o dono da empresa, o italiano Luca Ricci. Segundo a BBC, Ricci avaliava que seus sofás custariam 40% a mais se fossem feitos à mão na Itália.
Rapidamente o país passou a despertar o interesse de fabricantes de produtos de alta tecnologia, inclusive americanos, como a Apple. A chegada oficial da criadora dos computadores Macintosh ocorreu em 2001, com a abertura de uma empresa em Shanghai.
“A explosão da produção de mais alta tecnologia foi incentivada por Pequim, cujos líderes buscavam levar as fábricas para produções de mais valor do que brinquedos de plástico e roupas”, escreveu o jornal The Wall Street Journal, em 2017.
A Apple entregaria a produção de seu revolucionário iPod, lançado em 2001, à Foxconn, fabricante de produtos de tecnologia que já trabalhava para marcas como Compaq e Intel.
Criada na década de 1970, em Taiwan, a Foxconn abriu sua fábrica em Shenzhen no final dos anos 1980. A unidade, sua primeira na China comunista, se tornaria a maior da empresa – suas linhas de produção na cidade, localizadas no Parque de Ciência e Tecnologia Longhua, chegariam a contar com 300 mil trabalhadores.
Shenzhen foi uma das quatro primeiras Zonas Econômicas Especiais chinesas. Selecionadas pelo regime para liderar o desenvolvimento nacional, essas áreas do país foram, a partir de 1980, os grandes centros urbanos e industriais na liderança do capitalismo chinês.
Ao lado de Shenzhen, fizeram parte da lista inicial Zhuhai e Shantou, também no sul, e Xiamen, mais ao norte. Em 1984, a ilha de Hainan, no extremo sul, também foi elevada ao status de ZEE. No mesmo ano, o governo anunciou o estabelecimento de 14 Cidades Litorâneas Abertas, um grupo de grandes cidades, entre elas Xangai, abertas a investimentos estrangeiros.
No novo milênio, porém, a China identificou a necessidade de diversificar geograficamente seus esforços de fomento da indústria e das práticas capitalistas.
Em 2010, a cidade de Kashgar, no extremo oeste da China, foi elevada a Zona Econômica Especial, num encontro entre a modernidade do século 21 com as tradições da antiga Rota da Seda.
“Essa terra era antes um deserto. Ninguém estava interessado nela”, disse um comerciante local citado numa reportagem do jornal americano Los Angeles Times, de novembro de 2010. “Agora, pessoas ricas do leste estão vindo e comprando tudo que eles podem.”
O discurso de eliminar disparidades regionais também permitia que Pequim fortalecesse sua presença em regiões mais distantes, enfraquecendo culturas e tradições locais. No caso de Kashgar, muitos alegavam que o investimento na região permitia maior controle e repressão dos uigures, uma minoria muçulmana.
A estratégia continuou, e em 2012 Pequim anunciou o plano de implantação de uma nova ZEE longe da costa leste: a Zona Econômica da Planície Central, englobando toda a província de Henan, onde fica a cidade de Zhengzhou – uma antiga capital chinesa.
Pouco desenvolvida na era moderna, em comparação com o leste, Henan é considerada o ponto de origem da civilização chinesa.
Devido à natureza de grande produtora agrícola da região, responsável em grande medida pela segurança alimentar da China, a nova ZEE teria características distintas. Em vez de apenas promover a industrialização, a ideia era modernizar a agricultura na província.
A cidade de Zhengzhou, entretanto, já vinha sendo desenvolvida de forma especial desde o início do século. Em 2000, foi estabelecida a Zona de Desenvolvimento Econômico e Tecnológico de Zhengzhou, e no ano seguinte o governo chinês iniciou o processo de construção da Nova Área de Zhengzhou. O município basicamente ganhou uma nova cidade, para ser posteriormente ocupada.
Nessa moderna e reformulada Zhengzhou, nasceu uma nova e impressionante empreitada envolvendo a Apple. Em 2011, foi aberta na cidade uma nova unidade da Foxconn, dedicada à produção de iPhones. Após seis anos, ela já contava com cerca de 250 mil funcionários. O gigantismo de toda a operação fez com que Zhengzhou passasse a ser conhecida como a “Cidade iPhone”.
