Por que Ucrânia enfrenta sua pior crise desde que guerra começou

Mundo
  • Jeremy Bowen
  • Editor de internacional da BBC News

O verão está apenas começando na Ucrânia. E parece que vai ser uma estação perigosa.

Kharkiv – a segunda maior cidade do país, no extremo nordeste, perto da fronteira com a Rússia – está totalmente indefesa frente aos ataques aéreos russos.

Duas bombas teleguiadas destruíram uma superloja de bricolagem e um centro de jardinagem na tarde de sábado, 25 de maio. A loja estava repleta de clientes.

Enquanto a loja queimava, lançando fumaça preta por toda a cidade, Andrii Kudenov, gerente de uma das outras lojas do shopping center, observava em desespero.

“Os russos querem queimar tudo”, disse ele. “Mas não vamos desistir.”

“Muitas pessoas estavam ali porque agora está calor e começou a estação de jardinagem. Na loja, havia terra e plantas.”

Kudenov pegou seu telefone celular e mostrou fotos da superloja antes do ataque. “Veja que flores bonitas eles tinham aqui. E nenhum militar, todos eram civis.”

Dezenas de pessoas ficaram feridas e 15 mortes foram confirmadas, sem contar os desaparecidos.

Em toda guerra, os civis tentam preservar os traços das suas antigas vidas.

Enquanto o centro de jardinagem queimava, casais passeavam com seus cães. Nas magníficas praças do centro de Kharkiv, os cafés estavam abertos, ignorando as sirenes antiaéreas e os alertas nos aplicativos de celulares.

Nos degraus da Ópera de Kharkiv, meninos adolescentes praticavam saltos de skate, enquanto as meninas gravavam danças no celular, para postar no TikTok. Dentro da Ópera, em um profundo porão de concreto, uma orquestra ensaiava para o festival de música que a guerra não conseguiu impedir.

A compostura estoica da população não consegue esconder o fato de que a Ucrânia enfrenta sua pior crise desde os primeiros meses que se seguiram à invasão russa, mais de dois anos atrás.

O ataque ao centro de jardinagem foi um dos muitos golpes sofridos no nordeste do país, sem falar no front leste e no sul, perto da cidade de Kherson.

A capacidade ucraniana de se defender depende de outros países, de decisões tomadas pelos seus aliados ocidentais que estão definindo os eventos aqui em Kharkiv e em outras cidades, além dos mais de 1 mil km de fronteira.

O outro fator estratégico que está alterando o curso da guerra é a capacidade da Rússia de aprender e se adaptar no campo de batalha.

Os russos configuram os ataques se aproveitando das fraquezas ucranianas, especialmente suas defesas antiaéreas. Suas fábricas estão produzindo armas e munições em maior quantidade do que as enviadas para a Ucrânia pelas economias ocidentais, muito maiores e mais avançadas.

A esperança acalentada no primeiro ano de combate, de que a Rússia poderia ser forçada a se retirar, transformou-se em uma luta sombria para impedir o avanço das suas forças pelo interior da Ucrânia.

A guerra já está no seu terceiro ano e não há uma conclusão em vista.

O fim do começo?

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, esperava uma vitória rápida quando ordenou a invasão em larga escala da Ucrânia, em fevereiro de 2022.

Liderada pelos Estados Unidos, a Otan era da mesma opinião. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, recusou sua oferta de evacuação.

Tanto o Kremlin quanto o Pentágono e os ministros da Defesa dos outros países da Otan esperavam que a Rússia terminasse o trabalho iniciado em 2014, quando ocupou e anexou a península da Crimeia e orquestrou a vitória dos separatistas nas províncias de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia.

As forças armadas ucranianas haviam se recuperado após a desastrosa exibição de 2014, mas a Rússia simplesmente parecia forte demais, após sua intervenção bem sucedida na guerra da Síria.

Quando as tropas russas entraram na Ucrânia, em fevereiro de 2022, os prognósticos eram de que a melhor possibilidade para que a Ucrânia pudesse continuar lutando seria organizar uma insurgência, armada pela Otan.

A Rússia capturou uma faixa profunda do território ucraniano – uma “ponte” que ligou Donbas, no leste, à Crimeia, no sul. Mas sua tentativa de tomar a capital ucraniana, Kiev, foi um humilhante fracasso para o presidente Putin.

No final de março de 2022, o Kremlin perdeu a batalha pela capital e retirou suas tropas.

A Otan reconheceu então que a Ucrânia poderia lutar. O país se revelou um aliado inesperadamente útil, merecedor de maior apoio. E ofereceu novas e oportunas opções no crescente enfrentamento com a Rússia de Putin.

