Por uma construção comunitária das IAs de saúde

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Tecnologias digitais de monitoramento de doenças, da maneira como são projetadas hoje, ignoram algo fundamental: seu caráter social e coletivo. Assim, o cooperativismo de plataforma torna-se uma bandeira indispensável

Por Leandro Modolo, em sua coluna no Outra Saúde

Mês passado sugerimos que uma das principais potencialidades da “IA de bolso” é a integração automatizada da “assistência” e “vigilância em saúde”. Sabe-se que historicamente as alternativas possíveis em torno desta integração, por sinal, atravessaram as propostas e divergências entre os chamados “modelos de atenção à saúde” — alguns pesando mais para um lado da balança, outros para o outro lado. Sem adentrarmos nessa complexa e importante temática, penso que de partida poucos atualmente discordam que quando adoecemos, e se faz efetivamente necessário uma assistência clínica e/ou hospitalar, o que desejamos é o máximo de esforço para que sejam ofertados cuidados com as mais avançadas ciências que a humanidade já desenvolveu — seja com a menor ou com a mais alta densidade tecnológica, seja na atenção primária ou terciária, seja com as farmácias vivas ou com a medicina de precisão.

Ao mesmo tempo, se concordamos com um mesmo horizonte ético e político – por uma vida justa, boa e bela para todos –, compreendemos que é preciso ir muito além disso: trata-se da luta por um modo de vida no qual menos pessoas adoeçam e, consequentemente, menos assistência clínica seja demandada. Então, com a “saúde digital”, algumas perguntas importantes (re)aparecem: como integramos a assistência clínica, para os que precisam de cuidado aqui e agora, com as ações coletivas, para que menos pessoas adoeçam amanhã e depois? Dito de outro modo, como interrompemos os seculares ciclos de adoecimentos — que matam muito mais pobres, negros e mulheres, geração em geração –, pagando os preços das lutas que isso exige, sem desassistirmos àqueles que adoecidos não conseguem estar firmes e fortes nas trincheiras? Ou como dizia Paulo Freire, “O que podemos fazer agora para que amanhã possamos fazer o que hoje não podemos?”

É lógico que essas questões transcendem qualquer espaço de jornal, revista, tese ou livro. E, tão pouco, podem ser respondidas por alguém individualmente. As táticas e estratégias para construção de um novo modo de vida foram, e sempre serão, frutos da dialética oriunda da ecologia dos saberes, dos debates públicos, das lutas populares… Tão logo, nos cabe ao menos começarmos algumas problematizações, críticas, sugestões, alternativas etc. podem ser “gatilhos” que contribuam nessa direção.

Nesse contexto, entendo que alguns campos de batalhas merecem destaque e urgem atenção dos antigos e novos defensores do SUS — público, gratuito, laico e universal –, para além do SUS. Entre eles destacamos: o design da IA de bolso, que em sua maioria reforçam um modelo biomédico e comportamentalista pautado na racionalidade neoliberal; e as corridas “neocoloniais” de espoliação da “inteligência social geral”, com suas agendas imperialistas de plataformização corporativa do SUS. Todos andam atrelados uns as outros, formando um ecossistema digital complexo, opaco e transnacional, onde cada campo merece atenção particular. Mas no fim trata-se de recombiná-los na tentativa de esboçar uma imagem-objetivo ou uma possibilidade prefigurativa alternativa, contrahegemonica.

Comecemos então por algo — caro e sabido pelo sanitarismo brasileiro — que pode ser encarado como pressuposto teórico-científico para tudo mais: a determinação social do processo saúde-doença-cuidado. Em papo reto isso significa dizer que as pessoas não adoecem apenas ou centralmente em razão das causações biológicas e individuais e nem os cuidados profissionais devem ser reduzidos ao jaleco branco do outro lado da mesa em um consultório ou ambulatório. Há uma história social da saúde, ela transcende os marcadores biológicos do corpo individual e é processada no território do paciente por determinantes culturais, sociais, econômicos e políticos, ou seja, que dizem respeito diretamente às nossas condições de vida, moradia, trabalho, lazer, relacionamentos… todas atravessadas pela (não) inserção e (não) reconhecimento dos “corpos” como sujeitos de classe, gênero, raça, religiosidade e nacionalidade.

