É esse o recado da exposição “Imagem-Testemunho”, no Centro MariAntonia da USP, ao reunir as pinturas e gravuras de presos políticos na ditadura
Texto: Leila Kiyomura
Arte: Carolina Borin Garcia e Joyce Tenório
Sábado, 20 de maio de 2023
O silêncio de quem observa cada uma das 41 pinturas, gravuras e desenhos que compõem a exposição Imagem-Testemunho: Experiências Artísticas de Presos Políticos na Ditadura Civil-Militar, em cartaz no Centro MariAntonia da USP, atesta a importância de saber mais sobre a barbárie dos anos da ditadura. As histórias de tortura, violência e assassinatos contra mulheres, homens e crianças e os danos e violações aos direitos humanos trazem uma realidade que ainda atravessa o presente e ameaça o futuro. Uma história que está sendo revelada pelos depoimentos e também pela arte de presos políticos que conseguiram sobreviver, durante os anos 1970, nos presídios de São Paulo. Eles transformaram suas celas em ateliês. Nos presídios Tiradentes, Carandiru, Penitenciária Feminina, Hipódromo, Barro Branco e dentro do próprio Dops (Departamento de Ordem Política e Social), homens e mulheres pintavam, desenhavam, teciam roupas e transformavam a sua arte na liberdade de ser.
É essa expressão de resistência e coragem que está sendo exposta no Centro MariAntonia, em parceria com o Memorial da Resistência. A mostra tem a curadoria da professora, crítica de arte e vice-presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) Priscila Arantes. Está sendo realizada graças ao idealismo dos ex-presos políticos Alípio Freire e Rita Sipahi, responsáveis pela organização de um acervo com mais de 300 obras.
Para o diretor do Centro MariAntonia, José Lira, a exposição acontece em um momento oportuno. Um cotidiano de 2023 que vai além da política, com crimes letais, cruéis, em que até crianças são assassinadas.
“É imprescindível retornarmos ao testemunho dos que ousaram se levantar contra a tirania”, afirma Lira. “Pois sua voz, seu olhar, suas mãos, seus corpos, muitas vezes fustigados pelo aparato repressivo do regime, guardam tesouros da memória e da imaginação sociais.”
Rita e Alípio: uma história para sempre
Rita Sipahi caminha pela exposição. Serena, elegante, 83 anos, sorri diante de uma parede com várias gravuras, em que é a fonte de inspiração do artista e jornalista Alípio Freire. Observa uma foto sua, bem jovem, com os cabelos compridos, e diz: “Conheci o Alípio no presídio, fiquei lá 11 meses e quando saí ele pediu para visitá-lo e nós nos correspondíamos. Ele me pediu uma foto. Eu enviei esta aqui”.
O artista fez várias versões da mesma imagem, muito jovem, bonita. Rita aparece em uma série de gravuras e desenhos, de costas, frente, com os cabelos nos ombros. Refletia, como ele mesmo definiu, o “indizível, o inefável”.
Rita foi presa no Rio de Janeiro quando a filha Camila tinha 4 anos e Paulo, 7 anos e meio, que ficaram sob os cuidados do seu irmão, que morava em Recife. “Um dia, minha cunhada Laura, muito dedicada, trouxe as crianças para me visitar no presídio. Eu achava importante que os dois viessem ver a cela e consegui, através de autorização na auditoria militar, uma licença para receber as crianças na torre, onde procurei ajeitar um espaço agradável. Lá eles desenharam, brincaram. Mas não sei se funcionou, porque a Laura me disse que os dois voltaram para casa abraçados e ficavam agarradinhos quando se sentiam inseguros.”
Rita tem uma filha, Maiana, com Alípio. “Sempre foi atencioso com as crianças. Quando Maiana fazia aniversário, ele que cuidava de decorar o bolo e desenhar palhaços. Mas Alípio teve muitas complicações de saúde por conta das torturas que sofreu.”
Alípio morreu em 22 de abril de 2021. Mas Rita continuou junto dele, cumprindo a orientação de organizar o acervo com as obras de arte feitas pelos presos políticos, exatamente como orientou. Em maio de 2022, os trabalhos foram levados para a Pinacoteca do Estado. A administração do acervo ficou sob a responsabilidade do Memorial da Resistência, coordenado por Ana Pato, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. “É um legado para todos. Arte é liberdade, é amor.”