Lentamente, a Ucrânia foi recebendo armas cada vez mais poderosas. Mas superar as reservas do presidente americano Joe Biden ainda é um processo penoso.

Biden temia o início de uma terceira guerra mundial, se os Estados Unidos e a Otan interviessem com suas próprias tropas, ou mesmo se fornecessem sua tecnologia militar mais avançada para a Ucrânia.

O presidente foi convencido a permitir o fornecimento de aviões de combate F-16 mais antigos, de fabricação americana, que estavam sendo aposentados pelas forças aéreas da Otan. Mas eles ainda não entraram em combate, o que permite que a aeronáutica russa tenha mais espaço para atacar.

A maioria dos analistas ocidentais acredita que o presidente Putin está blefando quando empunha a espada das armas nucleares. A China, que é um aliado fundamental da Rússia, deixou claro que não quer o uso de armas nucleares.

A última coisa de que Pequim precisa é um conflito nuclear no leste asiático. Afinal, os aliados do Ocidente na região – Japão e Coreia do Sul – detêm a capacidade tecnológica de produzir armas nucleares, caso se sintam suficientemente ameaçados para alterar suas diretrizes políticas.

E Joe Biden ainda não quer desafiar o blefe de Vladimir Putin. Por isso, os Estados Unidos continuam impondo limites ao uso dos seus sistemas de armas, proibindo os ucranianos de atingir alvos dentro da Rússia.

O presidente Zelensky acredita que esta regra mantém um de seus braços firmemente amarrado às costas. Ele pressiona pela eliminação desses limites.

Mas, no último verão do hemisfério norte, a Ucrânia reuniu uma força impressionante. Ela incluiu um conjunto de modernos tanques e veículos blindados ocidentais – e a Otan treinou milhares de soldados, em campos do mar Báltico até Yorkshire, na Inglaterra.

O plano era montar uma ofensiva que esmagasse as linhas russas, rompendo a ligação entre Donbas e a Crimeia. Mas o projeto fracassou.

As defesas russas eram fortes demais. E, sem cobertura aérea, a tentativa de combater em uma guerra com todas as armas coordenadas, no estilo da Otan, foi perdida.

A fraqueza inerente da Ucrânia é a sua dependência de terceiros para obter armas e dinheiro. O país enfrenta um inimigo que produz a maior parte das suas armas e onde moram muito mais pessoas.

A população russa é de mais de 140 milhões de habitantes – cerca de três vezes e meia a da Ucrânia. E, em uma guerra com dezenas de milhares de mortes em combate, estes números fazem diferença.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, a política doméstica também interveio.

O pedido de um “suplemento de segurança” apresentado por Joe Biden, incluindo US$ 60 bilhões (cerca de R$ 315 bilhões) para a Ucrânia, ficou suspenso no Congresso americano por meses, principalmente por apoiadores de Donald Trump. Eles queriam que o dinheiro fosse empregado para lidar com questões mais próximas de casa, especialmente a imigração ilegal pela fronteira sul com o México.

O suplemento só foi sancionado em lei pelo presidente Biden no dia 24 de abril.

Mesmo a considerável capacidade logística militar dos Estados Unidos levará meses para repor os estoques dos arsenais ucranianos. Enquanto isso, Moscou produz armas e bombas o mais rápido possível, com sua economia reprojetada para uma guerra longa.

“Esta é uma guerra de produção”, afirma uma autoridade na sede da Otan, na Bélgica. “A produção russa está superando a nossa em itens que sabemos que a Ucrânia precisa.”

As sanções ocidentais não conseguiram paralisar a economia da Rússia. O país encontrou novos mercados para seu petróleo e gás.

Rússia compra drones do Irã e munição da Coreia do Norte. A Otan acredita que a China não esteja fornecendo diretamente auxílio letal, mas vem ajudando a Rússia de outras maneiras.

“Sem dúvida, a China está contribuindo materialmente com os esforços de guerra da Rússia”, afirma a autoridade da Otan. “Ela está reconstruindo as bases da indústria de defesa, o que faz toda a diferença.”

“Ferramentas de máquinas e microeletrônicos vêm da China e vão diretamente fortalecer as indústrias de defesa, para que elas produzam mais tanques e mísseis. Uma das enormes implicações geoestratégicas das mudanças nas relações entre a China e a Rússia é que a China nunca mais será o parceiro menor.”

As fronteiras

O fogo já consumia a escola infantil local quando Vika Pisna dirigia por uma estrada de terra até a aldeia de Yurchenkove, a nordeste de Kharkiv. O local fica bastante perto da fronteira com a Rússia, o que traz uma grande sensação de perigo.