Imagem internacional
Na primeira década do século, cresceram as denúncias e as preocupações a respeito das condições de trabalho nas enormes fábricas chinesas.
O olhar estrangeiro voltou-se em particular à Foxconn e sua fabricação de produtos da Apple. Em junho de 2006, o jornal britânico The Mail on Sunday investigou a produção do iPod na fábrica da Foxconn em Shenzhen e expôs as péssimas condições dadas aos trabalhadores.
“É como você estar no Exército”, disse ao jornal uma funcionária de 21 anos. “Eles nos fazem ficar em pé no mesmo lugar por horas. Se nós nos mexemos, somos punidos sendo forçados a ficar em pé por mais tempo.”
A Apple prometeu investigar as alegações. Segundo um porta-voz, citado pela rede CNN, “a Apple está comprometida em assegurar que as condições de trabalho nas nossas redes de fornecedores sejam seguras, que os trabalhadores sejam tratados com respeito e dignidade”.
Anos depois, em 2009, um funcionário da Foxconn em Shenzhen, de 25 anos, se suicidou pulando do alto de seu prédio. Dias antes, segundo uma testemunha, ele havia sido espancado e detido por seguranças da empresa após ter perdido um protótipo de iPhone que deveria ser enviado à Apple.
O que inicialmente parecia um caso isolado tornou-se uma crise. Em 2010, ao menos dez trabalhadores da Foxconn em Shenzhen se mataram, em meio a outras tentativas de suicídio.
“A empresa disse que está levando as mortes a sério, embora uma investigação do governo local não tenha responsabilizado as condições de trabalho”, escreveu a BBC News em maio daquele ano. Dias depois, um funcionário deu um depoimento ao Serviço Chinês da BBC. “Muitas pessoas acham que seja provavelmente por causa do estilo de gerenciamento, que é como um treinamento militar.”
A Foxconn informou na época que estava colocando terapeutas à disposição dos trabalhadores, instalando novas áreas de lazer nas fábricas e elevando salários.
Em junho de 2010, o co-fundador e então CEO da Apple, Steve Jobs, defendeu sua fornecedora. “A Foxconn não é uma ‘sweatshop'”, disse, referindo-se ao termo usado para descrever fábricas que exploram seus empregados. “Você vai nesse lugar, e é uma fábrica, mas eles têm restaurantes e cinemas e hospitais e piscinas. Para uma fábrica, é muito bom.”
Em 2012, uma investigação da entidade americana Fair Labor Association (FLA, em português Associação por Trabalho Justo), feita a pedido da Apple, identificou vários problemas nas fábricas chinesas. Seu relatório sugeriu melhorias salariais, redução de horas trabalhadas e aumento da segurança dos funcionários. A Apple e a Foxconn comprometeram-se a adotar todas as recomendações.
As denúncias sobre condições ruins de trabalho afetavam a imagem chinesa no exterior.
Enquanto crescia de forma espantosa e avançava sobre os quatro cantos do mundo, a China tentou mudar alguns aspectos negativos de como era vista pela comunidade internacional – para muitos, era uma nação poluidora, exploradora de trabalhadores e responsável por abusos de direitos humanos.
Um grande marco nesse esforço de melhoria de imagem foram os Jogos Olímpicos de 2008, realizados em Pequim. Depois de meses de tensos preparativos – incluindo protestos em favor da independência da província do Tibete, durante a passagem da tocha pelo país -, a China realizou uma cerimônia de abertura de encher os olhos.
Às 8 horas e 8 minutos da noite do dia 8 de agosto – o oitavo mês o ano – de 2008, a China abriu sua Olimpíada, apoiada na tradição asiática de que o número 8 traz sorte.
