Qualquer que seja o próximo presidente do Brasil, ele terá dificuldades de negociar com o Congresso Nacional. Na campanha eleitoral de 2018, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vendeu uma imagem de candidato antissistema — embora fosse parlamentar, de atuação inexpressiva, havia 29 anos. Ao começar a governar, percebeu que não conseguiria manter essa postura e fez aliança com o Centrão, que deverá prosseguir em um eventual novo mandato. Por outro lado, se o ex-presidente Lula (PT) obtiver uma terceira gestão, terá uma Câmara dos Deputados e um Senado com maioria bolsonarista.
A dificuldade de negociar com o Congresso e de governar é fruto do presidencialismo, o “mais grave problema brasileiro” no âmbito institucional, segundo o advogado e professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo Manoel Gonçalves Ferreira Filho.
“Sem dúvida, o presidencialismo foi responsável por um autoritarismo e por um poder pessoal do presidente da República, dos quais não desapareceram os traços, embora tenham se atenuado. Hoje, ele é responsável por — diga-se o mínimo — uma dificuldade na governança, ou — diga-se o máximo — uma distorção na governança”, aponta o jurista.
Quando há necessidade de apoio parlamentar, essa seria uma dificuldade para o governo; no entanto, quando o caso é de interferência dos interesses de deputados, senadores e partidos na aprovação de projetos de lei, entra-se no terreno das distorções.
Para tornar o sistema brasileiro menos sujeito a crises, o constitucionalista defende a adoção do semipresidencialismo — medida apoiada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Em tal sistema, o presidente da República, eleito por voto direto, seria o chefe de Estado, das Forças Armadas e responsável por sancionar projetos de lei, entre outras competências. Já o chefe do governo seria o primeiro-ministro, eleito pelo Congresso, e cuidaria do dia a dia da administração do país.
“Assim, o presidente asseguraria a estabilidade das instituições — seria um poder moderador; o primeiro-ministro exerceria a governança no seu importante dia a dia, sob o controle do Parlamento. Este poderia afastá-lo se governasse mal ou irregularmente, sem necessidade de impeachment, desde que em seu lugar apoiasse um sucessor, com apoio para servir ao bem comum”, explica Ferreira Filho.
Até porque o processo de impeachment “sempre tem sequelas políticas graves”, e paira sobre ele a pecha de “golpe”, avalia. A Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950), de acordo com o professor, está desatualizada tanto quanto à definição dos crimes de responsabilidade quanto ao procedimento. Tanto que uma comissão de juristas, sob a presidência do ministro do STF Ricardo Lewandowski, proporá a atualização da norma. Dessa reforma, Ferreira Filho espera que, no mínimo, se suprima a possibilidade de o presidente da Câmara reter por tempo indeterminado a apreciação da denúncia e que, em caso de indeferimento, seja cabível recurso para o Plenário.
Integrante do panteão dos constitucionalistas brasileiros, Ferreira Filho foi professor de inúmeros profissionais do Direito que viraram referência em suas áreas, como os ministros do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli.
Tem no currículo também passagens pela política. Na virada dos anos 1960 para os 1970, foi secretário-geral do Ministério da Justiça e secretário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Posteriormente, foi vice-governador do estado de São Paulo no governo Paulo Egydio, entre 1975 e 1979, e secretário estadual da Justiça.
Leia a entrevista:
ConJur — Qual é o papel do presidencialismo nas crises políticas brasileiras?
Manoel Gonçalves Ferreira Filho — No plano das instituições políticas, o mais grave problema brasileiro é, sem dúvida, o do sistema de governo. Ou seja, o presidencialismo que a República adotou.
Sem dúvida, ele foi responsável por um autoritarismo e por um poder pessoal do presidente da República, dos quais não desapareceram os traços, embora tenham se atenuado. Hoje, ele é responsável por — diga-se o mínimo — uma dificuldade na governança — ou diga-se o máximo — uma distorção na governança.
A primeira deriva de que, em um Estado Democrático de Direito, a governança do presidente necessariamente presume um apoio parlamentar, pois ela somente pode ser exercida de acordo com a lei. A ambiciosa meta do Estado de Bem-Estar reclama uma atuação positiva no plano econômico e social que não pode ocorrer senão se autorizada pela lei (nas democracias, evidentemente). No primitivo Estado Liberal, ela devia se limitar a garantir a ordem. Esse objetivo era simplesmente realizado pela possibilidade de emprego da força, segundo admitido pela lei processual e pelo Código Penal.