Pisna é psicóloga de um grupo chamado Proliska. Há um ano, ela visita aldeias ameaçadas pela Rússia na linha de frente, para evacuar os civis.

Não havia nenhuma criança na escola. Como todas as aldeias fronteiriças, Yurchenkove tinha apenas alguns civis idosos ou enfermos.

A escola deve ter sido abandonada meses antes. A grama já crescia e avançava pelos escorregadores e brinquedos no jardim frontal.

Um homem de motocicleta, carregando um pequeno colchão e alguns pertences, parecia estar também deixando a cidade. Ele disse que não sabia como o incêndio havia começado, mas que não havia sido uma bomba.

Seja o que for o motivo do incêndio, o fato é que ninguém naquela aldeia deserta e desolada tentou apagá-lo, enquanto ele consumia as paredes de madeira e o teto metálico da escola.

A Rússia mantém sua ofensiva sobre o oblast (província) de Kharkiv desde que suas forças cruzaram a fronteira, no dia 10 de maio. O presidente Putin declarou que o plano era estabelecer uma zona de segurança para proteger Belgorod – a cidade russa do outro lado da fronteira, onde, segundo Putin, a Ucrânia vem matando civis.

A ofensiva estende a linha ativa do front, forçando a Ucrânia a reforçar o setor de Kharkiv. Isso deixa buracos em outras partes que a Rússia poderá tentar explorar.

Seguimos Pisna e seu micro-ônibus até a região de fronteira, bem longe de Vovchansk, a cidade fronteiriça no centro dos combates atuais e que está sendo reduzida a escombros.

Mesmo a alguns quilômetros de distância, parecia uma visão do inferno. Fortes nuvens cinza e colunas de fumaça se elevavam a partir de uma série de grandes incêndios. A fumaça preta das explosões girava e se retorcia até o céu.

Liubov, a primeira mulher da lista de Pisna, está pronta para sair. Seu cachorro, preso com corrente perto do canil no jardim da frente da casa, late para os estranhos enquanto Pisna a ajuda a carregar seus pertences, embalados em sacolas de compras.

O cachorro se acalmou quando a mulher o soltou da corrente e o levou para dentro do micro-ônibus.

“Eu os incentivei a trazer seus animais de estimação”, explica Pisna. “Quando você perde tudo, ter um animal traz conforto.”

“Minha alma dói. Morei nesta casa por mais de 40 anos”, conta Liubov, esmagada no ônibus com seu cachorro e a bagagem.

Ela estava saindo por causa das bombas? “Claro que sim! Foi muito perto, menos de 100 metros. Todas as minhas janelas se quebraram.”

Pisna não conseguiu convencer as pessoas seguintes que ela tentava evacuar. Ela bateu em um sólido portão de metal. Uma mulher idosa o entreabriu.

“Boa tarde, você é Emma?”, perguntou Pisna. Quando Emma e seu marido, em algum lugar dentro da casa, recusaram-se a sair, ela tentou convencê-los.

“Ontem houve um bombardeio perto de vocês. É muito perigoso. Vocês estão se colocando em risco”, explicou ela.

“Temos voluntários que irão ajudar vocês a sair daqui, eles vão ajudar vocês a pedir benefícios, remédios e tudo o mais. Tudo será grátis. E vocês terão assistência psicológica.”

“Obrigada! Obrigada por tudo, mas eu não vou.”

“Veja, estamos evacuando as pessoas porque este é um momento crítico. Se vocês quiserem, vocês podem voltar. Mas, agora, é muito perigoso por aqui, com bombardeios a cada uma ou duas horas. É melhor sair. Haverá mais bombas e mais ataques. Aqui é perigoso.”

“Eu sei.”

“É grátis! Vocês terão moradia grátis.”

“Eu não vou”, disse Emma, fechando o portão.

A gráfica

Um saco com um corpo foi carregado dos restos de uma gráfica incendiada, menos de uma hora depois que a Rússia a atacou com uma série de mísseis, na tarde de 23 de maio. Sete pessoas morreram no ataque.

A Ucrânia vem precisando tomar decisões difíceis sobre como lançar e usar suas limitadas defesas antiaéreas.

Os mísseis que atingiram a gráfica não foram interceptados. O mesmo aconteceu com um drone russo que operava em cima da fábrica antes, durante e depois do ataque.

No quintal, enquanto os bombeiros entravam no prédio para combater as chamas e procurar mais corpos, o chefe de polícia do oblast de Kharkiv, Volodymyr Tymoshko, mal conseguia conter sua raiva.