“Cerca de 10 mil pessoas participaram da cerimônia, vista pela televisão por um público estimado em 1 bilhão de pessoas, antes de os atletas desfilarem no estádio nacional”, registrou o site da BBC News. “Analistas dizem que são os Jogos mais politizados desde a Guerra Fria.”
Nas duas semanas seguintes, o que se viu foram competições primorosamente organizadas, em que os atletas chineses levaram seu país à liderança no quadro de medalhas.
Foram 48 medalhas de ouro da China, 12 a mais que os Estados Unidos, num total de 100 medalhas dos anfitriões.
Em muitos aspectos, o evento foi um sucesso. Um dos símbolos dos Jogos foi o estádio das cerimônias de abertura e encerramento, conhecido como Ninho do Pássaro. A bela e inovadora estrutura fora desenhada pelo artista Ai Weiwei, num trabalho que ajudou a inflar o orgulho nacional e do regime comunista. O artista, entretanto, se tornaria símbolo de uma das maiores fontes de imagem negativa da China: a repressão política.
Ai, um chinês de fama internacional, estabeleceu-se como um dos maiores críticos do regime, denunciando abusos de direitos humanos. Um dos temas de declarações do artista foi o terremoto na província central de Sichuan, em maio de 2008, em que cerca de 69 mil pessoas morreram. O número incluiu, segundo as autoridades, mais de 5 mil crianças, soterradas pelos prédios de suas escolas que sucumbiram ao tremor. O episódio expôs um escândalo de corrupção – as escolas teriam sido construídas fora dos padrões de segurança e qualidade.
Após seus constantes comentários sobre esse e outros problemas no país, Ai Weiwei foi mantido em prisão domiciliar em 2010, depois que as autoridades decidiram demolir seu estúdio em Xangai.
Em abril de 2011, o artista foi detido pela polícia antes de embarcar num voo para Hong Kong. Sua prisão, sem que seu paradeiro fosse revelado, gerou protestos diante de embaixadas da China em várias partes do mundo. Como disse na época o jornal britânico The Guardian, “defensores de direitos humanos veem sua detenção como parte de uma repressão mais ampla em que ativistas, dissidentes e advogados foram presos ou estão desaparecidos”. Após 81 dias na prisão, Ai foi libertado.
Mais preocupante ainda para o regime chinês eram as atividades de outro artista, o escritor e crítico Liu Xiabo. Conhecido dos meios literário e acadêmico desde os anos 1980, Liu tornou-se um energético defensor dos direitos humanos na China.
Envolvido indiretamente nos protestos de 1989 em Pequim, reprimidos no que ficou conhecido como “Massacre da Praça da Paz Celestial”, o escritor foi constantemente perseguido nos anos seguintes.
Em seu embate com o regime, Liu defendia o fim do regime de partido único e a adoção de um sistema democrático no país. Preso vários vezes e censurado, ele foi novamente detido em dezembro de 2008, julgado e condenado a 11 anos de prisão por “incitar a subversão”.
Num claro sinal da distância entre os valores e práticas do regime chinês e a comunidade internacional, em 2010 Liu ganhou o Nobel da Paz.
Apesar de posições polêmicas em outras áreas, como seu apoio à invasão do Iraque pelos Estados Unidos, o escritor foi reconhecido por seus anos de luta pacífica em favor da democracia na China.
Pequim condenou a escolha, classificando-a de “uma obscenidade”. Em junho de 2017, sofrendo de câncer, Liu Xiabo foi transferido da prisão para um hospital. Morreu um mês depois, aos 61 anos de idade. Sua morte não foi noticiada na China, onde o governo tentou censurar qualquer manifestação de apoio postada na internet, fortemente controlada pelo regime.
Tecnologia chinesa
Nas duas primeiras décadas do milênio, a tecnologia chinesa adquiriu qualidade, confiança e respeitabilidade, com produtos, sistemas e feitos reconhecidos mundo afora.
A China abriu sua primeira linha de trem de alta velocidade em 2008, entre as cidades de Pequim e Tianjin. Em 2019, segundo a rede de notícias estatal chinesa CGTN, o país tinha mais de 35 mil quilômetros de linhas de trem de alta velocidade – mais que todos os outros países juntos. Outros 10 mil quilômetros estavam em construção ou em planejamento.
