Já aconteceu de você se lembrar perfeitamente de ter deixado as chaves em um certo lugar ± de forma que, se elas não estão ali, é porque alguém as pegou ± e depois descobrir que elas estavam todo o tempo no seu bolso?
Ou você, alguma vez, ouvir um amigo contar algo que aconteceu com você e a história dele ser bem diferente do que você se recorda?
Estas experiências nos deixam um tanto perturbados. Mas elas ocorrem com frequência e, às vezes, nem as percebemos.
“Todas as pessoas têm recordações falsas o tempo todo, mesmo as que acreditam ter a melhor memória do mundo”, garante a psicóloga Julia Shaw, do University College de Londres.
Shaw se refere particularmente à memória autobiográfica, “as lembranças das nossas vidas que vêm frequentemente acompanhadas de um rodapé intitulado ‘componentes multissensoriais’: recordar como se sentia, o que sabia, como via a si, como sonhava… com emoções fortes”.
“Essas [lembranças] são muito mais complexas do que [recordar] um evento”, explicou Shaw ao programa Life Scientific, da BBC.
Para se recordar de um evento — por exemplo, “no dia 11 de setembro de 2001, houve um ataque às Torres Gêmeas em Nova York” — não é preciso acessar muitos locais do cérebro.
Mas, quando revivemos uma experiência própria, é preciso conectar todas as partes do cérebro responsáveis pelas diferentes sensações, formando uma grande e complicada rede de neurônios.
Shaw adverte que as lembranças não são o registro exato do passado, como gostaríamos de imaginar. Segundo ela, estudos científicos já confirmaram, mais de uma vez, que a forma como recordamos é inevitavelmente defeituosa e costuma guardar pouca relação com eventos que podem ser verificados.
“Somos a nossa memória, somos esse imenso museu de formas inconstantes, essa porção de espelhos quebrados”, disse o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). Ele conseguiu compreender muito bem que as recordações são realidades dinâmicas, mutantes e imprecisas.
Mas, se “somos a nossa memória” e ela é tão pouco confiável… será que nós somos mentiras?
Em certo sentido, sim. Mas o fato de que nunca poderemos ter a certeza de que o que recordamos está certo não deve nos preocupar, segundo a especialista em lembranças falsas.
“Acredito que é uma visão muito importante de como funciona o nosso cérebro”, explica Shaw. “E, em última instância, o nosso cérebro não existe simplesmente para registrar o passado de forma perfeita e confiável. Ele está ali para navegar pelo presente e pensar no futuro.”
“Estas coisas maravilhosas e criativas são excelentes para resolver problemas, permitem que sejamos inteligentes, recombinam criativamente informações recolhidas no passado e as unem de forma que nunca havíamos feito antes, para criar uma nova história, uma nova solução ou uma nova ideia.”
“É para isso que ele é adaptado e, portanto, coisas como falsas recordações são um subproduto dessa incrível capacidade de inteligência”, afirma a psicóloga.
Shaw descreve as lembranças como bonecos de argila sem secar. “Cada vez que você volta a pegar uma peça, você a remodela e, potencialmente, faz outra muito diferente da anterior.”
“Você retira e coloca partes, porque esquece algumas ou toma emprestadas recordações de outras pessoas, ou de outras fontes”, explica ela. “O que é intrigante sobre as recordações é que nós não temos acesso à versão original, mas apenas àquela que fizemos da última vez.”
Intrigante ou perturbador?
Talvez ambos… e talvez tanto quanto os experimentos desenvolvidos por Shaw e por outros especialistas neste campo.
Implante de memórias
Shaw ficou conhecida por um experimento que fez parte do seu doutorado. Ela demonstrou como um grupo de estudantes cria lembranças falsas.
Não estamos falando de pequenos detalhes. Os estudantes acabaram descrevendo como, poucos anos antes, haviam agredido pessoas ou sido atacados por um animal – eventos que, na verdade, não haviam ocorrido.
Mas eles não fizeram aquilo sozinhos. Shaw os induziu a pensar assim em apenas três sessões. Ela empregou informações fornecidas pelos pais dos voluntários para implantar as recordações.
Depois de ganhar sua confiança, ela dizia, por exemplo, que seus pais haviam contado que, quando tinham 14 anos, eles atacaram alguém com uma arma e a polícia foi chamada.
“Depois, introduzia detalhes da vida real, como ‘o seu amigo Alan estava presente’, e dizia que aquilo aconteceu no lugar onde eles moravam naquela época”, explica Shaw. “É o suficiente para que alguém pense ‘talvez tenha acontecido’.”
Em seguida, ela se oferecia para ajudá-los a se recordar daquilo que ela sabia que não poderia ser recordado. E os orientava em exercícios de imaginação.
“No final, a quantidade de detalhes que eles me forneceram superou em muito as minhas expectativas”, conta a psicóloga.
E não foi só isso: “assombrosos 70% dos participantes do nosso estudo criaram falsas lembranças de atividades ilegais. Do ponto de vista puramente científico, é emocionante”, destaca ela.
E do ponto de vista humano?
Afinal, ela levou um grupo de voluntários a passar semanas com recordações muito desagradáveis, para depois revelar que eles haviam sido enganados.