“Todos os mísseis atingiram seus alvos”, queixava-se ele. “Eles não foram abatidos. Por quê? Porque o tempo de chegada dos mísseis da região de Belgorod é de cerca de 40 segundos.”

“Aqueles mísseis só poderiam ser abatidos pelo sistema de defesa antiaérea Patriot, que não temos aqui.”

Ele chamou a Rússia de ‘subimpério de vândalos e ogros… Resident Evil.”

Dias depois, uma das funcionárias da gráfica, Olena Lupak, ainda recebia tratamento para suas feridas no hospital. Grande parte da sua pele visível mostrava claras feridas causadas por estilhaços e explosões. Seus cabelos estavam chamuscados pelo fogo.

Lupak acredita que sua vida foi salva pelos pallets de papel impresso, que foram atingidos em cheio pela explosão. Ela estava emotiva e soluçava ao tentar sorrir, traumatizada por tudo o que havia acontecido.

“Eu não tinha medo de nada, mas, agora, tenho medo até de estar em Kharkiv”, ela conta. “Eu ainda tinha esperanças de que a Rússia não fosse um Estado terrorista e atacasse apenas alvos militares, mas eles atingiram civis.”

“Agradeço aos Estados Unidos por nos ajudarem. Agradeço à Alemanha e a todos os países do mundo pelo que eles têm feito. Mas estamos indefesos e não temos nada. Estamos sofrendo muito… Não conseguimos nos defender.”

A guerra longa

A Ucrânia não está tão mal quanto receia Olena Lupak. Mas é compreensível que as pessoas se sintam assim em Kharkiv nos últimos tempos.

Os homens feridos no centro de jardinagem se sentem da mesma forma, internados em leitos de hospital com os membros despedaçados.

“Honestamente, não sei o que irá acontecer”, afirma Vitalii. Suas pernas foram esmagadas pelo teto da loja, que desabou. “Gostaria que terminasse logo, mas não sei como.”

No leito oposto, Oleksandr declarou que a Ucrânia não pode chegar a um acordo com a Rússia. Ele sofreu uma forte queda ao escapar do fogo por uma janela no segundo piso.

“Acho que precisamos vencê-los. Eles vieram até aqui com más intenções.”

As filas de alistamento no exército e defesa do território no início da guerra fazem parte do passado. Muitos daquela primeira onda de voluntários estão mortos ou feridos demais para lutar.

A Ucrânia está tentando de tudo para recrutar e convocar homens mais jovens. A maioria dos seus combatentes na linha de frente é de meia idade. Eles estão esgotados.

Os generais ucranianos não desperdiçam vidas, como faz a Rússia. Mas eles ainda enfrentam quantidades consideráveis de mortos e feridos, em uma escala apenas sugerida pelo presidente Zelensky.

Os aliados da Ucrânia na Europa estão tentando oferecer mais apoio, com graus variáveis de sucesso.

O novo pacote americano de ajuda militar fará diferença assim que chegar. Ele irá fazer com que a Ucrânia possa continuar lutando. Mas não irá ganhar a guerra – e será o último aporte antes da eleição presidencial americana, em novembro.

Em caso de vitória de Donald Trump, ninguém sabe dizer se ele irá tão longe quanto Joe Biden para ajudar a Ucrânia.

A Ucrânia também está ajudando a si própria, com suas novas e pioneiras formas de guerra com drones. Drones marítimos e barcos não tripulados carregados de explosivos já afundaram navios de guerra russos e reabriram as rotas de exportação através do mar Negro.

Nas guerras longas, os ritmos se alternam. Neste momento, a Rússia está atacando, ao verificar que tem uma janela de oportunidade até que a Ucrânia receba suas novas armas.

Uma grande questão deste verão perigoso é se o tamanho, o poderio e a tenacidade da Rússia podem infligir à Ucrânia uma derrota no campo de batalha que mude a equação estratégica desta guerra.

A Ucrânia e seus aliados acreditam que a Rússia não tem poder de combate para fazer mais do que tomar partes limitadas de território, com alto custo em vidas e material.

Mas voltemos a um ano atrás, quando havia fortes esperanças – fortes demais, diga-se – para a ofensiva ucraniana de verão. A Rússia, agora, está mais forte e, se não houver uma mudança qualitativa em favor da Ucrânia, Moscou fará tudo o que puder para fortalecer sua posição nesta guerra.

Fonte: BBC Brasil / YAN DOBRONOSOV/GLOBAL IMAGES UKRAINE VIA GETTY IMAGES

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *