Romance histórico sobre luta de sérvios e húngaros contra otomanos está entre obras lançadas por docente da USP
Por Luiz Prado – Domingo, 24 de outubro de 2021
De maneira silenciosa e sutil, enquanto a pandemia devorou o mundo, outro movimento internacional – e muito bem-vindo, contraste-se – aproximou a Europa centro-oriental do Brasil. Séculos de intercâmbio cultural, conflitos interétnicos e uma história vertiginosa desembarcaram no País materializados em três livros traduzidos pela primeira vez de seus idiomas originais diretamente para o português do Brasil.
Trata-se de Ponte sobre o Drina, do Nobel de Literatura Ivo Andrić, e Homo Poeticus, de Danilo Kiš, traduzidos do sérvio, e O Juiz de Szentendre, de Jenö Arányi, traduzido do húngaro. As obras chegam ao País graças ao trabalho do professor Aleksandar Jovanovic, da Faculdade de Educação da USP.
Ponte sobre o Drina é o romance mais conhecido de Andrić, que nasceu na Bósnia ainda sob domínio do Império Otomano (e que mais tarde integraria a Iugoslávia). Publicada em 1945, a obra tece dramas pessoais ficcionais em um amplo fundo de acontecimentos históricos, tudo orbitando a ponte que batiza o livro.
Construída no século 16 pelo grão-vizir Mehmed Paxá Sokolović, um bósnio levado para Istambul que foi convertido ao islamismo e alcançou grandes postos no Império Otomano, a ponte, hoje batizada com seu nome, está encravada em um ponto de encontro de sérvios, turcos, judeus e austríacos, entre o Ocidente e o Oriente. No livro, ela se torna testemunha de três séculos e meio da vida na região, onde cristianismo e islamismo se chocam, exércitos se sucedem, epidemias fogem do controle e inundações castigam os povos, indo da dominação turca, passando pela presença do Império Austro-Húngaro e chegando até a Primeira Guerra Mundial.
Essa enxurrada de história também molda O Juiz de Szentendre, de Arányi, autor iugoslavo nascido no então Império Austro-Húngaro dos Habsburgos. Aqui, a atenção se concentra nos esforços conjuntos de sérvios e húngaros contra a máquina de dominação otomana na Baixa Idade Média. Em seu auge, o Império Turco teve 1,8 milhão de quilômetros e envolvia territórios na Ásia, África e Europa. Em 1919, pouco antes de sua dissolução, tinha 14,6 milhões de habitantes.
Um roteiro das guerras travadas pelo comando de reinos e impérios da Europa centro-oriental, o livro também focaliza o assentamento das populações sérvias na Hungria, fugidas da ocupação turca. Para isso, Arányi ampara seus protagonistas ficcionais em diversos personagens secundários históricos, cuja existência documentada aparece nas notas de tradução.
Homo Poeticus, por sua vez, reúne uma série de ensaios e entrevistas de Danilo Kiš, autor sérvio nascido na Iugoslávia, cuja família enfrentou os horrores dos campos de concentração nazistas. Discípulo do argentino Jorge Luis Borges, Kiš passou grande parte da vida na França, onde lecionou, e era um dos cogitados para o Nobel em 1989, ano em que morreu, aos 54 anos. Os textos que compõem o volume versam sobre temas como nacionalismo, censura e literatura, nos quais a autonomia do autor é discutida sob prismas políticos.
Questões de tradução
Ponte sobre o Drina é a segunda incursão de Jovanovic na tradução direta de Andrić, após ter trabalhado em uma antologia de contos do autor. Antes disso, suas obras só estavam disponíveis no Brasil em traduções de segunda mão.
“É uma obra realmente complicada de se traduzir, porque se perde muito”, comenta o professor a respeito de Ponte sobre o Drina. “Andrić foi um relojoeiro da narrativa, porque cuidava muito de seu texto, inclusive em termos de vocabulário, para caracterizar a origem de seus personagens pela fala. Evidentemente, essa caracterização regional não é possível de reproduzir de uma língua para outra, torna-se uma coisa cômica, caricata.”