A psicóloga ressalta que o estudo “passou por extensa aprovação ética, o que era natural porque foi uma grande manipulação”. E ela garante que, depois que explicou aos participantes do que se tratava o estudo, “a maioria se sentiu aliviada e nenhum deles se indignou – ou, pelo menos, eles não me contaram”.
Do seu ponto de vista, “foi uma grande experiência de aprendizado”.
“Nossas lembranças são influenciadas pelas pessoas, geralmente sem intenção, todo o tempo”, explica Shaw. “Por isso, acredito ser conveniente ensinar as pessoas a terem consciência disso e entender como funciona esse processo.”
Por que foi feito o estudo?
“Eu queria estudar algo denominado pensamento criminal”, explica ela. “Sempre me interessei pelo cérebro ‘normal’, não tanto pelas patologias, mas como as pessoas comuns podem se tornar delinquentes.”
Foi por isso que Shaw se perguntou se poderia fazer as pessoas se confessarem culpadas de crimes que não haviam cometido.
“Não só que eles dissessem que fizeram, mas que realmente acreditassem naquilo”, ela conta. “A resposta é: sim, é possível.”
Trata-se de uma manifestação da fragilidade “da cortina que separa a nossa imaginação da nossa memória”, como escreveu a psicóloga mais destacada neste campo, Elizabeth F. Loftus, que realizou experimentos similares.
No banco dos réus
A Associação Norte-Americana de Psicologia considera Loftus uma das psicólogas mais destacadas do século 20. Ela contribuiu para mudar a noção dominante até poucas décadas atrás, de que nossas lembranças seriam representações literais de eventos passados, guardadas em uma espécie de biblioteca mental.
Loftus escreveu dezenas de livros e afirma o contrário, que “a nossa representação do passado é uma realidade viva e em mutação”.
“Não é um lugar lá atrás que conserva tudo em pedra, mas um ser vivo que muda de forma, expande-se, encolhe e se expande de novo – uma criatura parecida com uma ameba”, segundo ela.
As recordações não são reproduzidas, mas sim reconstruídas.
Além de oferecer indicações fascinantes sobre o funcionamento da mente, as pesquisas sobre a ciência da memória tiveram repercussões na justiça penal, que depende muito das declarações de testemunhas e suspeitos.
Poucos psicólogos foram mais influentes do que Loftus para revelar como os procedimentos padrão neste campo podem contaminar a memória.
A linguagem empregada para descrever um evento pode alterar a forma de recordá-lo. Por isso, perguntas capciosas podem distorcer as declarações de suspeitos nos interrogatórios policiais e até os relatos das testemunhas de defesa ou de acusação.
Esta possibilidade faz com que especialistas como Loftus e Shaw sejam frequentemente chamadas para examinar provas em casos judiciais.
“Quase sempre, somos contratadas pela defesa, não porque desejamos, mas pela natureza do nosso trabalho”, destaca Julia Shaw. “Porque questionar a memória de alguém tem a capacidade de introduzir dúvidas razoáveis.”
Na maioria dos sistemas de acusação, as evidências da promotoria devem estar além de dúvidas razoáveis para validar a condenação criminal.
Se, em qualquer instância do processo, aplicando-se a ciência das lembranças falsas, forem detectadas possíveis manipulações que possam gerar detalhes distorcidos, alterados ou até recordações totalmente implantadas, “nós damos o sinal de alerta”, segundo Shaw.
Ela destaca que compreender como nossas recordações são frágeis e enganosas ajuda a evitar erros judiciais.
Parece ser algo benéfico, mas muitas pessoas se perguntam se questionar a memória de alguém nos tribunais pode tornar ainda mais difícil a tomada de depoimento das vítimas de delitos sexuais.
Diversos julgamentos de acusados de alto perfil contrataram Loftus como testemunha de defesa e parecem justificar esta preocupação, incluindo os julgamentos de Bill Cosby, dos jogadores de lacrosse de Duke, nos Estados Unidos, acusados de violação em 2006, e de Harvey Weinstein, entre outros.
É claro que a presunção de inocência sempre impera e que todas as pessoas merecem o direito de defesa.
Mas, nos casos de abuso, que frequentemente envolvem a palavra de um contra o outro, é particularmente difícil observar como a ciência da memória pode questionar as lembranças das vítimas que são obrigadas a reviver aquele momento.
“Precisamos ser muito cuidadosos e não considerar que as lembranças não são provas suficientes. Este não é o caso”, destaca Shaw.
“Se não pudéssemos contar com as recordações, nosso sistema legal entraria em colapso e certos tipos de delitos nunca seriam condenados.” O fundamental, para a especialista, é “educar o público”.
“Sempre aconselho que, se acontecer com você ou se você for testemunha de algo importante, faça um registro fora do cérebro”, afirma Shaw. “Você precisa entender como sua memória pode mudar para poder preservá-la ao máximo possível.”
Ouça o episódio do programa da BBC Rádio 4 “The Life Scientific” (em inglês), que deu origem a esta reportagem, no site BBC Sounds.
Fonte: BBC Brasil