Um efeito devastador que paralisa o corpo e desconecta o usuário da realidade.
Uma paranoia combinada com taquicardia na qual a pessoa pode sofrer um “apagão”, paralisia temporária e não reconhecer amigos e parentes.
“Droga zumbi”.
“Piripaque do Chaves”.
Estes são os efeitos devastadores e nomes mais populares das drogas K, que foram banidas pela facção Primeiro Comando da Capital (PCC) nos locais sob seu controle onde há venda de entorpecentes.
A informação foi confirmada à BBC News Brasil por duas fontes que acompanham de perto o combate ao tráfico de drogas e que pediram para não ser identificadas.
A ordem teria sido, inclusive, documentada em uma escuta, de acordo com estas fontes.
Feita há um ano, na gravação, segundo as fontes, um membro do grupo criminoso que teve suas ligações telefônicas interceptadas com autorização da Justiça diz que o líder ordenou que a ordem fosse cumprida imediatamente.
Os reflexos desse “salve”, como são chamados os anúncios da facção, já se refletem nas apreensões feitas em São Paulo, principal mercado do PCC.
“Antes, K9 e K2 eram encontradas em 30% das operações. Hoje, esse número caiu para 10%”, diz uma fonte à reportagem.
Mas como as drogas K são produzidas, chegam ao Brasil e depois são distribuídas?
E por que o PCC, uma facção que tem no tráfico seu negócio mais lucrativo, decidiu vetar essas drogas em seus pontos de venda?
A BBC News Brasil conversou com delegados e especialistas em segurança pública para entender a dinâmica atual em torno das drogas K, que têm preocupado autoridades e, como parece, os próprios traficantes.
Os motivos do PCC para banir as drogas K
Segundo fontes ouvidas pela reportagem, o PCC proibiu o consumo das drogas K nas biqueiras, como são conhecidas as áreas onde são vendidas as drogas, em 2023.
A intenção seria a de não prejudicar o tráfico de outras drogas, a principal fonte de renda da facção.
A decisão foi tomada após líderes do PCC perceberem que o uso exagerado de K2 e K9 pelos jovens conhecidos por “vapor” e “avião”, que fazem o comércio nessas bocas de fumo, atraía a presença da polícia.
“Quando o cara consome isso na quebrada, ele pode cair e bater a cabeça, passar mal e isso leva o poder público a ir para lá, como polícia e ambulância. Isso chama muita atenção e causa confusão”, diz uma fonte ligada à polícia.
“Se o usuário chega lá para comprar drogas e vê polícia e resgate, ele dá um passo atrás e deixa de comprar ou procura outro lugar.”
Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o PCC também proibiu o uso de crack nas cadeias no início dos anos 2000 e que todas as decisões da facção são planejadas como em uma empresa.
Ao ser entrevistado, ele disse que não sabia desse veto, mas que fazia sentido pela lógica da facção.
“Eles (PCC) estão focados no lucro e tem esse aspecto de custos e benefícios no contexto de venda de drogas, por isso podem estar proibindo a K9″, diz Paes Manso, autor de A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil.
“É uma análise racional sobre um negócio bilionário. O PCC atua há 30 anos no mercado de drogas e tem uma visão empreendedora sobre ele.”
O pesquisador da USP lembra que há precedentes para isso na própria história do PCC.
A facção proibiu o uso de crack nos presídios no início dos anos 2000 para manter a ordem nas cadeias.
Como lembra Paes Manso, o médico Drauzio Varella dizia na época que o consumo da droga nas prisões era tão generalizado, principalmente no antigo presídio do Carandiru, que freá-lo era praticamente impossível.
Semanalmente, o Carandiru, que foi implodido e virou um parque na Zona Norte de São Paulo, tinha a “segunda sem lei”, recorda o pesquisador.
Assim era conhecido o dia em que os presos podiam fazer acertos de contas, como espancar ou até matar seus desafetos.
Paes Manso conta que era comum cinco ou seis pessoas serem mortas às segundas e diz que o crack “elevou esse número exponencialmente”.
Isso ocorreu porque a maioria destes acertos de contas passaram a ser causados por dívidas de crack.
“Assim como aconteceu com o crack, a proibição da K9 é uma avaliação de ordem e desordem”, diz Paes Manso.
“A desordem que ela causa no mercado é maior do que os ganhos. O crack tem potencial para causar isso fora das cadeias, mas a receita ainda parece valer a pena para eles.”
Paes Manso diz que uma ala do PCC defende que o crack seja proibido também nas ruas.
“Eles ainda não tomaram essa decisão porque o crack é uma droga que vai muito rápido para o cérebro”, diz.
“Uma pipada (fumar crack com cachimbo) causa um efeito instantâneo, e o usuário quer repetir o uso rapidamente. Assim, ele gasta uma fortuna em três dias. É uma droga muito lucrativa.”
O que são as drogas K
As drogas K surgiram a partir de um experimento, na década de 1990, para tentar produzir, de maneira sintética, as substâncias terapêuticas da maconha, explicam especialistas à BBC News Brasil.
Mas o que os cientistas produziram nesse estudo foi, na verdade, uma droga extremamente potentee ao menos cem vezes mais potente que a maconha.