Seus trens viajavam a uma velocidade de até 350 km/h, os mais rápidos do mundo. Incluindo linhas de trens de velocidade padrão, a malha ferroviária de passageiros da China chegou a 131 mil quilômetros em 2018, a segunda maior do mundo em extensão, atrás apenas da dos Estados Unidos.
A mesma velocidade de expansão foi vista também em outras áreas vitais para a sustentação do crescimento econômico.
Menos de 20 atrás, apenas as cidades de Pequim, Ghandzou e Xangai eram servidas por rede de metrô. Atualmente, 25 cidades dispõem de metrô.
O país conta ainda com 34 portos capazes de receber navios de grande calado, criando uma estrutura fundamental à expansão do comércio exterior.
Em 2019, a China passou a ter a maior malha rodoviária do mundo com quase 150 mil quilômetros de extensão de auto-estradas. O setor aeronáutico acompanhou essa expansão e a China conta atualmente com mais de 200 aeroportos com planos de chegar a 450 em 2035.
Daxing, o novo aeroporto internacional de Pequim, é considerado o maior do mundo e estima-se que será também em breve o mais movimentado do planeta.
O apetite demonstrado plo governo chinês na construção de uma vasta infraestrutura foi alimentado por um enorme volume de compras de matéria prima que manteve em alta o preço de commodities, como ferro, cobre e outras, em níveis nunca vistos anteriormente.
Desde o começo do novo milênio, o Brasil, como um dos maiores produtores e exportadores mundiais dessas mercadorias, foi um dos países que mais se beneficiaram do boom provocado pelas compras chinesas.
Na tecnologia da computação, o país ganhou ainda mais reconhecimento. Uma das histórias de maior sucesso no setor nasceu perto da virada do milênio: a Tencent.
Fundada em 1998, a empresa começou criando o programa de mensagens via internet QQ, que se tornaria um dos maiores sistemas de mensagens do mundo, com centenas de milhões de usuários.
Anos depois, a empresa criaria o WeChat, rapidamente adotado pelos chineses como sua preferida plataforma social e que viria a ser abraçada como ferramenta para várias atividades, entre elas pagamentos. Em 2017, enquanto o QQ acumulava cerca de 800 milhões de usuários, o WeChat ultrapassava a casa do 1 bilhão.
Também perto da virada do milênio, em 1999, foi fundado o Alibaba, um futuro gigante do comércio eletrônico. Em 2014, quando abriu seu capital, ele bateu o recorde de maior IPO (sigla em inglês para Oferta Inicial Pública de ações) da história, levantando US$ 25 bilhões no mercado. Seguindo a onda da Tencent e do Alibaba, em 2000 nasceu o terceiro conglomerado da internet da China, o Baidu, chamado por muitos de Google chinês. Iniciado como uma plataforma de busca, o Baidu não apenas passou a liderar com folga o mercado de buscas online da China como também criou inúmeros novos serviços, num ritmo parecido com o gigante das buscas americano.
Na área de “hardware”, os chineses ganharam espaço no mercado internacional com nomes como Lenovo, fabricante de computadores, e suas várias marcas de telefones celulares – entre elas Xiaomi, ZTE e Huawei.
No entanto, talvez nada tenha solidificado a imagem da China como respeitáveis desenvolvedores de tecnologia como sua entrada num clube até então altamente restrito: a exploração espacial. Em outubro de 2003, Pequim colocou em órbita o primeiro astronauta chinês, Yang Liwei, a bordo de uma nave Shenzhou. A primeira chinesa a ir ao espaço, Liu Yang, viajou em 2012, também numa Shenzhou.
Na década de 2010, a China enviou sondas à Lua, fincando sua bandeira nacional no solo do satélite natural da Terra. Para o começo dos anos 2020, estava prevista a construção de uma estação espacial chinesa.
Xi Jinping e Donald Trump
Em março de 2013, por meio de uma confirmação pelo Congresso Nacional Popular, a República Popular da China ganhou um novo presidente: Xi Jinping.
Em pouco tempo, Xi iniciou uma nova era de nacionalismo e expansionismo em sua gigante nação. “Sua ambição, indicou ele em discursos nas semanas recentes, é liderar uma renascença chinesa para que a China possa reassumir seu lugar de direito no mundo”, escreveu o então correspondente da BBC News no país, Damian Grammaticas.
Apesar de o mundo ter se acostumado com as previsíveis mudanças de nome na Presidência chinesa a cada dez anos, desde 1993, a chegada de Xi Jinping tinha um ar diferente.
Logo nos primeiros anos na Presidência, Xi aumentou e expandiu seu poder pessoal, eliminando algumas características de liderança coletiva que havia no topo do comando político do Partido Comunista.
Na avaliação de Evan Osnos, jornalista da revista americana The New Yorker, em dois anos Xi mostrou-se “o mais autoritário líder desde de Mao Tse-Tung”. “Ele se instalou como chefe de novos organismos supervisionando a internet, a reestruturação do governo, segurança nacional e reforma militar, e efetivamente tomou controle dos tribunais, da polícia e da polícia secreta”, escreveu Osnos em março de 2015.
A tendência autoritária do novo líder chinês foi confirmada quando seus futuros dez anos como presidente deixaram de ser, necessariamente, apenas dez.
Em 2018, o mesmo Congresso que o elegera cinco anos antes aprovou uma mudança constitucional eliminando o limite de dois termos de cinco anos para o chefe de Estado. Com isso, Xi Jinping ganhou a possibilidade de permanecer no cargo por mais tempo e até mesmo continuar como presidente até morrer.
Enquanto Xi transformava a política em Pequim, o comando político na outra grande potência mundial também sofria um terremoto.
Em novembro de 2016, o republicano Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, iniciando um período turbulento de quatro anos na Casa Branca.
Um dos mais importantes temas de sua campanha foram exatamente as cinco letras que definiam o século: China. Seis meses antes de sua eleição, ele disse em discurso a seus seguidores que o país era responsável pelo “maior roubo da história do mundo” e que os EUA não podiam “permitir que a China continue estuprando nosso país”.
O ressentimento de trabalhadores americanos em relação aos chineses e seus produtos baratos ajudou Trump a derrotar a democrata Hillary Clinton na disputa presidencial.
Como presidente, após fracassadas negociações com Pequim, em 2018 Trump iniciou a adoção de tarifas sobre importações chinesas. Em março daquele ano, o líder americano anunciou tarifas sobre US$ 60 bilhões em importações vindas da China.
A China responderia com tarifas contra produtos americanos, e por quase dois anos as duas potências protagonizaram uma guerra comercial.
Segundo balanço da consultoria americana China Briefing, de agosto de 2020, até então os Estados Unidos haviam imposto tarifas sobre US$ 550 bilhões em importações chinesas.
Pequim, por sua vez, havia tarifado um total de US$ 185 bilhões em produtos americanos. Em janeiro de 2020, Trump e o então vice-premiê chinês, Liu He, assinaram um acordo comercial em Washington que interrompeu o conflito.
Segundo seus termos, a China se comprometia a aumentar seus esforços de proteção intelectual e a elevar em US$ 200 bilhões a aquisição de produtos americanos nos dois anos seguintes.
Apesar das disputas comerciais e de sua retórica anti-China, o líder americano costumava ser afável com Xi Jinping.
“Ele agora é presidente para a vida toda… (…) Ele conseguiu fazer isso, e eu acho ótimo”, disse Trump em 2018, num evento fechado, segundo um áudio obtido pela rede CNN. “Talvez a gente tenha que experimentar isso algum dia”, completou Trump, seguido de risos e aplausos. No ano anterior, no mesmo dia em que a morte de Li Xiaobo foi anunciada, Trump respondeu a um jornalista chinês que perguntava sobre Xi Jinping. “Ele é meu amigo. Tenho grande respeito por ele, um grande líder”, disse o americano, sem mencionar o dissidente.