A segunda deriva — simplificadamente — da necessidade de obter do Congresso a aprovação das leis que ensejem a governança para o bem-estar, na medida em que isto pretende ser feito pelo presidente. Ora, nisto interferem interesses dos membros do Congresso e de seus partidos (afora a pressão dos beneficiados ou prejudicados pelas medidas tomadas em prol do bem-estar de todos e não raramente de alguns).
A governança, portanto, presume não a separação entre o Executivo e o Legislativo, mas uma colaboração entre ambos. Isso exclui o presidencialismo puro, bem como o êxito da governança, pois o programa desta pode deixar de ser realizado, ficando a “culpa” por conta do governante. Tal colaboração, com efeito, para que ocorra ou não, depende de o presidente ter ou não maioria parlamentar que o apoie ou a obtenha como puder. Isso remete ao sistema partidário, e este, ao sistema eleitoral.
Acrescente-se que o presidencialismo enseja, pelo mandato de prazo fixo, do presidente da República a dificuldade de afastá-lo se não estiver à altura do cargo ou exercê-lo indevidamente. O único remédio para fazê-lo é o impeachment — um processo formalmente jurídico que por isso pode-se tornar tortuoso e substancialmente político, pois, o mau governante que tenha suficiente apoio parlamentar dele escapa ou se sai bem.
E isso não somente enseja crises, tanto quanto à sua necessidade, como quanto à sua efetivação, pois sempre é visto pelo lado vencido como um “golpe”.
Ademais, como observa Afonso Arinos, a eleição do presidente tende a ser um “plebiscito entre dois demagogos”, que é frequentemente vencido por quem mais promete a grupos do que se preocupa com o interesse geral.
ConJur — O parlamentarismo seria mais benéfico ao Brasil?
Ferreira Filho — O parlamentarismo, alternativa sempre apresentada pelos adversários do presidencialismo, naturalmente enseja a colaboração entre os poderes. Nele, quem exerce a governança é o primeiro-ministro e seu conselho de ministros, com o apoio da maioria parlamentar e enquanto conta com esta.
A governança, assim, está sob o imediato acompanhamento do Parlamento. O êxito ou fracasso do governo se reflete no partido ou partidos que o apoiou. A substituição do governo é simples, desde que exista maioria unida disposta a dar o poder a outro primeiro-ministro e a outro ministério.
Aqui se há de considerar o sistema de partidos. Quando existe um bipartidarismo, o partido majoritário faz o governo e o apoio necessário à governança. Mas esse partido deve estar solidamente unido — e o atual quadro inglês mostra que nem sempre está. Se há multipartidarismo, necessariamente o governo dependerá de uma coalizão e as coalizões, segundo mostra a experiência universal, são instáveis. Desfazem-se fácil e frequentemente por motivos que vão desde a ambição dos membros dos partidos de assumirem o comando a divergências ideológicas, muitas vezes meros pretextos. Para impedi-lo, ocorrem aos mesmos artifícios de que se utilizam os governos presidencialistas sem maioria parlamentar.
Num polipartidarismo, como o brasileiro, é previsível que o governo parlamentarista seria extremamente instável, impotente e teria de negociar por todos os meios o apoio parlamentar.
Tal instabilidade, como mostra a experiência francesa da Quarta República (1946-1958), leva os gabinetes a não enfrentarem os problemas graves ou difíceis e a ficar no mais do mesmo. Ou seja, uma governança impotente e rotineira, incapaz de enfrentar os grandes problemas do desenvolvimento econômico e da ordem social. Foi isso que levou ao fim o parlamentarismo do Império, que seus opositores criticavam como o “governo do palavrório e da intriga”.
ConJur — O semipresidencialismo poderia ser um sistema que reduziria esses problemas?
Ferreira Filho — A ideia de superar esses dois sistemas que não tiveram êxito no Brasil por um que combine seus eventuais méritos e evite os seus defeitos é inspirada pelo êxito da Constituição francesa de 1958, que vigora ainda hoje. É o semipresidencialismo que proponho e que já se discute. Não há espaço para desenvolver em pormenor tal discussão, o que fiz em artigos e livros.
É um sistema que separa a chefia do Estado — incumbida dos interesses permanentes da nação, atribuída democraticamente ao eleito do povo — da chefia do governo, incumbida dos interesses imediatos e transitórios da governança, atribuída a um chefe de governo, cabeça de um ministério e necessariamente com o apoio da maioria parlamentar. Assim, o primeiro asseguraria a estabilidade das instituições — seria um poder moderador; o segundo exerceria a governança no seu importante dia a dia, sob o controle do Parlamento. Este poderia afastá-lo se governasse mal ou irregularmente, sem necessidade de impeachment, desde que em seu lugar apoiasse um sucessor, com apoio para servir ao bem comum.
ConJur — O sistema de partidos políticos no Brasil permitiria a adoção do semipresidencialismo?