Priscila Arantes, uma das crianças na ditadura
Na curadoria da exposição, Priscila Arantes vai além da organização, reflexão e montagem de Imagem-Testemunho no espaço do Centro MariAntonia. Formada em Filosofia pela USP, crítica de arte e professora da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, encontrou Rita e Alípio ainda quando era pequenina. Seus pais, também presos na ditadura, eram amigos do casal. Daí ter sido escolhida por Rita – na certeza de que Alípio também aprovaria, por admirar seu trabalho sempre sensível – para resgatar essa história. “As pirogravuras do meu pai, Aldo Silva Arantes, também estão na exposição e no acervo. Esta mostra mexe muito comigo. É também a minha história”, conta Priscila.
“Certo dia, fomos tirados às pressas da avenida Itaquera e levados por meu tio Bruno, irmão da minha mãe, de carro, até Belo Horizonte, para a casa da minha avó materna. Não entendia ao certo por que estávamos indo para Belo Horizonte e muito menos o que de fato acontecera. Mas sabia que era algo muito grave, e alguma coisa acontecera ao meu pai. Ele e minha mãe tinham combinado que, se o meu pai não voltasse de uma viagem em uma determinada época, é porque alguma coisa tinha ocorrido. E de fato ocorreu. Meu pai fora capturado em plena estação Paraíso do Metrô – nome engraçado – pelos militares, em dezembro de 1976.”
A história de Priscila e outras crianças que tiveram seus pais torturados e foram mortos na ditadura militar está no livro Infância Roubada: Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no Brasil, editado pela Comissão de Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. O livro está disponível na íntegra, gratuitamente, neste link.
Depoimentos em vídeos
Sete artistas que estão na exposição contaram a sua história para Sandra Lima, jornalista e coordenadora do Núcleo MariAntonia do Museu da Pessoa. São entrevistas em vídeos que integram a exposição, mas podem ser conferidos no link https://www.youtube.com/c/CentroUniversit%C3%A1rioMariaAntoniadaUSP.
Desenho no banho de sol
A advogada Rita Maria de Miranda Sipahi nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1938. No presídio Tiradentes, Rita fez uma boneca de crochê com os cabelos roxos para sua filha Camila. “Essa boneca, muito tempo depois, em 2014, foi capa do livro Infância Roubada: Crianças atingidas pela ditadura militar, publicado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. O livro é de domínio público. Através da arte, Rita tentava buscar a liberdade no cotidiano. “Apesar de todo sofrimento, havia solidariedade, afeto, amizade.” Sentimentos de dor, mas também de esperança compartilhados em cada desenho. “Eu nunca esqueço que um dia, enquanto tomava banho de sol, vi uma companheira da torre do presídio com seu cavalete, pintando. Quando vimos, ela tinha desenhado o guarda da guarita, que estava lá no alto vigiando…”
Carimbo e livros
Manoel Cyrillo de Oliveira Netto nasceu em Salvador, na Bahia, em 1946. O publicitário conta que um dia foi levado à auditoria militar para uma audiência de um dos processos em que havia sido condenado, e foi colocado numa sala, em um canto, algemado com as mãos para trás. Percebeu que havia um carimbo que era usado pela auditoria para liberar os livros que poderiam entrar no presídio. “Eu levantei um pouco mais os braços e, já que estava com as mãos algemadas para trás, peguei o carimbo, descolei o carimbo do cabo, peguei a borrachinha do carimbo e botei dentro da minha cueca. Era muito importante aquele carimbo, porque legalizava todos os livros que entravam no presídio, até os clandestinos, que haviam entrado sem autorização.”
Construção do presídio Barro Branco
O jornalista Artur Machado Scavone nasceu em 1949 em São Paulo. Scavone conta que dentro da cadeia mantinham a mesma estrutura da organização, com seus dirigentes, que negociavam com a diretoria do presídio as necessidades dos presos, bem como celas para manter os ateliês de arte. “A gente conseguiu, depois de cinco dias de greve de fome, uma decisão do governo de construir o presídio do Barro Branco, que existe até hoje, e que virou um presídio para nos abrigar. Nós fizemos denúncias das condições das celas, das torturas. Saía na imprensa lá fora, em Paris; não saía aqui, mas saía no mundo inteiro. A ida para o Barro Branco foi um marco histórico, que começa na realidade com a resistência de trinta e tantos dias de greve de fome que o pessoal vivenciou.”