Em suma, o processo saúde-doença-cuidado é sempre, como diz Naomar de Almeida de Filho, simultaneamente uma questão subindividual (sistêmico/tissular/celular/molecular), individual (clínico/pessoal) e coletivo (epidemiológico/populacional/social). Tudo sobredeterminado pelas “desigualdades estruturais e sistêmicas que, no cotidiano das sociedades contemporâneas, constituem fonte permanente de injustiça e iniquidades.”

Há cinco meses, por exemplo, após a recomendação de uma equipe de referência, a sra. Marta — mulher, cis, heterossexual, branca, arquiteta, moradora da zona oeste de São Paulo — começou a usar um aplicativo dedicado ao diabetes. Nele ela registra regularmente a seu índice glicêmico, peso corporal, frequência cardíaca, dieta, atividade física, estado emocional, sono etc. Além disso, ela participa de capacitações virtuais para aprender diferentes estratégias de manejo da doença, participa de grupos com outras usuárias na mesma situação, onde compartilha experiências e saberes; bem como conversa e tira dúvidas com um chatboot. Com base nos inputs de Marta, na chamada “jornada do paciente”, ela recebe diversificados estímulos customizados para atividades físicas periódicas, para controle dos alimentos hipercalóricos, entre outros. O que tem possibilitado ajustes positivos da medicação. Além do mais, caso Marta tenha qualquer alteração e problema de maior complexidade, sua demanda espontânea é recebida pela equipe que a acompanha à distância, e que automaticamente e em tempo real lhe devolve uma orientação e/ou encaminhamento.

Ao fim, com o serviço sob o arranjo paciente-actante-profissional(s), Marta melhorou a adesão ao tratamento, vem aprimorando suas compreensões e habilidades sobre os riscos que enfrenta com a doença, tem mudado hábitos prejudiciais e, sobretudo, obteve melhora no seu quadro clínico e qualidade de andar a vida.

Entretanto, apesar da IA de bolso poder ser uma aliada ao diabéticos — e tantos outros problemas de saúde –, a maioria deles são operadores automatizados de protocolos queixa-conduta, onde os determinantes sociais desaparecem e, consequentemente, o usuário nada mais é que um simples exemplar da população — um perfil da amostragem — com a qual compartilha padrões e médias de normalidade. A IA de bolso não considera o território e nem o sujeito situado histórico e socialmente. Quase sempre subestima ou simplesmente ignora os determinantes econômicos, políticos, culturais e sociais marcados pelo patriarcado, pelo racismo, pelas diferenças linguísticas, desigualdades educacionais, desertos alimentares, condições de trabalho e de renda, local e qualidade de moradia etc.

Dito de outro modo: Sr. Robson é um homem negro, com baixa escolaridade, morador da periferia de São Paulo, onde é motoboy. Ele também é diabético. E também recomendaram a ele o uso do serviço digital para diabetes. Todavia, infelizmente, os efeitos não tem sido os mesmos. Sua saúde não está melhorando. As razões não são difíceis de identificar: ele se alimenta de ultraprocessados diariamente, não dorme 5 horas por dia, não trabalha mais de 60 horas semanais, não vai ao cinema com a família e não vive preocupado com um futuro digno para os filhos e para velhice da mãe… por suscetibilidade genética ou outra predisposição hereditária. Seu problema de saúde não é uma simples questão de dados clínicos e/ou de estilo de vida. Seus marcadores biomédicos — individuais, biológicos e comportamentais — não refletem e não condizem com o seu processo saúde-doença-cuidado. Resultado: o “engajamento” com a IA de bolso não faz tanto sentido para Robson e pouco contribuiria para sua melhora.

Nesse contexto, um gatilho disparar: por que não (re)criar uma bandeira, uma pauta para os tempos de “transformação digital da saúde”, a saber, o design participativo ou design justo.