Os elogios a Xi não impediram que Trump iniciasse novos confrontos com a potência asiática, agora no campo da tecnologia.
Determinado a impedir que a empresa chinesa Huawei se consolidasse como a maior fornecedora de sistemas de transmissão de dados 5G pelo mundo, Trump pressionou aliados para que optassem por alternativas.
Segundo Washington, a adoção da tecnologia chinesa criaria riscos de segurança, ao permitir potencial uso do sistema em ações de espionagem de Pequim.
Em julho de 2020, o Reino Unido cedeu à pressão americana e proibiu que suas empresas de telefonia comprassem novos equipamentos da Huawei a partir de 2021.
O governo britânico decidiu ainda que elas deveriam remover toda a tecnologia da fabricante chinesa até 2027.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro inicialmente disse que atenderia o pedido de Trump e também excluiria a Huawei dos plano de 5G do país.
Após a derrota do presidente americano em sua tentativa de reeleição, porém, o governo brasileiro manteve a empresa chinesa nos leilões do setor.
Em 2020, Donald Trump lançou novos ataques na direção de duas potências da internet chinesa: a rede social de vídeos Tik Tok e o aplicativo de mensagens WeChat. Seus argumentos também se baseavam em preocupações com segurança tecnológica e possível roubo de dados.
Trump assinou normas proibindo empresas do país de manter ligações comerciais com as plataformas chinesas e tentou banir o Tik Tok dos Estados Unidos.
No final de 2020, decisões judiciais bloquearam as tentativas do presidente de retirar o Tik Tok do mercado americano.
Um último motivo de tensão entre Washington e Pequim nos anos Trump foi a pandemia de covid-19, cujas consequências eram, segundo o americano, responsabilidade da potência asiática.
O novo coronavírus, que surgiu na cidade chinesa de Wuhan, atingiu o mundo todo e causou 400 mil mortes nos Estados Unidos. Durante meses, Donald Trump referiu-se ao vírus como “o vírus da China” e disse que o país pagaria um “alto preço” pela pandemia.
Com a derrota de Trump no pleito de 2020, a expectativa era de que o governo do democrata Joe Biden estabelecesse uma relação mais construtiva com a China.
Ambiente e fim da pobreza
A China encerrou as duas primeiras décadas do século 21 confirmando todas as previsões sobre sua transformação em superpotência.
Para muitos, o país foi além do que se imaginava, numa velocidade que seguiu surpreendendo o resto do mundo. A taxa anual de crescimento do PIB, que fora de 10% em 2010, passou a ficar abaixo de 7%, chegando a 6% em 2019.
Mesmo assim, a economia chinesa mais que dobrou, indo de US$ 6 trilhões em 2010 para mais de US$ 14 trilhões nove anos depois – e o PIB per capita avançou de US$ 4,6 mil em 2010 para US$ 10,3 mil em 2019.
Novas estimativas feitas em 2020 mostraram que a China deveria superar os EUA como a maior economia do mundo, em valor absoluto, em 2028 – cinco anos antes que previsões anteriores.
No começo do século 21, os chineses também obtiveram liderança ou domínio em partes do mundo onde antes pouco atuavam, como África e América Latina.
Donos da maior reserva externa do mundo, acumulada por saldos comerciais crescentes, os chineses tornaram-se grandes investidores em países africanos, como Nigéria, Angola e Quênia, assumindo a construção de enormes projetos de infraestrutura, como linhas ferroviárias que entre outras coisas facilitam o escoamento das matérias primas de que a China tanto necessita.
Na América Latina, os chineses adquiriram grande importância comercial como importadores de commodities, de soja a minério de ferro.
Em 2009, a China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil, ultrapassando de uma vez tanto a Argentina como os Estados Unidos.
Em 2019, a China respondia por mais de 65% de todo o saldo comercial brasileiro, segundo o Indicador de Comércio Exterior (Icomex) da FGV/IBRE.