Jovanovic enquadra essa questão no debate sobre a naturalização ou a estrangeirização de uma obra, duas estratégias da tradução muitas vezes colocadas como antagônicas. Na primeira, a tradução lançaria mão de recursos da língua de chegada para tornar o texto mais acessível ao leitor, usando expressões, regionalismos, ditados, apelidos e outros recursos para, em nosso caso, por exemplo, abrasileirar o original. Já a estrangeirização manteria elementos da língua de origem para destacar a estranheza e a diferença em relação à língua de chegada.
Para o professor, as duas estratégias, colocadas como antagônicas, são equivocadas. “Não se pode dar cidadania brasileira para um autor do Taiti, por exemplo. Há características próprias da cultura e da língua que é preciso manter”, comenta. No caso do romance de Andrić, um dos desafios se colocou na tradução das falas das personagens muçulmanas. Com o domínio otomano, conta o docente, muitas palavras de origem persa, árabe e turca foram incorporadas pelas populações islamizadas. Na obra, a presença desses termos torna possível identificar, através da fala, se um personagem é muçulmano ou não.
“Se eu traduzisse isso como a fala de um mineiro ou um gaúcho seria uma distorção injustificável”, afirma Jovanovic. “Quando se fala de língua, fala-se de cultura e vice-versa. Podemos separar as coisas na teoria, mas na prática, quando alguém se pronuncia, está imbuído de conteúdo cultural. Língua e cultura são uma coisa só na prática. É um desafio grande e interessantíssimo.”
Esse, entretanto, não foi o único dilema vivido pelo professor durante a elaboração das edições. Sobretudo no caso de Ponte para o Drina e O Juiz de Szentendre, Jovanovic teve que optar pelo uso abundante de notas de rodapé para tornar os textos compreensíveis ao leitor brasileiro, uma decisão que revela um “nervo exposto” das presentes traduções.
“Na minha opinião, uma tradução normalmente não deveria ter muitas notas de rodapé, mas, em um caso como este, sem as notas os romances seriam absolutamente incompreensíveis”, explica o docente. Isso porque, conta Jovanovic, as obras são repletas de alusões históricas e geográficas e apresentam contextos pouco conhecidos para os brasileiros.
“As camadas em que as coisas são apresentadas são extremamente detalhadas”, comenta a respeito de O Juiz de Szentendre. “É uma obra de ficção, mas o pano de fundo é histórico, com personagens históricos mesmo. Sem explicações, as pessoas não terão a mínima ideia do que se passa.”
Apesar de ser uma coleção de artigos e entrevistas, Homo Poeticus também não escapa desse desafio, aponta Jovanovic. “Kiš sempre se refere a questões pontuais, como restaurantes e outros locais e, historicamente, faz muitas referências àquilo que se passou na infância, durante a Segunda Guerra Mundial, quando teve uma experiência mais do que amarga”, conta o professor.
Jovanovic também elogia Kiš, um autor declaradamente borgesiano, conforme conta. “Ele foi um escritor genial e fez o mesmo que Borges: esmaeceu as fronteiras entre a ficção e a história. Usou documentos históricos na ficção e documentos ficcionais na história”, explica. “Kiš seguiu essa linha para mostrar as tragédias que povoam aquela parte da Europa desde tempos imemoriais”, finaliza.
Ponte sobre o Drina, de Ivo Andrić, Editora Grua, 448 páginas, R$ 74,00.
Homo Poeticus, de Danilo Kiš, Editora Aynê, 312 páginas, R$ 99,90.
O Juiz de Szentendre, de Jenö Arányi, e-book Amazon, 199 páginas, R$ 16,56.
Fonte: Jornal USP/Traduções são assinadas pelo professor da Faculdade de Educação da USP Aleksandar Jovanovic – Foto Divulgação/Fotomontagem Jornal da USP