No mundo corporativo, a participação do usuário no design das “soluções” já há algum tempo é valorizado. Seus defensores consideram que processos participativos como esses colocam em cheque as vozes do “especialistas” e ameaçam as estruturas de poder existentes, pois o poder é transmitido à “soberania dos consumidores”. (Não é novidade que na racionalidade neoliberal não há problemas em reduzir cidadão ao consumidor, na verdade eles tornam-se sinônimos.) Desse modo, ao usuário do serviço de saúde cabe a apenas a participação como consumidor informado e ativo para cocriar valor com a empresa. Muitos cidadãos engajados formam o que a economia digital chama de “sabedoria das multidões”. Além disso, eles também defendem que os vieses racistas, xenofóbicos, misóginos etc. ainda recorrentes nas IAs corporativas, podem ser resolvidos com a “diversidade corporativa”, com a maior “representatividade” entre os experts das Big Techs.

Tal afã poderia ser encarado como um meio justo de trazer os determinantes sociais para as engrenagens algoritmicas das IA. Mas, por mais que possamos achar que isso seja uma causa nobre, ao fim o efeito é uma maquiagem para contornar o viés algorítmico sem ter que atacar suas causas. Como bem demarca Sasha Costanza-Chock, tanto a participação dos consumidores quanto a diversidade corporativa, encerradas em si mesmas, acabam por manter a espiral de exclusão — o ciclo de adoecimento. É verdade, portanto, que tais pautas não são simplesmente dispensáveis, mas nem de longe se mostram capazes de endereçar saídas efetivas. Elas não incidem na efetiva transformação do modo de vida.

A ideia da participação dos usuários no desenvolvimento de objetos técnicos e tecnologias, entretanto, já tem pelo menos 50 anos. O design participativo liderado por Kristen Nygaard, com o Sindicato Norueguês dos Metalúrgicos, em 1972, foi um dos precursores nos esforços de democratização das pesquisas e desenvolvimentos de sistemas computacionais. A bandeira não era que o trabalhador e a trabalhadora avaliassem suas experiências com o consumo do produto final que produziram; mas que participassem do processo que o produto esconde, tanto na concepção, como no planejamento e na gestão das máquinas e plantas produtivas. Para eles, isso não só garantiria que as máquinas adquirissem uma forma humanizada, incorporassem os diversos saberes subalternizados, assumissem os vieses em prol dos produtores diretos e da melhoria dos seus processos de trabalho. Mas, também, para que neste processo eles se qualificassem ainda mais como profissionais, fortalecessem os seus laços de solidariedade e construissem mecanismos de autogestão. 

Neste sentido, falar de design participativo para a IA de bolso implica defender que a concepção da determinação social do processo saúde-doença-cuidado deva compor todo seu desenho, arquitetura, modelagem, prototipagem etc. — e já há boas e inspiradoras experiências acontecendo em sentido semelhante. Mas, também, significa que devemos fazer com que os diretamente interessados, as Martas e os Robsons, territoriamente situados, sejam incorporados nos ciclos de concepção, desenvolvimento e implementação dessas novas tecnologias.

Dito de outro modo, é preciso que a participação popular e os mecanismos de controle social chamem para si o design participativo como um nova e urgente bandeira, ao mesmo tempo em que essa nova pauta oxigene esses históricos espaços políticos para as questões que o SUS e o Brasil do século XXI exigem.

Utopia? Prefiro chamar de cooperativas clínico-sanitária de plataformas populares. Afinal na linha de produção da Big IA ao qual estamos conectados diariamente, nós já somos matérias-primas e/ou produtores — ou “prossumidores” diriam alguns — de inúmeras tecnologias “inteligentes”, todos já participamos de um modo ou de outro da produção da “inteligência social geral” que hoje é alienada e espoliada como uma das fontes centrais de acumulação de capital pelas Big Techs. Por que então não redirecioná-la, reprojetá-la para o fortalecimento do SUS e para construção de um novo modo de vida?
Voltamos mês que vem, tentando calibrar um pouco mais esses gatilhos.

Fonte: Outra Saúde / Ilustração: Sara Wong

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