Qual o perfil das mulheres que seriam mais afetadas por restrição ao aborto nos EUA?

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Rebecca passa correndo pelos manifestantes até uma mãe de três filhos, sentada sozinha no banco do estacionamento de uma clínica de aborto. A mulher está com medo de voltar para a clínica. “E se alguém da minha igreja me vir?”, diz ela aos prantos. Com um braço, Rebecca oferece um abraço, e com o outro ela segura seu guarda-chuva para proteger a mulher dos manifestantes antiaborto reunidos do lado de fora.

Rebecca Rehm Tuggle foi criada como católica, agora ela trabalha do lado de fora de uma pequena clínica no estado de Louisiana, no sul dos Estados Unidos. Ela ajuda os clientes a evitar manifestantes e a encontrar com segurança o caminho para dentro.

O Hope Medical Group é a única clínica na cidade de Shreveporte uma das apenas três no Estado, Louisiana, para uma população estimada de cerca de 920 mil mulheres em idade fértil (entre 15 e 44 anos).

Oito em cada dez pacientes desta clínica vivem abaixo do nível de pobreza nacional, e cerca de 60% se identificam como afro-americanas.

“Falei com uma mulher que veio fazer um aborto ontem, ela disse mal dar conta das coisas como estão hoje na vida dela. Não estou falando apenas de dinheiro, estou falando de tempo. Ela é mãe, tem dois empregos e mal consegue passar tempo com a criança que tem em casa”, diz Rebecca.

Depois que vazou um documento indicando que a Suprema Corte dos EUA poderá derrubar o direito legal nacional ao aborto, muitas pessoas como Rebecca temem o impacto de uma possível proibição. Há uma preocupação particular com mulheres de minorias étnicas que são desproporcionalmente representadas nas estatísticas de aborto.

Os negros representam 13% da população dos EUA, mas as mulheres negras constituem mais de um terço dos abortos relatados no país, e as mulheres hispânicas cerca de um quinto.

As mulheres mais pobres são mais propensas a procurar um aborto, revelam os dados, e as mulheres de minorias étnicas são mais afetadas pela desigualdade de renda. Além disso, a diferença de riqueza entre grupos brancos e não brancos está aumentando nas últimas décadas entre a população dos EUA.

Rebecca Rehm Tuggle
Legenda da foto,Rebecca trabalha na clínica Hope Medical Group, que pode acabar fechando se a Suprema Corte derrubar uma decisão anterior de garantir o direito ao aborto

Na linha da pobreza

O vazamento recente revelou que os juízes da Suprema Corte dos EUA podem ser a favor de anular a decisão conhecida como Roe versus Wade, que em 1973 estabeleceu o direito da mulher ao aborto nos EUA. O aborto não se tornaria imediatamente ilegal em todo o país – em vez disso, caberia a cada Estado decidir qual acesso ao procedimento médico as mulheres teriam em seu território.

O Instituto Guttmacher, um grupo de pesquisa pró-escolha, prevê que, se a decisão no caso Roe versus Wade for derrubada, o aborto pode ser proibido ou restringido em 26 estados – afetando mais da metade da população em idade fértil.

Uma decisão final é esperada a partir de junho ou julho.

mulher em protesto
Legenda da foto,Mulheres negras e hispânicas seriam as mais afetadas por uma decisão de proibir o aborto nos EUA

E as mulheres mais pobres, assim como as afro-americanas, sofreriam o impacto, pois estes grupos são mais propensos a buscar um aborto, de acordo com registros oficiais.

Kathaleen Pittman, que trabalha como administradora da clínica de Louisiana, diz que a pobreza é a principal razão citada pelas mulheres ao interromper a gravidez. A maioria das clientes atendidas pela clínica paga pelo procedimento com fundos de organizações sem fins lucrativos.

“Tivemos pacientes contando com três fundos de aborto diferentes, tentando juntar o dinheiro”, diz ela.

Kathaleen Pittman, administradora da Hope clinic
Legenda da foto,’Se eu sentar e pensar muito sobre o que pode trazer o amanhã, não serve em nada para a paciente’, diz Kathaleen Pittman

A maioria já tem um ou mais filhos em casa, diz Kathaleen – em linha com estatísticas nacionais, que mostram que seis em cada 10 mulheres que abortam já são mães, segundo dados de 2019 do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

“Só ver as mulheres na clínica é muito revelador. Todos os dias ouvimos de mulheres que têm que cancelar sua consulta porque o transporte falhou, a creche falhou… Qualquer dia perdido no trabalho para muitas dessas famílias é um problema real.”

Se o aborto se tornar ilegal na Louisiana, Kathaleen teme o pior: “Vamos ver mais pobreza, mais mortes”. As desigualdades de saúde para pacientes de baixa renda e grupos étnicos minoritários já são prevalentes.

De acordo com o CDC, em 2020, a taxa de mortalidade materna para mulheres negras não hispânicas foi quase três vezes maior do que a taxa para mulheres brancas não hispânicas.

Resumo: o que está acontecendo com o aborto nos EUA?

