Os massacres em um supermercado de Buffalo, no estado americano de Nova York, e em uma escola primária em Uvalde, no Texas, com apenas 10 dias de intervalo, estão reacendendo o agora familiar debate nacional sobre armas, observado após os trágicos ataques a tiros em escolas de Newtown, em Connecticut, e Parkland, na Flórida, em 2012 e 2018 respectivamente.
Inevitavelmente, e também compreensivelmente, muitos americanos estão culpando a Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês) por barrar leis mais duras sobre armas que poderiam ter evitado estas duas tragédias recentes e muitas outras.
E, apesar da proximidade da data e local do massacre no Texas, a NRA seguiu em frente com sua convenção anual em Houston, realizada de 27 a 29 de maio de 2022. Entre os palestrantes, estavam o ex-presidente Donald Trump e o senador Ted Cruz, um republicano do Texas.
Depois de passar décadas pesquisando e escrevendo sobre como e por que a NRA passou a ter tanta influência sobre as políticas nacionais de armas, testemunhei esta narrativa ter reviravoltas inesperadas nos últimos anos que levantam novas questões sobre a reputação de invencibilidade da organização.
Três fases
A história de mais de 150 anos da NRA abrange três eras distintas.
No início, o grupo estava preocupado principalmente com a pontaria. Mais tarde, desempenhou um papel relativamente construtivo em relação às restrições de posse de armas voltadas para a segurança, antes de se tornar uma força politizada rígida.
A NRA foi formada em 1871 por dois veteranos da Guerra Civil de estados do norte que testemunharam a típica incapacidade de um soldado de manejar armas.
A organização contou inicialmente com o apoio do governo, que incluiu subsídios para provas de tiro e armamento excedente.
Estes oferecimentos, que duraram até a década de 1970, deram aos entusiastas de armas um poderoso incentivo para ingressar na NRA.
A NRA desempenhou um papel nos esforços políticos emergentes para formular políticas estaduais e nacionais de armas nas décadas de 1920 e 1930, depois que o tráfico de bebidas durante a época da Lei Seca alimentou a guerra de gangues.
E apoiou medidas como exigir uma licença para portar armas e até mesmo um período de espera para compra de armas.
A NRA ajudou a moldar a Lei Nacional de Armas de Fogo de 1934, com dois de seus líderes testemunhando longamente perante o Congresso sobre esta legislação histórica.
Eles apoiaram, ainda que a contragosto, suas principais disposições, como a restrição de armas de gângsteres, que incluía um registro nacional para metralhadoras e escopetas e altos impostos sobre elas.
Mas se opuseram ao registro de pistolas, que ficou fora da primeira lei nacional de armas significativa do país.
Décadas depois, na batalha legislativa travada após o assassinato do presidente John F. Kennedy e em meio a crescentes preocupações com a criminalidade, a NRA se opôs a outra disposição de registro nacional que se aplicaria a todas as armas de fogo. O Congresso, por fim, retirou da Lei de Controle de Armas de 1968.
Durante todo esse período, no entanto, a NRA permaneceu focada principalmente no tiro ao alvo, na caça e outras atividades recreativas, embora continuasse a se opor às novas leis de armas, especialmente para seus membros.
Uma guinada acentuada à direita
Em meados da década de 1970, um grupo dissidente dentro da NRA acreditava que a organização estava perdendo o debate nacional sobre armas por ser muito defensiva, e não política o suficiente.
A disputa eclodiu na convenção anual da NRA em 1977, em que os dissidentes depuseram a velha guarda.
Deste ponto em diante, a NRA se tornou cada vez mais política e estridente em sua defesa dos chamados “direitos às armas”, que definiu cada vez mais como quase absolutos sob a Segunda Emenda.
Um sinal de quanto a NRA havia mudado: o direito da Segunda Emenda de portar armas nunca apareceu nas 166 páginas de depoimentos no Congresso sobre a lei de armas de 1934.
Hoje, a organização trata essas palavras como seu mantra, citando-as constantemente.
E até meados da década de 1970, a NRA apoiava períodos de espera para a compra de pistolas. Desde então, no entanto, se opôs a eles.
E lutou veementemente contra a promulgação bem-sucedida de um período de espera de cinco dias úteis e verificações de antecedentes para compras de pistolas em 1993.