Especialistas apontam que essas variedades de canabinoides sintéticos são um grupo de novas drogas que tem conquistado um espaço importante no mercado ilícito mundial.
Mais de 300 tipos diferentes foram identificados por polícias ao redor do mundo, explicou o toxicologista Maurício Yonamine, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, à BBC News Brasil.
Em pouco tempo, essas drogas se tornaram uma importante questão de saúde pública no Brasil por conta de seu alto potencial de dependência.
Elas são encontradas hoje principalmente nas regiões periféricas da Grande São Paulo.
Entre seus efeitos colaterais, estão agressividade, paranoia, arritmia cardíaca e até a morte.
As variedades mais comuns são conhecidas como K2 e K9, mas há outras no mercado.
Carlos Castiglioni, elegado do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), da Polícia Civil de São Paulo, explica que a diferença entre as drogas K está, basicamente, na forma de consumo.
“Essa droga é um líquido que, quando borrifado em folhas de plantas e chás em geral, convencionou-se chamar de K2”, diz Castiglioni.
“Mas, quando ela é colocada em papel ou cartolina para ser digerida ou consumida de maneira sublingual, convencionamos chamar K9.”
A origem do nome K2, segundo o delegado, foi em homenagem à segunda maior montanha do mundo, que fica entre a China e o Paquistão.
Isso porque a gíria em inglês para definir quando uma pessoa está sob o efeito de drogas é dizer que ela está high (alta).
Como a droga causa um efeito muito forte, ela foi batizada pelos usuários de K2.
O delegado do Denarc explica que os traficantes costumam bater no liquidificador diversas plantas secas para formar a base da droga.
Na mistura, há diversos tipos de chá e mato seco em geral.
“De vez em quando, eles usam uma quantidade bem pequena de maconha para dar um cheirinho e sabor da erva.”
Onde as drogas K são produzidas
De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, as drogas K consumidas no Brasil são produzidas principalmente na Índia e na China.
O líquido concentrado é exportado para o Brasil com facilidade, em frascos.
Cada um deles pode produzir milhares de doses da droga, segundo especialistas da Polícia Científica.
Ao chegar no Brasil, essa substância é diluída e misturada em outras substâncias antes de ser comercializada.
No entanto, explicam os especialistas, não há um padrão, e os traficantes fazem diversas misturas diferentes no momento de diluir, antes de vender a droga.
Alexandre Leahrt, diretor do Núcleo de Exames de Entorpecentes, da Superintendência da Polícia Técnico-Científica de SP, afirma que isso aumenta o lucro da facção, porque não é necessário ter um espaço para produzir.
Segundo ele, não há registros de laboratórios para fabricar drogas K no Brasil.
“Tudo indica que o princípio ativo vem do exterior e que existam apenas centros de síntese no Brasil, por isso essa diversidade de substâncias identificadas”, diz Leahrt.
“Cada laboratório dilui de uma maneira diferente, alguns colocam maconha e cocaína na mistura.”
Leahrt conta que, mesmo as drogas K encontradas em apreensões feitas em sequência e no mesmo bairro, são “completamente diferentes”.
Ele diz que, mesmo sendo classificadas como canabinoides e opioides sintéticos, as drogas K não podem ser comparadas com maconha.
“As drogas K fazem parte de grupos mais recentes de drogas, aplicados em substratos vegetais e papéis para serem consumidas”, explica.
“Por serem canabinoides, há essa correlação com a maconha, mas os efeitos são bem diferentes”.
A principal diferença, aponta Leahrt, é que o canabinoide sintético age com força total sobre dois receptores endocanabinoides existentes no corpo humano.
“Nós temos os receptores canabinoides CB1 e CB2 no nosso organismo. O canabinoide sintético age nos dois, ao mesmo tempo, e com força total, ao contrário do THC. Por isso a K9 causa esse descontrole muscular”, diz.
O especialista diz que, da mesma maneira como o canabinoide sintético se liga ao receptor no corpo humano com mais força, ele também desliga com mais potência e isso causa uma dependência imediata.
Para o diretor da Polícia Científica, no entanto, os principais problemas relacionados a drogas no Brasil ainda estão ligados ao uso de cocaína.
“Ela causa os maiores problemas de segurança pública. Boa parte das mortes violentas, acidentes de trânsito e homicídios estão ligados ao uso de cocaína. Além da Cracolândia e outros problemas públicos gravíssimos causados por essa droga”, diz.
Paes Manso diz que o fato de as drogas K estarem cada vez mais presentes em bailes preocupa a Facção, porque isso pode causar problemas com a comunidade que vive nas áreas onde atuam, além de chamar a atenção de autoridades.
“Pessoas estrebuchando na rua causam repúdio e rejeição das próprias comunidades, nas famílias e cria uma resistência ao tráfico muito maior”, diz o pesquisador.
“Isso implica causar um desequilíbrio social, porque não é interessante para a facção devastar um bairro inteiro e causar uma desordem assim.”
O PCC também avalia que precisa manter pontes com lideranças religiosas e comunitárias, diz Paes Manso.
“Eles não fazem isso por bondade, mas por uma visão empreendedora de mercado”, afirma.
“A proibição dos homicídios perto de ‘biqueiras’ teve esse aspecto racional de benefícios, e a K9 parece seguir o mesmo caminho.”
Fonte: BBC Brasil