– Um documento que vazou sugere que a Suprema Corte dos EUA pode decidir a anulação do direito nacional ao aborto. A decisão final está prevista para ocorrer a partir de junho ou julho.

– Atualmente, os procedimentos de aborto estão disponíveis até cerca de 24 semanas de gravidez.

– A Suprema Corte está considerando a possibilidade de permitir que os Estados proíbam o procedimento, restringindo-os para estágios muito iniciais da gravidez.

– Nos últimos dez anos, menos mulheres fizeram abortos nos EUA, de acordo com estatísticas do CDC – os procedimentos relatados caíram quase 18% entre 2010 e 2019.

Batalha judicial

Se Roe versus Wade for derrubado, pelo menos 13 Estados em todo o país já têm leis que proibiriam ou restringiriam o aborto após o anúncio da decisão da Suprema Corte dos EUA.

Na Louisiana, a proibição viria imediatamente. A exceção seria para emergências médicas graves ou com risco de vida.

A Louisiana Right to Life (LARTL) é uma das maiores e mais antigas organizações antiaborto do Estado. Seu trabalho envolve a promoção das regulamentações restritivas que o Estado tem aprovado nos últimos anos. Mas a LARTL também se envolve no aconselhamento e ativismo, incluindo sessões de oração fora das clínicas.

“Acreditamos que não importa como a vida seja concebida, mesmo nos casos raros e horríveis de estupro e incesto, vale a pena proteger a vida”, diz Sarah Zargorski, diretora de comunicações da LARTL.

Sua organização acredita que os problemas que as mulheres negras e pobres enfrentam devem ser abordados reformulando a conversa sobre saúde materna.

“Tanto tempo foi gasto na chamada saúde reprodutiva, mas agora temos a oportunidade de nos concentrar na saúde materna real”.

A LARTL recentemente declarou que se opõe a qualquer legislação que criminalize a mãe.

“A mãe também é vítima de Roe, as mulheres foram enganadas por décadas sobre as ramificações do aborto”, diz ela.”Em última análise, o aborto é sempre perigoso, pois acaba com a vida do nascituro – devemos nos concentrar especificamente nas mulheres pertencentes a minorias, ajudando-as a fazer uma escolha de afirmação de vida, seja assumindo a maternidade ou entregando para adoção”.

A administradora da clínica, Kathaleen, tem uma visão diferente: “Se Roe versus Wade for derrubado, veremos mais dessas mulheres morrendo, não apenas por complicações da gravidez, mas por abortos sem auxilio profissional, porque não teriam acesso a uma interrupção segura”.

‘É sobre autonomia corporal’

Mais da metade da população negra nos EUA vive no Sul, onde em muitos estados os legisladores já criaram leis ou emendas para restringir o aborto de diferentes maneiras — por exemplo, impondo ultrassonografias obrigatórias, aconselhamento estatal ou períodos de espera antes do procedimento poder ser realizado.

Para Marcela Howell, presidente e CEO da In Our Own Voice — parceria nacional de organizações de mulheres negras com uma agenda de justiça reprodutiva — a anulação destacaria uma preocupação mais ampla:

“Não se trata apenas de aborto, para mulheres negras é sobre autonomia corporal”.

Ela diz que, embora Roe versus Wade tenha estabelecido o direito ao aborto, não removeu as barreiras financeiras e logísticas para mulheres negras abortarem, nem impediu que as regulamentações estaduais dificultassem o acesso aos procedimentos.

Tina Marshall, que fundou a Black Abortion Defense League, em Charlotte, na Carolina do Norte, conta que vê estes obstáculos diariamente.

Defensora da clínica
Legenda da foto,’Mantenha a cabeça erguida, mana’, diz Tina Marshall às pacientes da clínica

“Na comunidade negra ninguém fala em aborto, mas todo mundo conhece alguém que já fez. Falo do meu aborto para normalizar”, diz ela.

Tina começou a fazer seu trabalho porque sentiu que pacientes negras podem querer o apoio de outra mulher negra, em vez de outros acompanhantes que são em sua maioria brancos.

Tia Tina, como ela é conhecida fora do Charlotte’s Preferred Women’s Health Center, interage com os grupos antiaborto no local.

“Fiquei absolutamente horrorizada quando comecei, com tantos homens brancos parados lá fora, tentando humilhar essas mulheres, enquanto atravessavam o estacionamento.”

“Ninguém protege as mulheres negras, exceto outras mulheres negras”, afirma.

Cherilyn Holloway tem uma visão diferente sobre o aborto. Ela é chefe da Pro-Black Pro-Life, uma organização que ela diz tentar abrir um diálogo sobre injustiça racial e aborto, que ela fundou após ter dois abortos.

Cherilyn Holloway, que dirige a Pro-Black Pro-Life
Legenda da foto,’Precisamos de pontes melhores para sair da pobreza, não devemos sacrificar nossos filhos’, diz Cherilyn

“Eu tinha 15 anos na primeira vez e recebi um ultimato do meu pai que me fez sentir que não tinha escolha”, revela.