A influência da NRA atingiu seu apogeu durante o governo simpático às armas de George W. Bush, que abraçou as posições do grupo.
Entre outras coisas, seu governo deixou expirar a proibição de armas de assalto e apoiou a principal prioridade legislativa da NRA: a promulgação em 2005 de proteções especiais de responsabilidade para a indústria de armas, a Lei de Proteção ao Comércio Legal de Armas.
Ter um aliado na Casa Branca não é tudo
Apesar dos sucessos anteriores, a NRA sofreu com uma série de golpes autoinfligidos que precipitaram uma crise existencial para a organização.
Mais significativamente, uma investigação da procuradora-geral de Nova York, apresentada em 2020, revelou extensas acusações de clientelismo desenfreado, corrupção, acordos ilegais e fraude.
Em parte como resultado destas revelações, os membros da NRA aparentemente caíram para cerca de 4,5 milhões, de um total de aproximadamente 5 milhões.
Apesar desta tendência, no entanto, a comunidade de armas de base não está menos comprometida com sua agenda de oposição às novas leis de armas. Na verdade, dados do Pew Research Center de 2017 sugeriram que cerca de 14 milhões de pessoas se identificam com o grupo.
De qualquer forma, esta é uma pequena minoria entre quase 260 milhões de eleitores dos EUA.
Mas o apoio ao direito às armas se tornou uma prova de fogo para o conservadorismo republicano e está inserido na agenda de um grande partido político.
Este foco em questões de armas continua a aumentar a influência da NRA mesmo quando a organização enfrenta turbulências.
Isso significa que a proteção e o avanço dos direitos às armas são impulsionados pelo movimento conservador mais amplo, de modo que a NRA não precisa mais dar conta do recado sozinha.
Assim como Bush, Trump manteve um relacionamento acolhedor com a NRA. A associação foi um dos apoiadores mais entusiasmados de sua candidatura à presidência em 2016, contribuindo com US$ 31 milhões para sua campanha.
Quando Trump instruiu o Departamento de Justiça a redigir uma regra proibindo bump stocks (acessório que aumenta a velocidade de disparo das armas) e indicou seu apoio tardio para melhorar as verificações de antecedentes para a compra de armas após o massacre em Parkland, ele estava honrando as posições aprovadas pela NRA. Ele também apoiou o armamento de professores, outra proposta da NRA.
Apenas uma questão surgiu entre o governo Trump e a NRA: a aparente disposição dele de considerar aumentar a idade mínima para comprar armas de assalto de 18 para 21 — o que não aconteceu.
Em 2022, um ano depois que Trump deixou o cargo, jovens de 18 anos, incluindo os atiradores supostamente responsáveis pelos massacres em Uvalde e Buffalo, puderam comprar armas de fogo legalmente.
Na política, a vitória geralmente pertence a quem aparece. E ao aparecer, a NRA conseguiu sufocar todos os esforços federais para restringir as armas desde o ataque a tiros em Newtown. Mas a NRA nem sempre vence. Pelo menos 25 estados promulgaram seus próprios novos regulamentos de armas nos cinco anos desde a tragédia.
Repercussões da decisão da Suprema Corte
Estes últimos massacres podem estimular os defensores da segurança de armas a mobilizar a indignação pública e levar os eleitores a favorecerem regulamentações mais rígidas sobre armas de fogo durante as eleições de meio de mandato de 2022.
Mas há uma carta na manga: a Suprema Corte em breve decidirá sobre o caso New York State Rifle & Pistol Club v. Bruen, o mais significativo sobre direitos de armas que analisa em anos.
É provável que o tribunal derrube uma antiga lei de Nova York para licença de pistolas, ampliando o direito de portar armas em público nos Estados Unidos.
Tal decisão pode galvanizar os defensores da segurança das armas e, ao mesmo tempo, encorajar os ativistas pelos direitos das armas — tornando o debate sobre armas nos Estados Unidos ainda mais turbulento.
* Robert Spitzer é professor do departamento de ciência política da Universidade do Estado de Nova York em Cortland, nos EUA.
Esta é uma versão atualizada de um artigo publicado originalmente em 23 de fevereiro de 2018
Fonte: BBC