Ferreira Filho — Os partidos políticos são considerados essenciais para a democracia moderna. Certamente o são como já se entreviu ao tratar da sua influência sobre os sistemas de governo. Duas são as razões principais que justificam, inclusive sua regulação nas Constituições modernas. Uma, de ordem teórica, outra, de ordem prática.
A primeira é que, tendo eles programas de governo, o eleitor ao votar num de seus candidatos está ao mesmo tempo exprimindo a linha que pretende para a governança e que deve ser seguida por aqueles que se elegerem. Estes não serão meros representantes dele eleitor, mas prepostos para a realização de uma determinada linha de governança. Entretanto, a realidade demonstra que não é regra geral que o programa seja observado pelo eleito, seja por mudança da situação, seja em decorrência de uma coalizão para a atuação governamental, seja pela percepção de sua viabilidade (o que é raro). Entretanto, em boa parte do mundo, incluído o Brasil, o programa hoje não exprime ou cria uma ideologia, como ocorreu com o Manifesto Comunista de Marx em 1848. De modo geral, o programa é um agregado de ideias gerais e vagas, que visam agradar à maioria do eleitorado. Nem são mais estabelecidos por pensadores, mas obra de especialistas em manipulação da opinião, no Brasil designados por “marqueteiros”.
A outra razão — a de ordem prática — é a mais importante para a eleição e governança. O partido cria uma agregação de candidatos a diferentes postos que assim trabalham em conjunto e usam em conexão os recursos financeiros para a eleição. E, posteriormente, forma blocos mais ou menos poderosos em relação à governança, seja para a formação do governo, seja para negociações com o governo.
Esse peso é evidentemente maior quando são isoladamente majoritários — aí, sim, podem impor o seu programa. Quando são disciplinados, comandam a governança no parlamentarismo, tendo em mãos o ministério e a maioria parlamentar. Nesse caso, o primeiro-ministro, que comanda o Executivo, também comanda o Legislativo. No presidencialismo, o mesmo ocorre em favor do presidente (como sucedia no Brasil, ao tempo da República Velha). De modo geral, isto somente se dá quando das eleições surge um sistema bipartidário, em que, mesmo havendo mais de dois partidos, apenas dois têm realmente condições de alcançar o poder. É raro, sendo, porém, o que a experiência mostra ocorrer no Reino Unido e nos Estados Unidos. Por meios artificiais, o regime militar o pretendeu estabelecer no Brasil, quando extinguiu os partidos então existentes e “inspirou” a criação de apenas dois.
Mais comum pelo mundo afora é não haver partido isoladamente majoritário, mas diversos partidos, maiores ou menores, que pesam na governança. Nesse caso, o sistema é multipartidário, o que importa, no parlamentarismo, em uma coalizão para exercer o poder; no presidencialismo, em uma base de apoio para o presidente — mesmo que o seu partido tenha o maior número de eleitos —, para que ele tenha uma base de sustentação e assim possa ver aprovadas as leis que pretende para sua atuação governamental.
Ora, a experiência aponta que as coalizões são instáveis e exigem uma constante negociação que sempre tem preço. Tal situação gera instabilidade no parlamentarismo, com as consequências apontadas nas reflexões anteriores. No presidencialismo — dito de coalizão — é este igualmente movediço e exige negociação constante, com custos políticos evidentes.
ConJur — Qual é o impacto dos sistemas eleitorais para os sistemas de partidos? E como isso funciona no Brasil?
Ferreira Filho — Indo mais a fundo, os sistemas de partidos são amoldados, senão gerados, pelos sistemas eleitorais. Conforme assinalou Maurice Duverger, o sistema de votação em turno único em que se elege o mais votado leva naturalmente ao sistema bipartidário. Se há mais de um turno, a necessidade de coalizão para a vitória leva a um sistema multipartidário. Neste, coexistem vários partidos, mas que são impelidos a se associar para o turno decisivo.
Por sua vez, o sistema de representação proporcional, que, como o nome indica, distribui as cadeiras numa câmara em proporção ao número de votos que cada partido obteve, gera infalivelmente uma pluralidade de partidos, que podem ter ou não tendência a se associar. Em geral, não a possuem, pois o mais das vezes surgem novos partidos de cisões dos já existentes. Isso se viu no Brasil sob a Constituição de 1946, com a multiplicação de Partidos trabalhistas e ocorre também sob a Lei Magna em vigor. Veja-se na atualidade a “guerra” entre PT e PDT, e ontem a do PT contra o Psol.
O sistema de representação proporcional tem a virtude de não deixar sem representação correntes ideológicas que, por exemplo, preguem o novo. Mas tem o defeito de aumentar incessantemente o número de novos partidos, com a consequência de fracionar cada vez mais a representação e assim de, mesmo pela negociação, dificultar a base de sustentação sem a qual nenhum governo pode atuar no Estado de Bem-Estar, seja parlamentarista, seja presidencialista. Não é outra a razão por que a Alemanha que adota como sistema eleitoral a representação proporcional (combinada com a eleição distrital majoritária), não confere representação a partido que não haja obtido 5% dos votos.
Tal multiplicação de partidos acaba por resultar na sua “pequenização”, o que desvaloriza a sua importância e reduz a nada o valor de seus programas. É o que sucede no Brasil onde, registrados, há cerca de trinta partidos, o maior tendo elegido nas eleições de 2018 cerca de 10% da Câmara dos deputados.
Cientistas políticos assim distinguem dos sistemas pluripartidários, os sistemas polipartidários, que dificultam extremamente a governança e mesmo inviabilizam o parlamentarismo.
É, sem dúvida, polipartidário o sistema atual brasileiro e por essa, entre outras razões, é custoso reunir uma maioria para a aprovação de uma lei e inviável conceber o estabelecimento de um parlamentarismo. Ademais reduz o partido a uma exigência formal pois, permite que o eleito por um passe amanhã para outro, o que nulifica o valor do programa.
Esse polipartidarismo combinado com o financiamento público, não só faz a criação de um partido um bom negócio, como acresce desmesuradamente o custo das eleições e posteriormente o da governança.
ConJur — O presidente Jair Bolsonaro foi alvo de ao menos 145 pedidos de impeachment. Contudo, nenhum foi adiante por decisões dos presidentes da Câmara dos Deputados — Rodrigo Maia (2019 a 2021) e Arthur Lira (de 2021 em diante). A seu ver, seria positivo reduzir a concentração nas mãos do presidente da Câmara da decisão sobre o prosseguimento dos pedidos de impeachment? E que outras mudanças poderiam ser feitas na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/1950)?
Ferreira Filho — Uma das características do presidencialismo é o fato de que o presidente da República tem mandato de duração certa. Disso decorre uma vantagem, qual seja, a estabilidade governamental por um período que permita levar a cabo uma política de governo, ao contrário do que se passa no parlamentarismo, quando o primeiro-ministro pode ser afastado por uma deliberação do Parlamento. Assim, a governança pode sofrer falta da continuidade necessária para ter êxito, ou ser manipulada para manter no poder o chefe do governo e seu ministério.
Na verdade, o presidente da República somente pode ser afastado em caso de crime de responsabilidade por meio do processo sempre designado, em inglês, como impeachment.
O impeachment é um processo formalmente jurídico, de modo que presume crime de responsabilidade previsto em lei e se desenvolve com a observância de todas as garantias constitucionais, como ampla defesa, inquirição de testemunhas, entre outras, o que obviamente o torna lento. Mas ele não se desenvolve perante o Judiciário, e sim perante o Congresso, cabendo ao Senado o julgamento. Isso evidentemente o torna político, eis que um presidente com apoio parlamentar suficiente escapa ileso do processo. É o que tantas vezes se viu na história, mesmo nos Estados Unidos, de onde o Direito brasileiro o importou.
Na verdade, no Brasil nem é preciso esse apoio parlamentar para que o mau governante seja colhido pelo impeachment. Basta que ele conte com o apoio do presidente da Câmara dos Deputados, porque deste depende o recebimento da renúncia e sem prazo para fazê-lo ou recusá-lo. Disso há exemplos conhecidos.
Rege o processo do impeachment no Brasil a Lei 1.079/1950, que está desatualizada, tanto quanto à definição dos crimes de responsabilidade quanto ao processo. Essa necessidade já foi apercebida, pois funciona no Congresso uma comissão a tratar do assunto. Dela se espera, no mínimo, que se suprima a possibilidade de o presidente da Câmara reter por tempo indeterminado a apreciação da denúncia e que se preveja, caso o indefira in limine, que caiba recurso para o Plenário.
Deve-se ter presente, todavia, que o impeachment sempre tem sequelas políticas graves. Como seu desenvolvimento é tortuoso e envolve manobras dos partidários do mesmo e a inconformidade dos seus adversários, seja de ordem jurídica, seja de ordem partidária, sempre paira sobre ele a pecha de “golpe”.
Enquanto, não raro, a denúncia é a seu turno um golpe publicitário, quer de políticos, quer de não políticos que querem ver o nome nos meios de comunicação de massa.
Este texto foi publicado em https://www.conjur.com.br/2022-out-09/entrevista-manoel-goncalves-ferreira-filho-professor-parte