Prisão da família
Aldo Silva Arantes nasceu em 1938, em Anápolis, Goiás. Em 1968, estava trabalhando clandestinamente no sertão de Alagoas quando, um certo dia, enquanto caminhava, um jipe passa, para e volta. Era o padre da região, conservador, que contou a Aldo, que na época usava o codinome Roberto, que sua esposa e filhos tinham sido presos. Ao tentar saber o que tinha acontecido, para saber mais da família, foi preso. “Numa audiência que tivemos em Recife, as crianças, que estavam presas com a mãe o tempo todo, começaram a correr e a derrubar cadeiras. Um major do Conselho Militar perguntou o que as crianças estavam fazendo lá, por que estavam presas, e responderam que era o método que usavam em Alagoas: quando não achavam o marido, prendiam a mulher.” O advogado de Aldo pediu a soltura imediata da esposa e dos filhos.
O mal da tortura
Sérgio Ferro Pereira nasceu em 1938 em Curitiba, no Paraná. O pintor e arquiteto era já professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP quando foi preso pela ditadura. Fazia parte também do grupo de cinco arquitetos, dividindo a cela com Rodrigo Lefèvre, Sérgio Souza Lima, Júlio Barone e Carlos Heck. No presídio Tiradentes, fizeram um ateliê de pintura, para que todos os companheiros pudessem aprender e aliviar a dor. “Todos os presos são torturados, alguns fisicamente, outros psicologicamente, mas não tem ninguém lá que saia inteiro. Em todos eles há a marca da tortura, seja ela física ou psicológica. Essa marca é uma ruptura entre a cabeça e o corpo. Tortura nada mais é que isso: eles maltratam o corpo para que a cabeça grite, berre e confesse, diga alguma coisa. Uns dizem e outros não, mas isso não é essencial. Todos se sentem mal, os que falam e os que não falam. Todos os torturados, mesmo os mais heroicos, voltam para a cela de cabeça baixa, porque descobrem que são humanos e que têm corpo.”
Teatro na prisão
Angela Maria Rocha nasceu em Ribeirão Preto, em São Paulo, em 1947. A arquiteta e professora aposentada da USP relata que ficou presa na Penitenciária Feminina de Santana, junto com as presas comuns, mas com o privilégio de ser presa política. Depois chegaram mais duas presas políticas – Guiomar Lopes e Ana Bursztyni. As três tinham um relacionamento com as presas comuns, praticavam esportes e dividiam os trabalhos igualmente, como a limpeza. Nas celas, também tinham vitrolas, rádios portáteis e colocavam os desenhos na parede. “Eu continuei desenhando, costurando, decorava minha cela; também dava os trabalhos para a minha mãe. Eu e a Guiomar fizemos uma peça de teatro, e a Guiomar escreveu o texto baseado numa fábula de La Fontaine, que falava de Júpiter e os bichinhos.”
Militares como “diabinhos”
Sérgio Sister nasceu em 1948, em São Paulo. O jornalista ficou preso 19 meses e foi condenado a dois anos em julgamento, quando já tinha cumprido 13 meses de prisão. Um dia foi transportado de camburão para a auditoria militar e ficou assustado, porque não sabia de sua soltura iminente. Viu sua mãe e a namorada Bela, atual esposa, e constatou que seria solto. “Eu falei que queria voltar para o Presídio Tiradentes, para me despedir dos meus amigos e pegar minhas coisas. Eles aceitaram, mas me levaram algemado. Me despedi do pessoal, distribuí meus livros, e foi bom porque eu pude levar os desenhos que a gente escondia, porque sabíamos que não iam deixar passar aqueles desenhos que eram muito mais óbvios, com militares como ‘diabinhos’, por exemplo. As pessoas que prendiam a gente, no fundo, eram muito covardes. O diretor do presídio passou a me tratar muito bem, nem olhou os desenhos, e levei tudo o que queria.”
Exposição Imagem- Testemunho: Experiências Artísticas de Presos Políticos na Ditadura Civil-Militar fica em cartaz até 10 de dezembro, de terça-feira a domingo e feriados, das 10 às 18 horas, no Centro MariAntonia da USP (Rua Maria Antonia, 258, Vila Buarque, em São Paulo, próximo às estações Santa Cecília e Higienópolis-Mackenzie do Metrô). Entrada grátis.
Com colaboração de Sandra Lima, da Divisão de Comunicação Institucional da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária
Fonte: Jornal USP