Nessas duas primeiras décadas do novo milênio, o Brasil recebeu ainda um enorme volume de investimento direto chinês, aplicado na compra de diversas empresas dos setores de geração de energia, distribuição de água, infraestrutura e mineração entre outros. Empresas petroleiras chinesas arrecadaram diversos lotes no leilão promovido pela Petrobras para desenvolvimento de campos de água profunda na costa brasileira.
Mas é na África que a expansão internacional da China é mais expressiva, consistente e múltipla.
Segundo a universidade americana Johns Hopkins, desde o começo do milênio foram investidos perto de US$ 40 bilhões em mais de 20 países do continente africano envolvendo centenas de projetos que vão desde a exploração de petróleo e gás e extração de minérios (principalmente ferro, cobre, urânio e cobalto) à construção de estradas, portos e aeroportos por onde as matérias primas podem ser escoadas.
A vasta expansão econômica da China atingindo praticamente todos os cantos do mundo despertou críticas de que o governo chinês usa seu poderio para fortalecer sua posição geopolítica global.
Segundo esses críticos, através do dinheiro farto os chineses forjavam alianças políticas na esperança de também obter benefícios em fóruns supranacionais como a ONU.
Por exemplo, a China contaria a seu favor com o voto dos países parceiros em delicadas questões como o debate sobre a soberania de Taiwan da qual o governo chinês não abre mão.
Toda essa prosperidade econômica teve um preço: em 2007, a China tornou-se o país com mais emissões de dióxido de carbono (CO2, o gás carbônico) em todo o mundo, deixando para trás os Estados Unidos. O país, no entanto, passou a investir pesadamente em energia renovável, apesar de continuar dependendo significativamente de energia gerada com carvão.
Em 2018, um relatório do americano do Instituto para Economia em Energia e Análise Financeira (IEEFA) disse que a China assumira a liderança nos investimentos em energia limpa pelo mundo.
Na época o país já era responsável por 60% da fabricação global de painéis de energia solar e investia cada vez mais em usinas de energia eólica em regiões como Europa e Oceania.
Em setembro de 2020, Pequim anunciou seu plano de passar a reduzir o total de suas emissões de dióxido de carbono até 2030. Foi dito também que, até 2060, a China atingiria a chamada neutralidade de carbono – não emitir mais que a quantidade absorvida por florestas, solo ou oceanos.
Além da ambição de se tornar um exemplo no combate à emergência climática, a China se apresentava como referência na luta contra a pobreza.
Em novembro de 2020, o governo chinês anunciou ter acabado com a pobreza extrema no país. Segundo Pequim, 93 milhões de pessoas haviam sido retiradas da pobreza desde 2013.
A nova superpotência, que já havia conquistado mercados, dominado novas tecnologias e já explorava o espaço, anunciava não ter mais pobres entre seus 1,4 bilhão de habitantes.
Havia, porém, um novo e difícil desafio para o restante do século 21. Apesar de sua população bilionária, a China começava a terceira década do milênio tentando convencer seus cidadãos a ter mais filhos.
Após mais de 30 anos de sua chamada “política de um filho”, o governo anunciou em 2015 uma nova regra, agora estimulando que cada casal tivesse duas crianças.
A medida nasceu da preocupação com o envelhecimento da população e sua provável queda a partir de 2029, após atingir um pico de pouco menos de 1,5 bilhão – realidade de consequências negativas, como queda da mão-de-obra disponível e aumento dos custos com aposentados.
A nova e superpoderosa China – comunista na política, capitalista na economia e transformadora nas tecnologias – corria o risco de se tornar vítima de seu próprio sucesso.
Antes que isso pudesse acontecer, porém, a China já era um fator determinante para o destino do mundo inteiro. Os caminhos que seus líderes e suas empresas adotassem teriam sempre implicações importantes na vida e no futuro do restante do planeta. Ao final de 2020, ficara ainda mais difícil negar que o novo século era um século chinês.
Este artigo é parte da série especial “21 Histórias que Marcaram o Século 21”, da BBC News Brasil.