Cherilyn reconhece que as mulheres negras de baixa renda são desproporcionalmente afetadas pelas desigualdades, mas diz que recorrer ao aborto não é a resposta.

“Não temos um problema de gravidez. Temos um problema econômico”, avalia.

“Quando penso no argumento em torno do acesso ao aborto, por que apenas temos acesso a essa única coisa? Há todas essas outras disparidades, e esta é a única que estamos relatando.”

Independentemente de o aborto ser legal ou ilegal, ela o vê como “uma solução band-aid para um problema muito maior”.

“Aqui está a questão que sempre coloco. A solução para a taxa de mortalidade materna negra é mais abortos? É assim que estamos resolvendo este problema? Então, estamos preocupados que, se acabarmos com o aborto, mais mulheres negras grávidas vão morrer ao dar à luz. Mas não estamos solucionando o problema original.”

Menos clínicas, maiores distâncias

Caitlin Myers, professora de economia do Middlebury College, vem analisando quais os efeitos da derrubada do Roe versus Wade podem ter sobre as mulheres mais pobres.

Ela diz que as proibições estaduais provavelmente fechariam clínicas de aborto para 41% das mulheres americanas em idade reprodutiva e aumentariam a distância média de carro até um provedor de aborto — de 55 km para 450 km.

Manifestantes pró-escolha seguram letras que formam a palavra escolha (choice, em inglês)
Legenda da foto,Manifestantes pró-escolha seguram letras que formam a palavra escolha (choice, em inglês)

Sua pesquisa também mostra que muitas mulheres não poderão arcar com o custo destas viagens.

“Estamos prevendo que cerca de um quarto das mulheres que desejam abortar não conseguirão chegar a uma clínica de aborto nos estados em que o aborto ainda é legal — cerca de 100 mil mulheres no primeiro ano”.

Laurie Bertram Roberts é diretora executiva do Yellowhammer Fund, que oferece apoio financeiro para mulheres que buscam abortos no Alabama e no Mississippi.

Estes dois estados apresentam a maior porcentagem de mulheres negras que abortam nos EUA, de acordo com a Kaiser Family Foundation.

Sua própria experiência de ter tido um aborto negado em um hospital católico é uma das razões pelas quais ela abraçou esta carreira.

“Você sabe como é ser uma pessoa negra que deu à luz sete filhos?”, questiona.

Um homem branco, senado em cadeira com cartaz que diz: Estamos rezando por você
Legenda da foto,Manifestante do lado de fora da única clínica de aborto no Mississippi

Nos EUA, muita gente depende de seguros privados para financiar seus cuidados com a saúde, uma vez que o acesso aos serviços de saúde é muito caro e, na maioria das vezes, não há uma prestação universal de serviços de saúde financiada pelo governo.

Afro-americanos e hispânicos são menos propensos a ter seguro de saúde privado, devido à sua renda mais baixa e taxas mais altas de desemprego.

Quase um quarto (23,8%) das mulheres hispânicas e 12,5% das mulheres negras de 15 a 49 anos não têm seguro de saúde, em comparação com apenas 8,4% entre as brancas.

E a maioria das mulheres que recebem assistência federal por meio do Medicaid — o programa que oferece alguma cobertura de saúde para pessoas de renda muito baixa —, na maioria dos casos, é impedida de usar esses fundos para serviços de aborto, que podem custar algumas centenas de dólares.

Manifestantes pró-escolha seguram cartazes em protesto
Legenda da foto,Manifestantes pró-escolha seguram cartazes em protesto

“É muito avassalador pensar sobre qual será o impacto”, diz Laurie, comentando sobre o vazamento da decisão da Suprema Corte.

“No Alabama, tínhamos cinco clínicas, mas duas recentemente fecharam. Para substituir isso, para redirecionar todas essas mulheres, é muito esforço.”

“Você tem dois estados com altas taxas de mortalidade materna de mulheres negras, altas taxas de mortalidade infantil de crianças negras… não há outro desfecho a não ser que algumas mulheres negras vão morrer.”

No estado de Washington, Mercedes Sánchez trabalha com a sensibilização comunitária de populações etnicamente diversas na Cedar River Clinics.

Localizada em um estado onde o aborto provavelmente permanecerá legal, Mercedes já está preocupada que sua clínica possa não ser capaz de acomodar um fluxo cada vez maior de mulheres vindas de fora do estado para realizar o procedimento.

“Já vemos muitas mulheres que vêm de outro estado. Vamos ver este problema se agravar.”

Enquanto isso, na clínica Hope, em Louisiana, Kathaleen já está tendo dificuldades para atender à demanda.

“Em um dia qualquer, temos 300 mulheres esperando uma consulta com a gente.”

“Eu mesma tive que enviar mulheres para lugares tão distantes quanto o Colorado”, diz ela — é uma jornada de 1.600 km.

“É assustador, mas o consenso em nossa clínica é que vamos fazer o que pudermos por estas pacientes enquanto pudermos.”

Fonte: BBC Brasil

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